Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Filmes-doença de 2008

Ainda profundamente eivado do contagiante espírito natalício, presto-me também eu ao exercício, convenhamos, um pouco ridículo, de apresentar uma lista de filmes do ano. Compreendam que não se trata de um menor apreço meu por listas. Pelo contrário, todo o tipo de listas me encanta. Como as listas de animais que se dividem entre os “que acabam de quebrar a bilha” e os que “de longe parecem moscas”, etc. Ou de doenças. Enfim, tanta coisa linda. Mas as listas cinéfilas têm algo de abominável. Como se se tratasse de uma urgência doentia num cânone instantâneo para uma arte em constante crise de afirmação. Desagrada-me esta curiosidade insistente por uma contabilização falsamente significativa. Tanto mais que parece ter como função, precisamente, proceder ao esquecimento periódico. No entanto, também eu caio constantemente nesta ordem, que é apenas um traço da má emancipação do cinema, da sua insuficiente impregnação na vida. Cânones, contra-cânones e anti-cânones. Quantos filmes destes vi ou não vi?, etc. Mas não é, pelo menos, verdade que todos os cinéfilos gostem de listas...

A primeira palette da cinefilia cosmopolita corrente é o crème de la crème do que foi mais promovido nos festivais ou saiu das nobres mãos de um mestre recente ou antigo. Neste sentido, as listas são as mais das vezes muito pouco heterogéneas. Faltam lá os objectos cinematográficos não identificados, as anomalias. Parece que são supostas limitarem-se ao que terá sido exibido nas salas comerciais num determinado período, o ano mediático. Os críticos comerciais têm uma boa desculpa para se cingirem aos filmes mais populares. No entanto, as pessoas que escrevem online, para que se prestam a isso? >




Por isso, muitos cinéfilos apresentam habitualmente duas listas diferentes: a da matéria corrente e a da matéria desenterrada. Quer dizer, a dos filmes estreados em sala na sua terra e a dos mais antigos que tiveram finalmente oportunidade de ver. Comparar os desenterrados com os correntes é muito elucidativo e deprimente. Esses desenterrados são, quase sempre, muito melhores do que os correntes. No entanto, e aqui é que a burra torce o rabo, essas preciosidades desenterradas não foram elas próprias, as mais das vezes, as melhores do seu ano de origem. Logicamente, cabe aqui a suspeita de que anda para aí muita especulação quanto à “melhoria” contemporânea. Trata-se de uma bolha especulativa como outra qualquer. Esperemos pacientemente pelos seus efeitos recessivos. Um século não é nada para uma expressão artística. Precisamos passar a mão no dorso da história do cinema ao contrário, de forma a que, ao levantar os pêlos, se deixe descobrir a bicharada cinematográfica que por lá vive, em vez do lustro morredouro que por aqui mora.

Explicação do método. Pelo menos desde Março passado que mantenho um registo passivo dos filmes que vi, e apenas devido ao Google Calendar. Anteriormente, a minha cinefilia era extremamente negligente com os registos. Nem as folhas da Cinemateca levo para casa, que papelada pelo chão é o que não falta por cá. Excepção feita aos filmes de que saí a meio ou que odiei profundamente, e cuja referência procuro apagar para nunca mais deles me lembrar, está lá registado o que vi numa sala de cinema. Não me dou ao trabalho de assinalar as (raras) coisas vistas na televisão ou as (menos raras) em dvd, ou ainda as cada vez mais vistas em ficheiros descarregados...




Em vez de uma lista de melhores, com a justa contraposição de outra lista de piores, que são as quase insondáveis pontas do espectro, proponho uma lista dos piores “melhores” filmes do ano. Aqueles que aparecem, normalmente, nas listas de melhores do ano, mas que, na verdade, são apenas os que oscilam no limiar ambíguo entre os menos bons dos bons e os menos maus dos maus. Filmes “com pretensões” e de que se muito alimenta a crítica cinéfila. A ordem era suposta ser a da visão, mas é antes (mais ou menos) a do enfado, do maior para o menor. Alguns filmes são ainda do ano passado, mas a doença ficou a incubar e só a apanhei em todo o seu esplendor este ano. Porque é de doenças que se trata. Das doenças cinematográficas que me fizeram sofrer. Para separação das águas e manifesto de suposta ortodoxia não encontro melhor. Claro que há para aí doenças que não apanhei. Tentamos sempre evitá-las, não é? Dessas outras devem dar testemunho os respectivos pacientes. Obviamente, as opiniões expressas (são só isso, o que é bem pouco) nesta lista não reflectem qualquer juízo negativo sobre pessoas que possam ter gostado, adorado, estrelado ou mesmo chorado com estes filmes. Afinal, cada um de nós tem um sistema imunitário-cinematográfico diferente. E, como diz o povo, na sua sabedoria milenar, gostos não se discutem...


HUNGER Steve McQueen
Esta calamidade não é apenas uma doença! Trata-se de um síndroma, doravante dito Síndroma de McQueen, que associa malvadamente um grupo de doenças mais ou menos identificáveis. Da taquicardia artística ao escorbuto fetichista, passando pelo apodrecimento da glande abjeccionista, é quase uma epidemia, pelo seu potencial avassalador. São, no fundo, estes sofrimentos terríveis que nos inspiram à delação. O corpo do espectador, para além do colapso nervoso por altura do contacto patológico, comporta-se em seguida como acabado de ser submetido a uma tareia. No entanto, conhecem-se casos, ditos extremos, de auto-inoculação com o síndroma em pacientes com fixação em figuras crísticas em decomposição, vórtices de merda e esteticização geral das pústulas... Ao pé deste síndroma, a doença de THE PASSION OF CHRIST de Mel Gibson só pode ser inofensiva (como disse, não me presto a contaminações inúteis) e, sobretudo, mais facilmente combatida, pois pelo menos essa não vem disfarçada de arte.
[Ok, o meu orçamento de sarcasmo esgotou-se aqui, e não vou começar a gastar o que entra já nas contas do novo ano... Deixo apenas os filmes-doenças restantes:]


CZTERY NOCE Z ANNA / QUATRO NOITES COM ANNA Jerzy Skolimowski

AFTERSCHOOL Antonio Campos

REDACTED Brian de Palma

PARANOID PARK
Gus Van Sant

NE TOUCHEZ PAS LA HACHE Jacques Rivette

LES AMOURS D'ASTRÉE ET DE CÉLADON Eric Rohmer 

LA FRONTIÉRE DE L'AUBE Phillipe Garrel 

WONDERFUL TOWN Aditya Assarat

LE SILENCE DE LORNA Jean-Pierre e Luc Dardenne

Z32 Avi Mograbi 

VALS IM BASHIR/ A VALSA COM BASHIR Ari Folman 





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