Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Cronista falhado (Doc's Kingdom 2008 #1)

Contava fazer de (espécie de) cronista do Doc's Kingdom 2008 de Serpa, enviando sinais mais ou menos cifrados do que por cá se passa aos que por alguma razão não podem estar. Mas durante o seminário sobre cinema documental deste ano, dedicado à «Paisagem — O trabalho do tempo», não se consegue sequer dormir o suficiente, quanto mais ler e pensar por escrito sobre os filmes.
Mesmo o mais modesto alinhamento de dois ou três elementos, que pudesse constituir um pequeno esboço de texto, precisa de algum tempo e de descanso. Precisa de olhos desviados da tela. De olhos eventualmente parados na paisagem, mesmo que não vendo nada. Esses momentos em que não se vê, mas em que de algum modo se está com o filme são tão importantes...

Mise en abîme #6: «Conflito de gerações na RFA» por Sylvie Lindeperg (trad.)



«Na Alemanha Federal, Nuit et Brouillard foi associado mais cedo {do que em França}, e de maneira mais incisiva, à perseguição e ao extermínio dos Judeus. Aquando da estreia do filme em 1956, o jornal conservador Frankfurter Allgemeine Zeitung qualifica Nuit et Brouillard de documentário “sobre o extermínio dos Judeus” e o órgão da confederação dos sindicatos alemães, Welt der Arbeit, evoca a seu propósito o assassínio em massa de “nove milhões de Judeus [sic]”, retomando assim, e reintepretando, o número do comentário de {Jean} Cayrol. No mesmo espírito, o jornal social-democrata Vorwärts evoca a estreia do filme em Frankfurt em ligação com o destino trágico dos trinta e seis mil Judeus da cidade deportados e assassinados, de entre os quais a emblemática Anne Frank.
Muito rapidamente também, as associações e as autoridades federais vão fazer uso do filme como resposta a algumas afirmações ou actos antisemitas. Nuit et Brouillard é assim programado em Berlim a 10 de Janeiro de 1960, no seguimento dos incidentes antisemitas do Natal de 1959, no decurso dos quais a sinagoga de Colónia foi profanada. E a segunda difusão televisiva de Nuit et Brouillard é programada a 9 de Novembro de 1978 no segundo canal, para comemorar a “Noite de cristal”.


Mesmo se o texto de Celan cumpre talvez o seu papel nesta pregnância do genocídio dos Judeus, é sobretudo preciso procurar a sua origem nas questões de memória específicas da Alemanha Ocidental. Contrariamente à França, onde a visão do deportado patriota-resistente, ela própria integrada num modelo heróico dominante, se tinha totalmente imposto no decorrer do pós-guerra, a RFA sofria a concorrência da RDA, que se tinha apropriado dos heróis da resistência ao “fascismo”. Sob a era adenaueriana, os discursos comemorativos e as políticas de indemnização e de reparação puseram o acento sobretudo nas vítimas judias do nacional-socialismo. Esta evolução acidentada da memória reencontra-se nos usos do filme pela instituição escolar alemã ocidental.
Nas escolas da Alemanha Federal, Nuit et Brouillard conheceu um destino contrastado. Desde a estreia do filme que a imprensa alemã se questionava sobre a pertinência de projectar Nuit et Brouillard nos estabelecimentos escolares. As opiniões divergiam de um jornal para outro, expressas frequentemente de forma taxativa, o que denunciava a importância atribuída pelos adultos a esta espinhosa questão da transmissão.
O governo federal tinha preconizado a difusão do filme junto dos alunos com mais de dezasseis anos e dos estudantes universitários. E, por intermédio da Bundeszentrale für Heimatdienst, uma centena de cópias do filme foram postas à completa disposição de associações e estabelecimentos escolares (algumas tiradas a preto e branco, por razões de economia...). Mas as orientações federais foram aplicadas de forma muito diversa à escala dos Länder.
Os ministros de Bade-Wurtemberg e da Baviera, que tinham recomendado o filme como ferramenta pedagógica, confrontam-se então a duras resistências por parte das associações de pais e de alunos, dos sindicatos de professores e de alguns conselhos directivos. Em Göttingen, foi a municipalidade que se opôs à difusão de Nuit et Brouillard nas escolas da cidade, pelo motivo da “brutalidade crescente da demonstração” não poder ter “um objectivo pedagógico” e não vir a suscitar senão “nojo e repulsa”. Na Westfália do Norte, pelo contrário, o filme foi mostrado desde o fim dos anos 50 aos alunos dos últimos anos do secundário.

