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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Mise en abîme #6: «Conflito de gerações na RFA» por Sylvie Lindeperg (trad.)



«Na Alemanha Federal, Nuit et Brouillard foi associado mais cedo {do que em França}, e de maneira mais incisiva, à perseguição e ao extermínio dos Judeus. Aquando da estreia do filme em 1956, o jornal conservador Frankfurter Allgemeine Zeitung qualifica Nuit et Brouillard de documentário “sobre o extermínio dos Judeus” e o órgão da confederação dos sindicatos alemães, Welt der Arbeit, evoca a seu propósito o assassínio em massa de “nove milhões de Judeus [sic]”, retomando assim, e reintepretando, o número do comentário de {Jean} Cayrol. No mesmo espírito, o jornal social-democrata Vorwärts evoca a estreia do filme em Frankfurt em ligação com o destino trágico dos trinta e seis mil Judeus da cidade deportados e assassinados, de entre os quais a emblemática Anne Frank.
Muito rapidamente também, as associações e as autoridades federais vão fazer uso do filme como resposta a algumas afirmações ou actos antisemitas. Nuit et Brouillard é assim programado em Berlim a 10 de Janeiro de 1960, no seguimento dos incidentes antisemitas do Natal de 1959, no decurso dos quais a sinagoga de Colónia foi profanada. E a segunda difusão televisiva de Nuit et Brouillard é programada a 9 de Novembro de 1978 no segundo canal, para comemorar a “Noite de cristal”.


Mesmo se o texto de Celan cumpre talvez o seu papel nesta pregnância do genocídio dos Judeus, é sobretudo preciso procurar a sua origem nas questões de memória específicas da Alemanha Ocidental. Contrariamente à França, onde a visão do deportado patriota-resistente, ela própria integrada num modelo heróico dominante, se tinha totalmente imposto no decorrer do pós-guerra, a RFA sofria a concorrência da RDA, que se tinha apropriado dos heróis da resistência ao “fascismo”. Sob a era adenaueriana, os discursos comemorativos e as políticas de indemnização e de reparação puseram o acento sobretudo nas vítimas judias do nacional-socialismo. Esta evolução acidentada da memória reencontra-se nos usos do filme pela instituição escolar alemã ocidental.
Nas escolas da Alemanha Federal, Nuit et Brouillard conheceu um destino contrastado. Desde a estreia do filme que a imprensa alemã se questionava sobre a pertinência de projectar Nuit et Brouillard nos estabelecimentos escolares. As opiniões divergiam de um jornal para outro, expressas frequentemente de forma taxativa, o que denunciava a importância atribuída pelos adultos a esta espinhosa questão da transmissão.
O governo federal tinha preconizado a difusão do filme junto dos alunos com mais de dezasseis anos e dos estudantes universitários. E, por intermédio da Bundeszentrale für Heimatdienst, uma centena de cópias do filme foram postas à completa disposição de associações e estabelecimentos escolares (algumas tiradas a preto e branco, por razões de economia...). Mas as orientações federais foram aplicadas de forma muito diversa à escala dos Länder.
Os ministros de Bade-Wurtemberg e da Baviera, que tinham recomendado o filme como ferramenta pedagógica, confrontam-se então a duras resistências por parte das associações de pais e de alunos, dos sindicatos de professores e de alguns conselhos directivos. Em Göttingen, foi a municipalidade que se opôs à difusão de Nuit et Brouillard nas escolas da cidade, pelo motivo da “brutalidade crescente da demonstração” não poder ter “um objectivo pedagógico” e não vir a suscitar senão “nojo e repulsa”. Na Westfália do Norte, pelo contrário, o filme foi mostrado desde o fim dos anos 50 aos alunos dos últimos anos do secundário.

Os efeitos dessas projecções são difíceis de avaliar; alguns testemunhos evocam, no entanto, essa primeira confrontação da geração do pós-guerra com os crimes do período nazi. Em 1962, o ano da introdução da Segunda Guerra Mundial nos programas escolares alemães-ocidentais, um professor de história contemporânea refere no seu relatório pedagógico “a recusa manifesta” dos seus alunos finalistas aos quais tinha projectado Nuit et Brouillard. O professor relata as afirmações de um deles:
“Por exemplo, agora o filme Nuit et Brouillard que foi mostrado na nossa escola; provocou, digamos, um grande riso (risos do grupo), é mesmo verdade! Era demais! Fizemos brincadeiras por cima, em todas as turmas. Aquilo preocupou-nos, mas não estávamos assustados.”

Para Andréa Lauterwein, esta reacção pueril explicar-se-ia sobretudo por uma falta de enquadramento pedagógico; os professores alemães da época teriam tendência a remeter-se passivamente a Nuit et Brouillard, que impunham aos alunos sem qualquer preparação ou explicação. A autora apoia-se em particular no testemunho da poetisa alemã Anne Duden, nascida em 1942, que descobriu o documentário no fim da infância:


“Vi o filme Nuit et Brouillard de Alain Resnais onde se mostra como montanhas de cadáveres são removidas com escavadoras. Tivemos de ver este filme na escola, mas não nos foram dadas explicações.”

