Ao pé da letra #101 (António Guerreiro)
«Qual é a medida justa e adequada para o funeral de um escritor que obteve a máxima consagração pública e cujos livros entraram na categoria de património literário reconhecido pelos poderes públicos e pelas instâncias que determinam o cânone. Um funeral à Victor Hugo ou um funeral à Baudelaire? A questão colocou-se agora, entre nós, tendo como motivo o funeral de José Saramago. O que é que nos leva a esta interrogação, por mais que não esteja em causa o alto valor atribuído ao escritor? Antes de mais, o modo como representamos um escritor, o seu papel e o seu estatuto torna-o inimigo de um figura com a qual ele pode ser naquele momento de luto confundido: com a figura do “chargé d'affaires” do espírito da nação. Ou seja, tememos que ele seja anexado e transformado numa instituição. | Em segundo lugar, as mais altas honrarias prestadas a um escritor, mesmo que determinadas pelo momento de luto, amplificam o mito do autor, que é quase sempre inimigo da obra: quanto maior é a dimensão do autor, da pessoa, mais riscos existem de a leitura da sua obra ser perturbada por condições exteriores a ela e que nada têm a ver com fatores de ordem literária. Em terceiro lugar, porque a literatura, mesmo que não seja contestação de mais nada, tem de ser contestação de si mesma enquanto poder – o seu maior pecado é a autocomplacência (e é essa autocomplacência que receamos ver instalada nas grandes honrarias). Em quarto lugar, porque atribuímos à literatura um irredutível núcleo antissocial que surge de repente suspenso.» António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 26.6.2010. |
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