Os efeitos dessas projecções são difíceis de avaliar; alguns testemunhos evocam, no entanto, essa primeira confrontação da geração do pós-guerra com os crimes do período nazi. Em 1962, o ano da introdução da Segunda Guerra Mundial nos programas escolares alemães-ocidentais, um professor de história contemporânea refere no seu relatório pedagógico “a recusa manifesta” dos seus alunos finalistas aos quais tinha projectado Nuit et Brouillard. O professor relata as afirmações de um deles:
“Por exemplo, agora o filme Nuit et Brouillard que foi mostrado na nossa escola; provocou, digamos, um grande riso (risos do grupo), é mesmo verdade! Era demais! Fizemos brincadeiras por cima, em todas as turmas. Aquilo preocupou-nos, mas não estávamos assustados.”

Para Andréa Lauterwein, esta reacção pueril explicar-se-ia sobretudo por uma falta de enquadramento pedagógico; os professores alemães da época teriam tendência a remeter-se passivamente a Nuit et Brouillard, que impunham aos alunos sem qualquer preparação ou explicação. A autora apoia-se em particular no testemunho da poetisa alemã Anne Duden, nascida em 1942, que descobriu o documentário no fim da infância:


“Vi o filme Nuit et Brouillard de Alain Resnais onde se mostra como montanhas de cadáveres são removidas com escavadoras. Tivemos de ver este filme na escola, mas não nos foram dadas explicações.”

A poetisa acrescenta que essa projecção constitui um choque tanto mais violento por essas imagens depararem com o silêncio dos adultos sobre a questão dos campos: “Acabava por se falar daquilo de uma maneira ou doutra e, ao mesmo tempo, não se falava de todo. Depois vê-se este filme, criança. É uma mudança na vida. O que aí se vê é pura loucura.”
Esta tomada de consciência, que se opera num perturbação indistinta, é imediatamente minada pelo mundo dos adultos:
“Agora a Alemanha não era senão uma zona [...]; posto de espera e fossa de assassinos; terrenos de ruínas e colinas de escombros, central de comandos e fossa comum, mostrada secretamente para que a visitemos, uma vez, na escola, através de Nuit et Brouillard, o filme de Alain Resnais, seguida e perseguida pelos comentários dos adultos: mera propaganda.”

Esta ausência de confirmação dos factos históricos, que ia por vezes até à denegação, devia alimentar a rejeição dos pais e a contestação das gerações do pós-guerra, que tomou uma forma particularmente aguda durante os anos 60 e no decénio que se seguiu. Para evocar esse violento conflito de gerações, Michael Schneider recorre por sua vez à melancolia de Hamlet, engendrada por um objecto paternal duplo, cujas duas faces seriam “o espectro do pai e o tio paterno assassino ocupando o trono”:


“Foi como se de repente o espectro do seu pai, vestido de uniforme nazi, lhes tivesse aparecido e acusado o seu pai dos crimes colectivos mais terríveis que uma geração cometeu durante este século. Pouco a pouco, o pai fantasmagórico tomou o lugar daquele com quem se tinha gentilmente almoçado e jantado durante vinte anos. E, tal como Hamlet, não estavam muitas vezes certos desse fenómeno ser apenas um espectro produzido pela sua imaginação, pela sua súbita suspeita, ou se, bem real, fazia aparecer a verdadeira natureza, até então escondida, do seu pai. Inclinaram-se então a dar mais crédito à voz do fantasma nazi do seu pai do que ao pai presente tornado cristão, liberal ou social-democrata. Mesmo se, entretanto, esse pai se tinha tornado um democrata convicto, os filhos disso tinham que duvidar, porque tanto tempo tinha mantido a sua falha em silêncio. ”

No quadro deste retorno espectral do passado, Nuit et Brouillard parece ter tido um papel importante, como elemento de um duplo procedimento de acusação dos assassinos hitlerianos e do silêncio amnésico de toda uma geração. Para inúmeros professores alemães que começaram a leccionar no contexto do pós-68, em conjunto com a transmutação maior que estes acontecimentos representaram na consciência alemã-ocidental, o filme permitia empreender com os alunos o exame crítico do passado nazi que lhes tinha faltado na sua própria juventude. A partir dos anos 70, o documentário de Resnais foi largamente difundido nas escolas da Alemanha ocidental, por vezes ao nível do ensino primário.


