Os pais terríveis, ou a continuidade do massacre | The terrible parents, or the continuity of the slaughter
Certos filmes apresentam-se por vezes bastante dirigidos, como que pedindo que nos concentremos num aspecto específico da sua expressão, que pode ser uma espécie de tema ou um qualquer elemento formal. Há então alguma felicidade quando acontece a intromissão inesperada de um outro elemento menor que nos cativa, e que na sensação que faz perdurar nos permite pensar um pouco noutra direcção. (Por exemplo, em Miami vice de Michael Mann, a contrario de alguma parafernália tecno-cinematográfica, um pequeno gesto da face de Gong Li numa cena de amor no duche.) Tratam-se de deslocamentos que, no entanto, não aliviam necessariamente a nossa experiência cinematográfica, nem sequer nos garantem menor perturbação. Um aterrador menos novo pode ressurgir, por exemplo, de onde se espera apaziguamento, emergindo por trás de um terror mais explícito e fazendo deslocar toda a percepção do filme. Benny’s video (1992) de Michael Haneke posiciona-se explicitamente e serve muitas vezes uma reflexão em torno da relação próxima às novas imagens e aos seus eventuais efeitos nefastos, enfim, à chamada “violência das imagens”. De resto, é bem complexo o trabalho feito dentro do filme sobre esta matéria. Mas no meio de todo o terrível que desse aspecto decorre, e que inclui pelo menos uma morte “gratuita” [talvez nos filmes mais conseguidos não seja preciso morrer tanta gente para que o que é morrer se faça sentir], o mais aterrador acaba por se instalar num elemento aparentemente secundário: a reacção dos pais ao assassínio cometido mediante as imagens pelo filho adolescente. Irrompem assim de repente, trazidos naquela reacção abjecta, antigos horrores bem conhecidos – o nazismo e Auschwitz – que se julgam por vezes bem arrumados nas gavetas do arrependimento. Não nos parece então nada negligenciável que a expressão cinematográfica dos novos horrores convoque os passados, que deles faça nova luz e prova da terrível continuidade (histórica, intergeracional e mesmo interespécies) do massacre. | Certain films sometimes present themselves quite focussed, as asking us to concentrate on a specific aspect of its expression, one that can be a kind of subject or a given formal element. So, there’s some happiness in the unexpected intromission of another smaller element that captivates us, and that, in the sensation that it prolongs, allows us to think a little in another direction. (For instance, in Michael Mann’s Miami vice, a contrario of some tecno-cinematographic paraphernalia, a small gesture in Gong Li’s face at a love scene in the shower.) Those displacements, however, do not necessarily alleviate our cinematographic experience, or even guarantee a disturbance of minor intensity. A not so new terror can resurge, for example, from where one would expect appeasement, emerging from behind of a more explicit terror and displacing all the film’s perception. Michael Haneke’s Benny’s video (1992) explicitly locates itself, and many times serves as a reflection on the close relation to new images and its eventual threatening effects, that is, to the so-called “violence of the images”. In fact, the work done inside the film on this matter is quite complex. But in the middle of all the terrible that aspect presents, which includes at least a “needless” death [perhaps in accomplished films it isn’t so necessary that many people die in order to convey what is to die], the most terrifying finishes by installing itself trough an apparently secondary element: the parents’ reaction to the assassination committed by the means of images by their adolescent son. It then burst suddenly, brought by that abject reaction, old and well-known horrors – Nazism and Auschwitz – sometimes thought to be taken care of while closed in repentance drawers. Then, it doesn’t seem to us that one can neglect that the cinematographic expression of new horrors convoke past ones, shedding new light on them and proving the terrible (historical, intergenerational and even interspecies) continuity of the slaughter. Benny’s video (1992) de Michael Haneke 6ª, dia 16, 19h30 - Cinemateca |