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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #103 (António Guerreiro)

Sobre Cristiano Ronaldo como fenómeno sociológico total e pai poderoso que não partilha os seus poderes

«Se o conceito de mitologia, formulado por Barthes, fosse ainda válido para analisar os fenómenos da sociedade mediática e de consumo, o dinheiro de Cristiano Ronaldo poderia ser visto como um objeto mítico do mesmo tipo que o cérebro de Einstein. Mas o conceito já perdeu grande parte do seu poder e surge hoje com o charme de um objeto do passado. A mitologia do dinheiro do atleta e a do seu corpo reificado dizem muito pouco se não percebermos que Cristiano Ronaldo se tornou um fenómeno sociológico total. E a história da sua paternidade fornece matéria importante a esta totalidade. Enquanto pai, Cristiano Ronaldo cumpre uma etapa de redenção do grande fornicador improdutivo. Acabou o potlach, como diriam os antropólogos, foi restabelecida a ordem da economia produtiva. Qualquer regime familiar ou contrato conjugal só poderia ser uma ameaça potencial ao poder que incorporou (no sentido literal) e que não pode ser partilhado: infidelidades, divórcios, divisões de bens e de tutelas seriam fatais.

Por isso, teve de ser pai em regime autárquico, eclipsando a instância da família e reduzindo a maternidade a trabalho anónimo e operário. Assim, salvaguarda a sua segurança (empreendimento que não admite quebras de vigilância), ao mesmo tempo que não cede poderes a quem, por via da maternidade, poria o seu território em perigo. Mas, enquanto fenómeno sociológico total, ele é também uma figuração do ideal contemporâneo da procriação por encomenda, do filho engendrado na mais completa racionalidade. Por outro lado, a sua condição de pai autárquico não deixa que o seu poder se dilua e se relativize na procriação. E o filho chamar-se-á, obviamente, Cristiano Ronaldo. A história — todos pressentimos — está suspensa de uma intervenção do destino. Cristiano Ronaldo tem os ingredientes do herói da tragédia grega.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 10.7.2010.

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