Neste aspecto, é significativo que Nuit et Brouillard abra, através do prelúdio de Eisler, o filme de Alexander Kluge, Die Patriotin (1979). A personagem principal é, com efeito, uma jovem professora de história que tenta actualizar diferentes episódios ocultos da história alemã. A heroína escava o passado nacional com uma pá, “objecto metafórico que deve servir para desenterrar o que foi escondido”, e elabora, a partir de fragmentos encontrados da história nacional, um outro “dispositivo memorial correspondente a um outro desejo de Alemanha, não a da RFA na qual ela vive e em que o passado nazi como se volatilizou, mas uma Alemanha em falta, por defeito, em sofrimento” (R. Robin).
Não é também por acaso que Margarethe von Trotta met en abîme
Nuit et Brouillard no seu filme Die bleierne Zeit (1981) que se inspira no percurso de Gudrun e Christiane Ensslin. A realizadora alemã explica:
“Queria demonstrar que o terrorismo, ainda assim, não nasceu do nada. Estava, ainda assim, ligado à nossa história. E toda a primeira geração de terroristas tinha pais que estiveram envolvidos [no] nazismo e [...] tinham antes recusado a sua culpabilidade. Portanto, Die bleierne Zeit {Os anos de chumbo} é para mim também um nome para os anos 50 em que nós – dado que sou da geração desses primeiros terroristas – [vivemos] como sob uma chapa de chumbo, em que sabíamos que havia qualquer coisa de grave no nosso passado, mas de que ninguém falava, mesmo nas escolas.”

No seu filme, a realizadora restitui, por intermédio de flash-backs, os momentos-chave da infância e adolescência das duas irmãs, Juliane e Marianne, a mais nova e menos revoltada mas que cairá no terrorismo.




Numa das sequências fulcrais, Margarethe von Trotta expõe, através de uma aula de literatura, a inadaptação do sistema escolar alemão, acantonado num recolhimento cauteloso nos valores de um passado longínquo. Juliane declara então ao seu professor que acha Rilke kitsch e que preferiria estudar Brecht e Celan. Ao professor, que lhe recrimina a estratégia de recusa, retorque ela assim: “E você, que procura evitar?”
A cena seminal, que parece determinar a trajectória da jovem Marianne, mostra-nos as duas irmãs assistindo, na companhia de outros adolescentes, a uma projecção de Nuit et Brouillard, aparentemente organizada pelo pai padre que vemos colocar-se como observador no fundo da sala. O filme de von Trotta conforma-se assim à história familiar de Gudrun Esslin: o seu pai Helmut era um pastor evangélico antimilitarista e antifascista que nunca se compremeteu com o regime nazi (aliás, como os pais de Andreas Baader e de Ulrike Meinhof). Assim, para estes três membros da Facção Exército Vermelho, a herança da culpabilidade foi legada socialmente, em vez de familiarmente; a sua violência dirigia-se colectiva e genericamente à geração “daqueles que tinham feito Auschwitz” e com os quais “não se podia conversar”. A propósito desta passagem ao acto e desta caída na violência, Michael Schneider assinala ainda:


“As acções espectaculares dos terroristas alemães lembram-me a célebre cena de Hamlet, em que este pede aos actores que representem perante o seu tio o assassínio do seu pai. Desde o seu início, a RAF não foi aquilo pelo qual se tomou (uma libertação por procuração das massas ainda adormecidas); foi antes uma acção assassina e suicidária visando o desmascarar dos assassinos.”

A escolha operada pela realizadora na sua longa citação de Nuit et Brouillard faz eco deste procedimento de desvelamento: o excerto começa na data de 1945, com a evocação do comprometimento dos industriais alemães, e inclui toda a meditação no presente, depois de kapos e oficiais terem negado a sua culpabilidade. Entretanto, as imagens de Belsen provocaram a saída de Marianne, seguida pela irmã, de lenço nos lábios, que vem reencontrar a mais nova chorando em frente aos lavatórios da casa de banho.
Esta citação de
Nuit et Brouillard pela realizadora alemã confere por sua vez ao filme de Resnais uma função similar àquela da pantomina shakesperiana. Esse dispositivo de espelhamento aparece como um distante relembrar daquele que foi o adoptado pelos Aliados em Nuremberga, com vista a ler a culpabilidade no rosto dos acusados; repetido no processo de Jerusalém, é doravante utilizado entre alemães no quadro de um conflito de gerações exacerbado.

