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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #116 (António Guerreiro)

Sobre a ilusão de que a bancarrota está iminente quando nela já entrámos há muito tempo

«No discurso político em que estamos envolvidos, a velha questão da classe permanece, da Direita à Esquerda e vice-versa, apenas como vestígio na referência generalizada a uma “classe média” que não é mais do que a não-classe em que as velhas classes se dissolveram: a pequena-burguesia universal, que encurtou a distância entre o gosto das massas e o das elites. Dir-se-ia que ela é uma alusão deturpada da consciência de classe que Lukács reelaborou, nos anos 20 do século passado, como categoria fundamental de uma teoria da história. Por isso é que assistimos hoje, em todo o espectro político, à tragicomédia onde se representa a reconciliação de tudo com o seu contrário: a poupança com o consumo, o capital com o trabalho, o ‘crescimento’ com a abstinência, o espetáculo mediático com a democracia, o valor de uso com o valor de troca, a política económica com a economia política. Nesta dança sacrificial pela salvação a todo o preço de velhos potentados político-ideológicos que bloquearam o horizonte, renunciou-se completamente a explorar novas possibilidades e a reconhecer que, tal como fora anunciado por uma mente lúcida, o estado de exceção se tornou a regra e a bancarrota que tanto receamos já se deu.

Reconhecer que se esgotaram os meios para pagar as dívidas — não as materiais, mas as culturais e políticas — que durante décadas fomos contraindo como conquistas e direitos é o passo necessário para recomeçar de novo. Que a bancarrota pode chegar de forma impercetível (como o Messias da mística judaica) é o que nos dizem estas palavras do poeta grego Kavafis dirigidas a Forster: “Vocês, os Ingleses, não podem compreender-nos; nós, os Gregos, entrámos em bancarrota há muito tempo.” Quase um século depois, a Grécia está a tentar salvar-se da bancarrota como se nela nunca tivesse entrado e nem por sombras quer escutar o seu demónio — o poeta de Alexandria.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 13.11.2010.

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