Ut pictura poesis
I. «E se é inegável que, seja qual for a nossa opção, o filme resiste como documento (a vida nas Fontaínhas, em finais do século XX) aberto a leituras sociológicas e políticas, aquilo que transforma “No Quarto da Vanda” num objecto único e incomparável é estar sustentado numa narrativa trágica, assente em processos expressivos (a componente pictórica de alguns planos, num cruzamento entre a pintura italiana renascentista, a pintura flamenga e o hiper-realismo) que “roubam” ao real tanto quanto lhe oferecem – a relação de “No Quarto da Vanda” com o real é biunívoca, o filme está tão disponível para ele como ele para o filme.» – Luís Miguel Oliveira «Isto nunca mais me esqueço, [em] “No Quarto da Vanda” há um plano banal de uma rapariga a fazer trabalhos de casa, repetindo as vogais, no meio de um barulho monstruoso. E ela lá estava, tentando concentrar-se. Eu passei uma tarde inteira com ela, repetindo, e quando eles viram o filme, disseram que aquilo era muito bonito pois mostrava as dificuldades que eles tinham com as crianças que tentavam estudar ou aprender, como uma criança aqui no bairro leva sete vezes mais a aprender uma palavra do que em casa dos ricos. Este tipo de coisa não tem preço. Não há nenhum crítico de cinema que vá dizer isto. Esse mesmo plano, numa revista de cinema francesa, foi descrita como um “velho retábulo crístico à maneira dos pintores da Renascença”.» – Pedro Costa | «[... C]ontrariamente à moral aceite que nos interdita de “esteticizar” a miséria, Pedro Costa parece aproveitar cada ocasião para valorizar os recursos de arte apresentados por esse cenário de vida mínima. Uma garrafa de água de plástico, uma faca, um copo, alguns objectos pousados numa mesa de madeira branca de um apartamento invadido, e ei-la, com a luz que vem rasar o seu palco, a ocasião para uma bela natureza morta. Que a noite chegue nessa habitação sem electricidade, e duas pequenas velas sobre a mesma mesa darão a uma conversa miserável ou a uma sessão de chuto um ar de chiaroscuro holandês do Século de Ouro. [...] Mas esta “esteticização” significa precisamente que o território, intelectual e visivelmente banalizado, da miséria e da margem é levado à sua potencialidade de riqueza sensível partilhável.» Jacques Rancière, «Les paradoxes de l’art politique», Le spectateur émancipé, La Fabrique, Paris, 2008, pp. 87-88 |
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