Reencontramos o filme de Resnais em Die innere Sicherheit (2000) {cf. «Mise en abîme #1»}, realizado pelo cineasta alemão Christian Petzold. Esta ficção evoca o exílio, a fuga e, por fim, o retorno caótico à Alemanha de um casal de antigos terroristas e da sua filha Jeanne, de quinze anos de idade. Aqui o círculo parece fechar-se: a adolescente junta-se por acaso a um grupo de alunos do secundário e assiste com eles a uma projecção de Nuit et Brouillard. A sessão termina com uma diatribe do professor, amargo, que passa sermão aos jovens por causa do seu absentismo, enquanto Jeanne pega nas suas coisas e sai em silêncio. Assim, o único contacto da adolescente com a instituição escolar alemã faz-se por intermédio do filme de Resnais, aparecendo doravante como uma referência obrigatória e assinalando a institucionalização do filme na Alemanha. Piscadela de olho de Petzold ao jovem cinema alemão e a Os anos de chumbo, ao mesmo tempo que lembrança de infância de um cineasta nascido em 1960, a referência a Nuit et Brouillard revela uma ligação menos tensa com a história alemã. Como Margarethe von Trotta, Christian Petzold cita a última parte do documentário, mas limita o seu excerto ao epílogo a cores que se concluí estranhamente com um cartão de genérico de FIM... Com este palavra ENDE {cf. «Mise en abîme #5»}, uma página parece definitivamente virada.


Sinal dos tempos, com efeito, Nuit et Brouillard é hoje em dia recomendado no quadro do ensino escolar pela Bundeszentrale für politische Bildung, que o preconiza para a aquisição de conhecimentos cinematográficos de base. Nuit et Brouillard figura a esse título numa lista de trinta e cinco filmes recomendados, nomeadamente ao lado de Nosferatu, The Gold Rush, Bronenosets Potyomkin, Rashomon, The Wizard of Oz ou ainda Vertigo... Passado o tempo das cópias passáveis, tiradas por economia em preto e branco, administradas como um remédio amargo a alunos tetanizados, o olhar das novas gerações da Alemanha reunificada sobre o filme pode doravante debruçar-se sobre a sua vertente cinéfila.»

Sylvie Lindeperg, “Nuit et brouillard” – Un film dans l'histoire,
Odile Jacob, Paris, 2007, p. 230-234
[trad. minha, com a amável autorização da autora;
agradecimento a Nuno Lisboa, a quem devo o conhecimento da obra e o seu empréstimo].

Mise en abîme #5: “Ende”


Porque termina NACHT UND NEBEL, a versão alemã de NUIT ET BROUILLARD de Alain Resnais, pelo menos numa das cópias de distribuição, e a julgar por esta inserção em DIE INNERE SICHERHEIT aparentemente confirmada por Michael Baute numa cópia gravada da televisão alemã, com este inesperado cartão de “Ende”, que quer dizer “Fim”, quando a versão francesa original não o possui?

Não termina igualmente NUIT ET BROUILLARD com “o grito não se cala”, aliás, na legendagem portuguesa ainda mais explícita, “os gritos sem fim”? Então, depois dos gritos sem fim, o “fim”? O fim do filme, claro! Era apenas um filme, afinal...
Como esclarecer este mistério alemão, esta originalidade? Talvez tenha sido só uma questão de pressa. Pressa em pôr-lhe fim.

Mise en abîme #4: Filmes-problema


Segundo excerto da entrevista a Christian Petzold
.

André Dias – Afirmou que não gostava de filmes-problema. O que quer dizer? Não deseja que as pessoas extraiam problemas dos filmes? Ou não percebe como podem as pessoas usar os filmes para pensar?
Christian Petzold – Do que não gosto são de problemas que antecedem os filmes. Tal como não gosto do mesmo em literatura. Gosto que tenham um tema, mas que durante a escrita se perceba que esse tema está a conquistar a sua estrutura, arquitectura e autonomia, e que o escritor se está a perder. Nos bons filmes vê-se a luta do filme para perder o seu controlo. Nos maus filmes vê-se tudo o que o produtor e o realizador queriam, as ideias realizadas. Por isso é que os westerns e os filmes policiais americanos, mesmo aqueles com final feliz e estruturas de género, são tão complexos. Mais complexos que os filmes alemães dos anos setenta, nada complicados; há o pai nazi e por aí em diante. Odeio este tipo de problemas, quando as imagens são apenas substitutos das palavras, ilustrações.

Mise en abîme #3: Não somos suficientemente fortes


Excerto de uma entrevista a Christian Petzold, realizador alemão do filme DIE INNERE SICHERHEIT (2000), sobre o excerto vídeo que mostrámos em baixo em «Mise en abîme #1». A entrevista completa
, realizada aquando da sua presença em Lisboa no ciclo «Nova Escola de Berlim», será publicada aqui na estreia do seu último filme YELLA.