A poetisa acrescenta que essa projecção constitui um choque tanto mais violento por essas imagens depararem com o silêncio dos adultos sobre a questão dos campos: “Acabava por se falar daquilo de uma maneira ou doutra e, ao mesmo tempo, não se falava de todo. Depois vê-se este filme, criança. É uma mudança na vida. O que aí se vê é pura loucura.”
Esta tomada de consciência, que se opera num perturbação indistinta, é imediatamente minada pelo mundo dos adultos:
“Agora a Alemanha não era senão uma zona [...]; posto de espera e fossa de assassinos; terrenos de ruínas e colinas de escombros, central de comandos e fossa comum, mostrada secretamente para que a visitemos, uma vez, na escola, através de Nuit et Brouillard, o filme de Alain Resnais, seguida e perseguida pelos comentários dos adultos: mera propaganda.”

Esta ausência de confirmação dos factos históricos, que ia por vezes até à denegação, devia alimentar a rejeição dos pais e a contestação das gerações do pós-guerra, que tomou uma forma particularmente aguda durante os anos 60 e no decénio que se seguiu. Para evocar esse violento conflito de gerações, Michael Schneider recorre por sua vez à melancolia de Hamlet, engendrada por um objecto paternal duplo, cujas duas faces seriam “o espectro do pai e o tio paterno assassino ocupando o trono”:


“Foi como se de repente o espectro do seu pai, vestido de uniforme nazi, lhes tivesse aparecido e acusado o seu pai dos crimes colectivos mais terríveis que uma geração cometeu durante este século. Pouco a pouco, o pai fantasmagórico tomou o lugar daquele com quem se tinha gentilmente almoçado e jantado durante vinte anos. E, tal como Hamlet, não estavam muitas vezes certos desse fenómeno ser apenas um espectro produzido pela sua imaginação, pela sua súbita suspeita, ou se, bem real, fazia aparecer a verdadeira natureza, até então escondida, do seu pai. Inclinaram-se então a dar mais crédito à voz do fantasma nazi do seu pai do que ao pai presente tornado cristão, liberal ou social-democrata. Mesmo se, entretanto, esse pai se tinha tornado um democrata convicto, os filhos disso tinham que duvidar, porque tanto tempo tinha mantido a sua falha em silêncio. ”

No quadro deste retorno espectral do passado, Nuit et Brouillard parece ter tido um papel importante, como elemento de um duplo procedimento de acusação dos assassinos hitlerianos e do silêncio amnésico de toda uma geração. Para inúmeros professores alemães que começaram a leccionar no contexto do pós-68, em conjunto com a transmutação maior que estes acontecimentos representaram na consciência alemã-ocidental, o filme permitia empreender com os alunos o exame crítico do passado nazi que lhes tinha faltado na sua própria juventude. A partir dos anos 70, o documentário de Resnais foi largamente difundido nas escolas da Alemanha ocidental, por vezes ao nível do ensino primário.


Neste aspecto, é significativo que Nuit et Brouillard abra, através do prelúdio de Eisler, o filme de Alexander Kluge, Die Patriotin (1979). A personagem principal é, com efeito, uma jovem professora de história que tenta actualizar diferentes episódios ocultos da história alemã. A heroína escava o passado nacional com uma pá, “objecto metafórico que deve servir para desenterrar o que foi escondido”, e elabora, a partir de fragmentos encontrados da história nacional, um outro “dispositivo memorial correspondente a um outro desejo de Alemanha, não a da RFA na qual ela vive e em que o passado nazi como se volatilizou, mas uma Alemanha em falta, por defeito, em sofrimento” (R. Robin).
Não é também por acaso que Margarethe von Trotta met en abîme
Nuit et Brouillard no seu filme Die bleierne Zeit (1981) que se inspira no percurso de Gudrun e Christiane Ensslin. A realizadora alemã explica:
“Queria demonstrar que o terrorismo, ainda assim, não nasceu do nada. Estava, ainda assim, ligado à nossa história. E toda a primeira geração de terroristas tinha pais que estiveram envolvidos [no] nazismo e [...] tinham antes recusado a sua culpabilidade. Portanto, Die bleierne Zeit {Os anos de chumbo} é para mim também um nome para os anos 50 em que nós – dado que sou da geração desses primeiros terroristas – [vivemos] como sob uma chapa de chumbo, em que sabíamos que havia qualquer coisa de grave no nosso passado, mas de que ninguém falava, mesmo nas escolas.”

No seu filme, a realizadora restitui, por intermédio de flash-backs, os momentos-chave da infância e adolescência das duas irmãs, Juliane e Marianne, a mais nova e menos revoltada mas que cairá no terrorismo.




