Rulotes
Ao deus dará em todos os lugares, em tendas velhas, em rulotes, sabe-se lá onde vão cagar. (Joaquim Manuel Magalhães) Domingo de manhã. Saio para um pouco de sol e pequeno almoço na rua. A caminho do Príncipe Real, uma rulote de comes e bebes estacionada junto ao passeio, a funcionar. Algo de pouco habitual. A não ser que à rulote se sigam enormes camiões com geradores e equipamento de iluminação, etc. Percebe-se então que alguma equipa de cinema anda por ali a rodar. Haverá melhor imagem de um certo cinema do que esta rulote no meio de uma rua qualquer? Já Pedro Costa se queixava, há alguns anos, de como nas rodagens a primeira coisa que lhe perguntavam, logo pela manhã, era se queria carne ou peixe para o almoço... Não sei ao certo porquê, mas isto relembrou-me duas coisas do discurso de apresentação de António Pinto Ribeiro, um dos comissários dos 6 novos filmes do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística, que me tinham ficado engasgadas. Dizia Pinto Ribeiro que estes novos filmes não correspondiam de todo ao cliché do cinema português. E dizia-o como se isso fosse uma coisa boa em si. Portanto, que estes novos filmes seriam diferentes e mais audazes, presume-se. Mas, como tentei começar a vislumbrar no texto sobre a relação entre Herman José e Manoel de Oliveira e a correspondente imagem do cinema português, talvez haja alguma verdade na composição desse cliché. Talvez a expressão mais singular deste cinema passe mesmo por uma correspondência à aparente lentidão e a um falso “não se passa nada”. Está mais que na altura de o assumir com frontalidade, para não sermos constantemente obrigados a uma postura defensiva forçada a aceitar as caracterizações dos seus detractores. Afinal, não são os maiores valores deste cinema, como Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, António Reis, João César Monteiro e agora Pedro Costa, expoentes dessa aparente “lentidão”? E não cabem as suas melhores obras, de certa forma, ainda na parte verdadeira desse cliché? | António Pinto Ribeiro, ao desprezar o cliché da forma que o fez, está obrigatoriamente também, a desprezar o cinema que lhe corresponde. Não apenas adopta o cliché como verdadeiro, confirmando-o, como também está disposto, e é o mais grave, a preferir uma expressão cinematográfica quase inócua mas que consiga quebrar a correspondência ao cliché, numa fuga para a frente. Porque o problema está no facto de ser ainda preciso que os que fogem ao cliché alcancem a mesma força de expressão cinematográfica. E isso ainda está por vir, pelo menos, e ao contrário do que deu a entender, não é ainda nestes novos filmes que se a encontrará. No entanto, a importância particular do filme AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO de Miguel Gomes talvez esteja, para além dos seus outros atributos, em ser essa primeira excepção (que, no entanto, ainda confirmará a regra?). Ou seja, existe, paralelamente à obra de Pedro Costa, que é a encarnação de que hoje se poderia alimentar o cliché, um primeiro filme português de particular relevância cinematográfica que não pode cair de maneira alguma na definição do cliché do cinema português. Em paralelo, uma segunda afirmação de Pinto Ribeiro fez referência a uma outra escala de produção possível. No seu entender, os filmes que apresentou provam possível uma escala de produção menor, ou seja, com bastante menos dinheiro. Quer isto dizer que os filmes da Gulbenkian certamente não alugam rulotes de comes e bebes, o que não deixa de se saudar. Mas há também aqui algo de enganador. Não se trata apenas das obras apresentadas, em geral, denunciarem os seus baixos valores de produção, o que as limitará esteticamente e, posteriormente, no retorno comercial da sua distribuição. Em Portugal, e talvez ainda bem, a maior parte dos realizadores fará um filme com o dinheiro que lhe derem. A escala de produção pode sempre descer. |
O que é enganoso é que se queira fazer passar a ideia de que se pode fazer descer essa escala de produção sem se pôr igualmente em causa a qualidade dos filmes. Não por acaso o programa Gulbenkian destina-se a jovens artistas, mais dispostos a aceitar essa precariedade. Não por acaso ainda não existem dados claros que permitam assegurar que desse programa resultaram (ou resultarão) cinematograficamente obras que fiquem. E sobre os filmes pobres há alguns enganos mais. Só por engano também se pode pensar que Pedro Costa faz filmes pobres em si. O que faz, e muito bem, é usar o muito dinheiro da produção dos seus filmes em extensão, em vez de intensamente no espaço de tempo de uma rodagem curta. Claro que não é apenas essa a diferença da economia de produção do seu cinema, sobre a qual aliás se debruça constantemente nas entrevistas. Mas trata-se, mais ou menos, do mesmo dinheiro que outros filmes financiados pelo Estado têm em Portugal, apenas sujeito a uma utilização muito diferente, eventualmente mais justa, e que corresponde sobretudo, ou é solidário, com o tipo de filmes que Pedro Costa deseja fazer. Essa ética da pobreza aplicada a filmes que não têm praticamente dinheiro nenhum não terá obviamente os mesmos resultados, ou apenas excepcionalmente por um qualquer gesto inaudito e extremamente precário. É aliás muito enganoso fazer corresponder qualidade dos filmes e dinheiro, pois para aquela contribuem muitos outros factores. Por isso, convém deixar claro que a escala de produção que defende Pinto Ribeiro não têm ainda expressão cinematográfica que a justifique. | Adenda: Já que estamos a debruçar-nos sobre o Programa Gulbenkian Criação e Criatividade Artística, cujo Curso de Vídeoarte termina esta Quinta-feira com a apresentação pública dos trabalhos, convém referir que, de entre os inúmeros monitores de relevo deste curso, como Jean-Pierre Gorin, Chantal Akerman, Colin MacCabe, Avi Mograbi, Madeleine Bernstorff, Françoise Parfait, apenas Harun Farocki apresentou uma masterclass aberta ao público. Infelizmente, desaproveitou-se assim a rara presença em Portugal destas pessoas, limitando severamente o impacto que o programa poderia ter para além da formação dos felizes alunos contemplados. |
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