André Dias – É interessante o que acontece na sequência de DIE INNERE SICHERHEIT em que a jovem personagem feminina à deriva acaba por ir dar a uma aula onde estão a mostrar NUIT ET BROUILLARD. O professor faz-lhe estranhas perguntas, uma espécie de lavagem ao cérebro...
Christian Petzold – Quando eu andava na escola, havia uma altura em que víamos filmes à tarde. Eram sempre muito chatos. Por vezes, havia um bom, como EFFI BRIEST (1974) de Fassbinder ou assim. Na maior parte dos casos, tratava-se de filmes com temas, que se podem discutir depois. Odeio este tipo de filmes! Ou seja, filmes com um problema.


Ilustrações...

Problemas ilustrados, com imagens. Tinha catorze anos e vimos NUIT ET BROUILLARD de Alain Resnais. Ficámos completamente chocados. E odiámos o professor que nos mostrou o filme, porque nos tinha tornado culpados de todos aqueles crimes. Penso que ele tinha um pouco de razão. Vivíamos nos anos setenta, tínhamos muito dinheiro, a Alemanha era um país rico, e as casas em que vivíamos eram fundadas sobre esses crimes. Sentíamos isso. Mas o professor também era culpado. Era muito duro: “Não conseguem perceber isso no filme? Não vêem o filme!” Como se estivéssemos no Processo de Nuremberga enquanto alunos. Disto lembro-me.
Mais tarde, quando comecei a ser um cineasta, um nerd ou algo assim, vi o filme pela segunda vez. E era um filme fantástico! E, quando percebi que o Georges Delerue tinha composto a música [na verdade, Hanns Eisler; Delerue fez apenas a orquestração], Alain Resnais era o realizador, Louis Malle tinha feito a câmara [apócrifo; a fotografia é oficialmente de Ghislain Cloquet e Sacha Vierny], que o Chris Marker tinha também trabalhado no filme [como assistente de realização], compreendi que este tinha sido, na verdade, o primeiro filme da Nouvelle vague. Por outro lado, sabemos que os alemães abandonaram o Festival de Cannes de 1955 por causa dele. Por isso, para mim, este filme é História, a história viva...
Depois, li nas biografias dos terroristas da RAF [Facção do Exército Vermelho] que este filme tinha constituido para eles uma linha de fronteira. A partir do momento em que o viram não podiam fazer parte da vida alemã normal. Há uma culpa que se tinha que retribuir, tinha que haver vingança. Nesta cena de DIE INNERE SICHERHEIT, queria mostrar todos estes aspectos num único momento.
Foi também uma situação muito dura, porque o homem que faz de professor tinha sido ele próprio professor anteriormente. Sabia exactamente o que eu estava a tentar fazer. Foi muito duro com os alunos, que eram verdadeiros alunos de Hamburgo. Quando estávamos a filmar, os mais jovens riam-se, porque sentiam-se um pouco envergonhados. Não tinham visto o filme anteriormente, viram-no ali do princípio ao fim, e a seguir começámos a filmar. Tinham ficado impressionados, e então o professor entra... Pode ver-se nas suas caras que estão chocados, como eu fiquei chocado vinte anos antes...


Mas conhecia a extensão daquilo a que chama de crimes?
Já tinha visto imagens antes. Conhecíamos imagens de Auschwitz e doutros sítios. Mas não foi por essa razão. Foi mais o comentário, as palavras, as da versão de Paul Celan, que dizem: “Que estamos a fazer agora? Onde estaremos quando os novos nazis chegarem? Seremos suficientemente fortes?” Se me perguntarem, digo que não o somos.

Mise en abîme #2: Comentário áudio

Barbara Auer – Como chegaste a este filme?
Christian Petzold – Quando tinha a mesma idade que Jeanne [a jovem personagem feminina de DIE INNERE SICHERHEIT], vi este filme [NUIT ET BROUILLARD]. Nessa altura, traumatizou-me profundamente.
Na escola?

