Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Coming apart


Coming apart de Milton Moses Ginsberg (1969) 110'

Coming apart. Que título estranho, aos meus ouvidos pouco ingleses. Por relação ao filme, tenho alguma dificuldade em compreender o que quererá dizer, apesar de parecer tão óbvio. (Num sítio dedicado à “divorce recovery”, encontro a descrição detalhada e sequencial de várias fases do processo de “coming apart”.) Talvez seja algo assim simples: separar-se (de si, dos outros).
A verdade é que não sabia bem o que escrever sobre este filme. Como se permanecesse naquela admirável distância afectiva, não recuperada, em que o filme ainda não se perdeu de nós, continua a agir por dentro, tornando-nos mudos, numa interiorização daquela estranheza que se segue à saída da sala para a rua, onde o mundo e o nosso corpo por alguns momentos se mantém em prolongamento do filme, até se desvanecer esse efeito (que é a verdadeira pedra de toque dos bons filmes). Portanto, o efeito interioriza-se. E ficamos estranhos.
Queria mesmo assim chamar a atenção para ele, avisar os distraídos da sua proximidade. Outros (Doc Log, As Aranhas, se calhar em mais, não procurei) menos hesitantes, o fizeram, e ainda bem. N’As Aranhas utilizava-se a mesma imagem e tudo. Troco de imagem, pois há diversas faces para este polígono. Pensava pegar nas suas palavras e retomá-las, criativamente. Era uma escapatória. Nem isso consigo, e ainda bem. Afinal, que bom que não consigamos fazer nosso o que não nos pertence.
Em primeiro lugar, não consigo pensar ou evocar o filme pela descrição do seu “dispositivo”. Face à experiência do filme, as saliências do dispositivo parecem-me redutoras ou quase completamente ao lado (como o Luís Miguel Oliveira apesar de tudo avisou). Não consigo deixar de me perguntar se este dispositivo será assim tão diferente de um realizador que entrasse em campo (por exemplo, Kiarostami por actores interpostos). E a crueza de algumas personagens, ou da sua interacção, vale mil vezes o dispositivo, afinal também tão pouco erótico, ou de um erotismo meramente imagético, apesar de certamente complexo.


Numa dimensão mais próxima, a da desafecção, recordou-me muitas vezes um outro filme curioso do Morrissey e do Warhol – I, a man (1967) – em que um homem, manifestamente impotente, quero eu dizer sexualmente, apercebíamo-nos disso por tanta e interminável conversa, abordava inúmeras mulheres, sem que nada chegasse a acontecer. Esta espécie de suspensão, meio desesperada, esta desafecção sexual é-me simpática, por contraponto ao obrigatório pulsional da sexualidade pornográfica, embora afinal apenas dela decorra e radicalmente a ela se assemelhe. Mas creio que é a desafecção, quer dizer, os corpos desregulados, esvaziados, despidos das pulsões obrigatórias naturais, que está aqui em jogo. Isso é o perturbante. Tanto quanto a excentricidade e fadiga dos corpos ocupados a cumprir essas pulsões. Que a imagem e os seus dispositivos tenham nisto, nesta construção da desafecção, um papel essencial, certamente, pois concorrem ambos para o seu sentido, são uma das suas dimensões. Mas que seja ela, a imagem, o que urge pensar, de todo. Assim, por exemplo, a sequência final é não apenas a da destruição do reflexo do dispositivo, mas também, na “dança” daquela personagem feminina, a da destruição de todas as “imagens” do corpo, as que o prendem, e que são todas, colocando desafecção e pulsões sexuais múltiplas no mesmo espaço. Destruição das pulsões, em prol de um corpo extenso, desencontrado, não-analítico, de um corpo que se permita ser afectado por tantas outras coisas, que escape a si próprio.

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