Numa das sequências fulcrais, Margarethe von Trotta expõe, através de uma aula de literatura, a inadaptação do sistema escolar alemão, acantonado num recolhimento cauteloso nos valores de um passado longínquo. Juliane declara então ao seu professor que acha Rilke kitsch e que preferiria estudar Brecht e Celan. Ao professor, que lhe recrimina a estratégia de recusa, retorque ela assim: “E você, que procura evitar?”
A cena seminal, que parece determinar a trajectória da jovem Marianne, mostra-nos as duas irmãs assistindo, na companhia de outros adolescentes, a uma projecção de Nuit et Brouillard, aparentemente organizada pelo pai padre que vemos colocar-se como observador no fundo da sala. O filme de von Trotta conforma-se assim à história familiar de Gudrun Esslin: o seu pai Helmut era um pastor evangélico antimilitarista e antifascista que nunca se compremeteu com o regime nazi (aliás, como os pais de Andreas Baader e de Ulrike Meinhof). Assim, para estes três membros da Facção Exército Vermelho, a herança da culpabilidade foi legada socialmente, em vez de familiarmente; a sua violência dirigia-se colectiva e genericamente à geração “daqueles que tinham feito Auschwitz” e com os quais “não se podia conversar”. A propósito desta passagem ao acto e desta caída na violência, Michael Schneider assinala ainda:


“As acções espectaculares dos terroristas alemães lembram-me a célebre cena de Hamlet, em que este pede aos actores que representem perante o seu tio o assassínio do seu pai. Desde o seu início, a RAF não foi aquilo pelo qual se tomou (uma libertação por procuração das massas ainda adormecidas); foi antes uma acção assassina e suicidária visando o desmascarar dos assassinos.”

A escolha operada pela realizadora na sua longa citação de Nuit et Brouillard faz eco deste procedimento de desvelamento: o excerto começa na data de 1945, com a evocação do comprometimento dos industriais alemães, e inclui toda a meditação no presente, depois de kapos e oficiais terem negado a sua culpabilidade. Entretanto, as imagens de Belsen provocaram a saída de Marianne, seguida pela irmã, de lenço nos lábios, que vem reencontrar a mais nova chorando em frente aos lavatórios da casa de banho.
Esta citação de
Nuit et Brouillard pela realizadora alemã confere por sua vez ao filme de Resnais uma função similar àquela da pantomina shakesperiana. Esse dispositivo de espelhamento aparece como um distante relembrar daquele que foi o adoptado pelos Aliados em Nuremberga, com vista a ler a culpabilidade no rosto dos acusados; repetido no processo de Jerusalém, é doravante utilizado entre alemães no quadro de um conflito de gerações exacerbado.

Reencontramos o filme de Resnais em Die innere Sicherheit (2000) {cf. «Mise en abîme #1»}, realizado pelo cineasta alemão Christian Petzold. Esta ficção evoca o exílio, a fuga e, por fim, o retorno caótico à Alemanha de um casal de antigos terroristas e da sua filha Jeanne, de quinze anos de idade. Aqui o círculo parece fechar-se: a adolescente junta-se por acaso a um grupo de alunos do secundário e assiste com eles a uma projecção de Nuit et Brouillard. A sessão termina com uma diatribe do professor, amargo, que passa sermão aos jovens por causa do seu absentismo, enquanto Jeanne pega nas suas coisas e sai em silêncio. Assim, o único contacto da adolescente com a instituição escolar alemã faz-se por intermédio do filme de Resnais, aparecendo doravante como uma referência obrigatória e assinalando a institucionalização do filme na Alemanha. Piscadela de olho de Petzold ao jovem cinema alemão e a Os anos de chumbo, ao mesmo tempo que lembrança de infância de um cineasta nascido em 1960, a referência a Nuit et Brouillard revela uma ligação menos tensa com a história alemã. Como Margarethe von Trotta, Christian Petzold cita a última parte do documentário, mas limita o seu excerto ao epílogo a cores que se concluí estranhamente com um cartão de genérico de FIM... Com este palavra ENDE {cf. «Mise en abîme #5»}, uma página parece definitivamente virada.


Sinal dos tempos, com efeito, Nuit et Brouillard é hoje em dia recomendado no quadro do ensino escolar pela Bundeszentrale für politische Bildung, que o preconiza para a aquisição de conhecimentos cinematográficos de base. Nuit et Brouillard figura a esse título numa lista de trinta e cinco filmes recomendados, nomeadamente ao lado de Nosferatu, The Gold Rush, Bronenosets Potyomkin, Rashomon, The Wizard of Oz ou ainda Vertigo... Passado o tempo das cópias passáveis, tiradas por economia em preto e branco, administradas como um remédio amargo a alunos tetanizados, o olhar das novas gerações da Alemanha reunificada sobre o filme pode doravante debruçar-se sobre a sua vertente cinéfila.»

Sylvie Lindeperg, “Nuit et brouillard” – Un film dans l'histoire,
Odile Jacob, Paris, 2007, p. 230-234
[trad. minha, com a amável autorização da autora;
agradecimento a Nuno Lisboa, a quem devo o conhecimento da obra e o seu empréstimo].

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