Sim... Acho que é, ainda hoje, o único filme sobre Auschwitz. O único filme que não mostra apenas, mas permite conhecer Auschwitz.
Acho a voz estranhíssima, rude... daquele tempo. Fica-se a pensar que os nazis falavam assim, apesar do que é dito.
É a locução alemã, traduzida da locução francesa para alemão por Paul Celan em 1955. O filme esteve em Cannes nesse ano e os alemães abandonaram em protesto, porque este filme enfraquecia a história da Alemanha. Foi um enorme escândalo.
No início dos anos 60 voltou à Alemanha, através dos cineclubes, onde se o podia ver na versão original. Podemos dizer que foi um filme extremamente importante para 68. Nele percebe-se que 68 é uma reacção contra os pais nazis.
A primeira geração da RAF [Rote Armee Fraktion/Fracção do Exército Vermelho]...
A rapariga está a ser responsabilizada pelo professor por uma coisa que conhece demasiado bem [os pais dela são ex-militantes armados de esquerda]. Está a ser castigada por uma coisa que conhece de corpo inteiro. Acho a cena brutal.
Vejo este professor como um esquerdista desiludido. É assim que imagino aqueles professores dos finais dos anos 70, que acham que os alunos de hoje só querem portáteis, dvds, música americana...
Alguns sim, hoje estão mesmo desiludidos. Eram jovens quando vieram para a escola...
O irem para a escola acabou-lhes rapidamente com a juventude! É certamente um professor de esquerda, pelos filmes que mostra e por fazer perguntas relacionadas com um conhecimento de história. E então chateia naturalmente a rapariga, massacrando-a bem mais do que o necessário...




Comentário áudio de DIE INNERE SICHERHEIT, por Christian Petzold (realizador) e Barbara Auer (actriz que faz de mãe da rapariga), sobre as imagens do excerto que mostra NUIT ET BROUILLARD.

Mise en abîme #1: «Nacht und Nebel» em «Die innere Sicherheit»


A inclusão mise en abîme do excerto final de NUIT ET BROUILLARD (1995) de Alain Resnais, na versão alemã traduzida por Paul Celan, no filme DIE INNERE SICHERHEIT (2000) de Christian Petzold, com Julia Hummer. Primeira parte de uma série que procura antecipar parcialmente a apresentação de Sylvie Lindeperg sobre «Nuit et Brouillard — Un film dans l'histoire» no Doc's Kingdom de Serpa, a 20 de Julho.
Dado não haver uma edição portuguesa deste filme, e tendo em conta a singularidade da tradução alemã de «Nuit et brouillard» de Jean Cayrol feita pelo poeta Paul Celan, ensaia-se aqui uma legendagem em português que lhe faça justiça.
Agradecimento a Jorge Teixeira e Ana Eliseu pela participação na tradução.
Sugestões de correcções são extremamente bem-vindas.

A epifania que nos resta (cont. IndieLisboa 2008: #16)

Num dos filmes mais bem comportados (e por isso também recompensados) do IndieLisboa 2008, o já referido YE CHE (o tal NIGHT TRAIN) de Diao Yinan, antes do seu estéril final em aberto, algo de curioso tinha acontecido de modo a tornar possível que a personagem feminina, exposta à situação limite de ter compreendido que o seu amante se prepara para a matar, ou pelo menos considera plausivamente essa hipótese, tenha afinal conseguido suster a fuga, retornar e submeter-se aquilo que tiver que ser.
No cinema contemporâneo, creio que as situações deste tipo, de revelações epifânicas, tendem a concentrar-se num elemento particular e crescentemente violento, muito mais certamente que a violência propriamente humana, já demasiado codificada, que é a presença dos animais.
No dito filme surge então, a dado momento, uma cena com um animal, vinda do nada, como uma contemplação súbita, e aparentemente injustificada, pela personagem ao mundo que a rodeia. Trata-se de um cavalo, que a mulher em fuga observa de repente na estrada a ser brutalizado pelos homens que serve, que o querem forçar a seguir puxando a carroça a que está preso. À medida que o cavalo resiste, vai sendo sujeito a vergastadas mais violentas. Depois de ver isto, a mulher estanca, não conseguindo continuar. Pensará, eventualmente, que não vale a pena viver assim, e que mais vale voltar para trás e aceitar o seu próprio destino, qualquer que ele seja. (Talvez haja aqui uma outra metáfora infiltrada, sobre a qual não me quero, no entanto, debruçar.)
O que me interessa voltar a salientar é como a introdução de um animal num filme altera hoje decisivamente o modo como o espectador se relaciona com o que nele ocorre, mas também com a própria consideração do que é permitido a um filme. Quer dizer, a definição do âmbito da acção em que um filme se justifica.
Não há a mesma tolerância, aliás, diria que não há nenhuma tolerância para o que pode ser representado por um animal, em particular a violência que sobre ele pode ou é efectivamente exercida. Talvez isto não seja um elemento completamente novo, mas foi certamente acentuado nos últimos anos. Parece haver uma hipersensibilidade aos animais, que, entre outros efeitos, torna as próprias personagens passíveis de obediência a essa alteração do comportamento e expectativas perante a vida animal, como neste filme chinês. A vida animal torna-se, no momento da sua mais brutal e generalizada manipulação, a epifania que nos resta.
A esta austeridade e controlo por parte do espectador, movido pela crescente má consciência social, há, no entanto, que responder com perversidade, como em geral faz Kiarostami, e não deixar os filmes cair no jogo da censura exercida pelo espectador. É assim que, no final de SEHNSUCHT de Valeska Grisebach, um homem, depois de construir uma casota em madeira para um coelho, e, profundamente infeliz com o desenvolvimento dos seus acidentados amores sinceros (a que pelo menos uma parte assinalável do público permanece insensível), tenta suicidar-se com uma caçadeira apontada ao coração. Hesitando, pousa a caçadeira, volta a pegar no coelho ao colo e vemo-lo fazer-lhe festas. Observamos, em seguida, o coelho comer vagarosamente um raminho de erva na casota. Até que, de súbito, corta para o homem que dispara a caçadeira contra o seu próprio corpo, não contra o do animal. Este coelhinho “armadilhado”, foco da atenção mais sentimental e infantilizada, um dos aspectos mais pregnantes da relação doentia que mantemos com os animais hoje, permite destruir as expectativas desinteressadas do espectador, obrigado subitamente a trocar essa atenção por uma outra, pelos sentimentos profundamente tristes de um homem sujeito ao amor, que se nos tornaram vagos, mas que o filme, não se deixando distrair, procura corajosamente realçar.

