Ao pé da letra #197 (António Guerreiro): A política da arte
Sem recorrer a mediações protetoras de uma política do gosto, a Secretaria de Estado da Cultura usou este ano a prerrogativa de escolher o artista – Joana Vasconcelos – que vai representar Portugal na Bienal de Veneza. A decisão é talvez quase inédita na política cultural de um país democrático e apresenta uma preocupante conformidade com a tatuagem do “Governo de Portugal” com que ficam marcadas as obras e acontecimentos culturais subsidiados pelo Estado. É certo que a arte não tem aquela dimensão de “obra de arte total” que tem o futebol. E, por isso, já não se presta a investimentos políticos e ideológicos tão rentáveis como o espetáculo futebolístico, que até permite a reconstituição da organicidade de um povo em união mística no altar da exaltação identitária e da autorrepresentação. Mas a arte – “ah, a arte!”, escrevia Celan –, mesmo na sua condição atual demasiado profana e destituída de ilusões, é uma tentação para o poder político, que não está propriamente interessado em politizar a arte, mas em usá-la como instrumento da figuração – como se diz de alguém que quer fazer boa figura – do político. | É um problema estético-político que conhecemos, na sua forma extrema, nos regimes totalitários do século XX. Não se trata de totalitarismo (seria ridículo designar com vocabulário tão enfático uma coisa tão pindérica) nem o “Governo de Portugal” procede com uma vontade artística digna das mais sinistras experiências de estetização. Mas não disfarça os impulsos diretivos e a vontade de ganhar lustro através de meios muito pouco liberais. Mais uma vez, há aqui uma dimensão de estupidez (a famigerada bêtise), algo que se mostra imediatamente como sendo estúpido, porque os governantes e secretários que escolhem os artistas são os mesmos que, contraditoriamente, não se cansam de proclamar que a arte deve ser inocente de uma política. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 23.6.2012. |
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