Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Projecções em fundo


Hitler, Ein Film aus Deutschland (1977) 420' - Hans Jürgen Syberberg

No demorado filme de Syberberg, foi particularmente proveitosa a revisão duma também ela muito demorada cena em que o criado de quarto de Hitler relata minuciosamente os infinitos detalhes do comezinho quotidiano deste. Ficamos a saber, para nosso desespero, o que comia ao pequeno-almoço, ao almoço, ao lanche e ao jantar, de que modo dava os bons-dias, quando os dava, de que tipo de roupinhas gostava, que casacos levava em viagem, o seu imenso apego a umas botinhas, como tratava o próprio criado de quarto, que filmes via e quando os via, etc., etc., etc. Enfim, todo o terror de um quotidiano, como os demais, a esta escala, insuportável. Esta cena, que deve demorar pelo menos meia hora, é extremamente eficaz, por (auto-)destruir por exaustão as tentações de personalização na figura de Adolf Hitler. (Veja-se, neste aspecto, por oposição, o absolutamente insuportável Moloch desse sobrevalorizado Sokurov, cineasta gorduroso por excelência, com o histrionismo, ele sim abjecto, das figuras de Adolf Hitler e Eva Braun.)
Mas esta cena de Hitler, Ein Film aus Deutschland, não sendo nisso única do filme, processa-se sobre o fundo de múltiplos cenários da vida quotidiana de Hitler, na verdade, evidentes projecções em fundo de écran por detrás da presença contínua do actor, que apenas simula as acções que faria num espaço “natural”, muitas vezes acompanhado pela desproporção entre a escalas do seu corpo e a dos cenários. Estes e outros elementos de auto-evidência nada retiram de força à cena, pelo contrário. São, aliás, fascinantes exemplos de uma tendência importante do cinema (tardo-)moderno, senão mesmo de uma das suas condições determinantes: o esgotamento do espaço. No cinema, isto deve entender-se, antes de mais, como a prossecução exaustiva das possibilidades espaciais internas (de que outro exemplo é o fulgurante início de Benilde ou a Virgem-Mãe de Oliveira, com o travelling através do labirinto das construções de madeira no verso do cenário), e só depois como o reconhecimento da sua insuficiência, que será evidente, não apenas com a progressiva concentração na dimensão temporal (e rítmica) nem com o cinema expandido, mas sobretudo com a premonição e criação avant la lettre do espaço electrónico em Back & Fourth e La région centrale de Michael Snow. Entre a nulidade daquele discurso sobre o quotidiano, progressivamente interrompido por uma emissão de rádio que o torna ainda mais incompreensível, e este espaço desmanchado, assim posto à mostra, é por fim tão comovente quando cai uma branca neve de estúdio.

[o excerto
Weihnachten in Stalingrad desta cena]

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