O clichê do final aberto (cont. IndieLisboa 2008: #15)

Outrora tínhamos direito aqueles finais felizes, com as personagens, sobreviventes dos acontecimentos de natureza dramática, erguidas contemplando esperançosas o horizonte ventoso, mas pleno de alegria, do futuro vindouro, enquanto a palavra “Fim” se incrustava em cima delas. Era o fim do filme, e era também o fim da vida delas que nos dizia respeito. Havia uma solidariedade entre estes dois fins.
O cinema moderno acabou felizmente com esta solidariedade, bem como, e sobretudo, com aquela enjoativa felicidade. Os finais começaram a perturbar, com personagens que não se sabia o que pensavam, para onde iam, com quem ficavam, etc. Enfim, uma trupe de baralhações que indicavam que o filme, por circunstâncias várias, acabava ali, mas também que, de igual maneira, podia ter continuado indefinidamente, já que não se reconhecia mais nenhuma hierarquia entre os acontecimentos passados e futuros, entre os que tínhamos acabado de ver e a vida que estava por vir.
Mas aquele que era talvez o mais evidente paradigma do cinema moderno, o final aberto, tornou-se um insuportável clichê, depois de ter sido uma das suas poucas descobertas rigorosamente adoptadas pela generalidade do cinema contemporâneo. Agora não há filme que se tenha por respeitável que não acabe assim em meias-tintas. Não se sabe bem o que aconteceu, não se quer condicionar a leitura do espectador, e outras banalidades destas, parecem dizer os filmes, encolhendo os ombros, dizendo que têm que fazer pela vida e pedindo desculpa por acabarem assim.
Ainda recentemente, um dos premiados do IndieLisboa, o filme chinês, falado em mandarim e em dialecto de Shaanxi, NIGHT TRAIN (estranho nome para um filme chinês!) de Diao Yinan, acabava com as personagens a prepararem-se para entrar numa barcaça que eventualmente precedia uma desgraça que não pudemos presenciar. Por uma vez, gostava de ver a personagem a afogar-se mesmo. Ou então não, a salvar-se e a continuar com a sua vida, miserável ou remediada, como a de nós todos. A inesperada abertura transformou-se progressivamente num fechamento, numa facilidade a que obedecem as correcções artísticas.
Vem-me à cabeça uma excepção, assim de repente. O voluntarioso (e expressamente deleuziano) LADY CHATTERLEY de Pascale Ferran acabava em rigoroso tom menor, sem mais coisas, e, principalmente, sem qualquer presunção nessa menoridade.
Mas, para mim, a luta contra o clichê do final aberto, mesmo que ainda numa forma incipiente, encontra-se em muitos dos filmes da dita Escola de Berlim. Essa é aliás uma das suas pedras-de-toque, um dos seus mais valiosos sinais, aquilo que permite distingui-la de outras verdadeiras ou supostas “novas vagas” contemporâneas. Nela parece vislumbrar-se um primeiro esforço de superação, ou pelo menos reformulação, desse bloqueio da abertura, da passagem para lá do aberto. Seja pela via cómica ou da irrisão (BUNGALOW e MONTAG KOMMEN DIE FERNSTER de Ulrich Kohler), pela explícita tematização da abertura (SEHNSUCHT de Valeska Grisebach), pelo cúlmino decisivo e sem infecundas ambiguidades (DIE INNERE SICHERHEIT, GESPENSTER, YELLA de Christian Petzold), pelo esbatimento (FERIEN de Thomas Arslan, MARSEILLE de Angela Schanelec) ou pela suspensão precoce à beira da incompreensão (NACHMITTAG de Angela Schanelec).
Outros lutam ainda por outra via de ultrapassagem, mesmo que conservando alguns traços da abertura. Em LA GRAINE ET LE MOULET de Abdellatif Kechiche, esta abertura é largamente deceptiva. A um acumular da tensão narrativa, à sábia e quase perversa gestão das expectativas generosas que alimentámos pelo destino daquelas personagens, o filme oferece afinal uns quantos golpes severos, de sinal também contraditório (a síncope do pai, o melhor cuscuz destinado ao sem-abrigo, a dança bem acolhida pelas filhas, a feitura do cuscuz pela amante inábil, a suspeita do insucesso culinário do restaurante, etc.), e cuja ambiguidade só aparentemente permite pensar que tudo acabaria em bem, que aquele sonho precário se realizaria plenamente. Muitos espectadores não aguentam esse embate deceptivo, e recusam-se a aceitar que, precisamente no falhanço, fica salvaguardada a força do gesto, a alegria da vida.

