Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #104 (António Guerreiro)

Sobre uma espécie comum que não conhece outra lei senão a do darwinismo da indústria cultural: o filisteu

«A palavra ‘filisteus’ foi esta semana recuperada por Pedro Mexia para designar “os indivíduos de uma direita dogmaticamente ‘liberal’, aliados a uma esquerda analfabeta”, que não perdem uma oportunidade para atacarem os subsídios às artes e manifestarem a sua ignorância sobre o que é a independência de um artista. Para uma definição do filisteu, devemos ler um texto de Hannah Arendt incluído em Between Past and Future. Ficamos aí a saber que a palavra foi utilizada pela primeira vez como conceito pelo escritor alemão Clemens Brentano para designar uma atitude que, julgando tudo pelo critério pragmático da utilidade, olha com sobranceria a inutilidade da arte. E Hannah Arendt forja a partir daqui a categoria do ‘filisteu cultivado’ — aquele que se apropria da arte e da cultura como um mero capital com o qual adquire uma posição superior na sociedade.

Entre nós, um recente relatório que demonstrava o razoável interesse económico das “indústrias culturais” veio servir de argumento para o investimento e a protecção dessa área. Mesmo utilizado com manha a estratégia, o argumento segue sem hesitações a lógica do filisteu, daquele que faz da cultura e da arte uma moeda de troca. Trata-se de um argumento perigoso, porque não opõe qualquer resistência ao mecanismo bem oleado das “indústrias culturais” (a que está longe de se reduzir toda a cultura e toda a arte), as quais, na verdade, não precisam de subsídios, mas engendram e promovem, muito mais do que estes, a dependência dos artistas. A situação grotesca é que esta forma de dependência é tida como um ‘habitat natural’, e já se tornou comum pensar que, para além dela, só existe uma reserva exótica que os arautos do darwinismo cultural acham artificial e custosamente protegida e só sobrevive como uma aberração a que as leis da ‘natureza’ já teriam posto fim.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 17.7.2010.

Sem comentários:


Arquivo / Archive