Meros filmes em Junho


La graine et le moulet /
O segredo de um cuscuz
Abdellatif Kechiche
2007, 151’
14h30, 18h15, 21h30, (00h30) – King 1
13h, 15h50, 18h45, 22h
Monumental 1, Lisboa (tb. Porto)


Lancelot du Lac
Robert Bresson
1974, 85’
3ª, dia 3, 21h30 – Cinemateca*, Lisboa

I fidanzati / Os noivos
Ermanno Olmi

1963, 80’
Eram os anos 60
4ª, dia 4, 19h30 – Cinemateca

My darling Clementine
John Ford
1946, 95’
4ª, dia 4, 21h30 – Cinemateca

Flaming creatures
Jack Smith
1963, 45’
Eram os anos 60
5ª, dia 5, 19h30 – Cinemateca

2001: A space odissey
Stanley Kubrick
1968, 140’
6ª, dia 6, 21h30 – Cinemateca

Wavelength
Michael Snow

1967, 45’
6ª, dia 6, 22h – Cinemateca

Tsvet granata-Sayat Nova /
A cor da romã
Sergei Paradjanov
1969, 70’
2ª, dia 9, 22h – Cinemateca

À flor do mar
João César Monteiro
1986, 143’
4ª, dia 11, 19h30 – Cinemateca

He who gets slapped
Victor Sjöström
1924, 78’
2ª, dia 16, 15h30 – Cinemateca

Deus e o Diabo na
terra do sol

Glauber Rocha
1964, 115'
Eram os anos 60
2ª, dia 16, 19h – Cinemateca

Mariya
Aleksandr Sokurov
1988, 40’
3ª, dia 17, 22h – Cinemateca

Vittorio De Seta
Surfarara
1955, 11’ 4ª, dia 18, 10h
Isole di fuoco
1955, 11’ 6ª, dia 20, 10h
Doc's Kingdom 2008*
Cineteatro Municipal, Serpa

La vallée close
Jean-Claude Rousseau
1995, 140’
Doc's Kingdom 2008
4ª, dia 18, 15h
Cineteatro Municipal, Serpa
com a presença do realizador

Jeanne Dielman, 23 Quai du
Commerce 1080 Bruxelles

Chantal Akerman
1976, 201’
Cinema no feminino
5ª, dia 19, 21h30
Instituto Franco-Português*, Lisboa

Sopralluoghi in Palestina per
il Vangelo secondo Matteo
Pier Paolo Pasolini
1965, 55’
Doc's Kingdom 2008
6ª, dia 20, 10h
Cineteatro Municipal, Serpa

Touch of evil
Orson Welles
1958, 108’
4ª, dia 25, 22h – Cinemateca

Les maîtres fous
Jean Rouch
1954, 28’
6ª, dia 27, 22h – Cinemateca

Liebelei
Max Ophuls
1932, 85’
2ª, dia 31, 19h – Cinemateca


[apenas filmes vistos, sem repetições]


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