Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A forma do novo (cont. IndieLisboa 2008: #14)

Entrava no Maxime, onde decorria um debate nocturno com José Luis Guerín, o realizador catalão de EN CONSTRUCCÍON, e José Manuel Costa, especialista de documentário. Vinha bastante animado, pois, ainda sob o efeito do filme CHARLY de Isild le Besco, tinha também revisto ROZ, do jovem realizador grego Alexander Voulgaris, a quem acabava igualmente de entrevistar. Estas lufadas de ar fresco cinematográfico tinham-me inspirado. É a surpresa, não a confirmação, que faz o alimento.
Invulgar, mas desejado, este estado de ânimo advinha do inesperado, do facto dessas obras, na sua particular estranheza e, numa delas, aparente amadorismo, terem conseguido consolidar uma expressão cinematográfica tão forte, tão inequívoca. Encontrei nelas mais uma evidência de que o gesto cinematográfico original nasce, mesmo que não por geração espontânea, numa liberdade imanente, que não tem de ser, nem é manifestamente nestes casos, demasiado constrangida por regras e ditames éticos e formais extrínsecos. Ou seja, (como escrevi confusamente uma vez no texto programático que inaugurou este blogue,) um sistema de realização, o gesto original de um autor, é algo de sumamente complexo, mas que parece obedecer a regras próprias intrínsecas, imanentes à obra, e não ao que circula, explicita ou tacitamente, de coercivo na sua margem.
Esta impressão tornou o discurso do debate que presenciava naquela noite, de (e em torno de) Guérin, já de si solene e pesado, bastante exasperante. Por contraste, que valor raro tomavam aquelas intuições jovens tornadas filmes, evidentemente chegadas à pele dos realizadores ainda isentos de cansaço. Este discurso, por sua vez, atingia pontos de maior esterilidade quando se concentrava nas dificuldades, facilidades e, por consequência, nos interditos que a actividade cinematográfica inevitavelmente (?) comporta.
Não será precisa cautela com tanta saliência de ditames éticos, tantas vezes precoces, especialmente na sua relação aos formais, por haver o perigo de que, em vez de criarem uma inteligibilidade geral dos gestos cinematográficos, possam apenas encarnar o discurso do seu sufoco, da própria esterilidade? Qual é afinal a génese do novo, que forma toma? Não cria a obra, no momento em que se compõe, a sua própria ética, obviamente mantendo relações com o exterior?
Saber se uma obra obedece ou não aos ditames, mais ou menos sofisticados, que circulam à volta do âmbito da sua recepção, mas que aparentam já ter perdido o contacto com a sua singularidade criada, talvez seja afinal bem menos importante que manter os olhos abertos para a aparição de outras, com as suas novas éticas imanentes. De que estamos, aliás, bem precisados.

«Je suis en train, vous le voyez, de dire que certaines audaces pourraient être devenues des académismes. Le cubisme cinématographique : mélange des temps, des perspectives, des régimes et des grains d'image. Le refus de la morale et de la psychologie. L'arbitraire de dire : il n'y a pas d'explication, c'est comme ça. La neutralité.»
Emmanuel Burdeau,
«Répétition générale», Cahiers (Journal Cannes 2008)

A dissecação da magia (cont. IndieLisboa 2008: #13)

Ao ver um filme somos várias vezes atingidos por “ideias” lançadas da tela na nossa direcção. Felizmente, por filme, e apesar de nos comoverem inconscientemente, apenas uma muito pequena parte chega a instalar-se decisiva e insistentemente, fazendo alarde, na nossa cabeça. Digo isto porque creio que é relativamente normal um espectador, para além de ir acompanhando a narrativa e a par de alguma, mas não muita, atenção aos pormenores formais, dedicar-se à elaboração vaga de algumas reflexões em paralelo, a que se viu obrigado. Sejam no fim de contas mais ou menos voluntárias, ou dedicadas a esclarecer a relativa obscuridade do filme, pouco interessa. Só pode haver um objecto meritório desse incómodo. A única coisa que interessa num filme é a sua magia.
Não vou tentar definir o que constitui essa magia. Existem outros termos possíveis para essa definição do que constitui o centro vivo de um filme. E não apenas porque seria particularmente difícil, e quase equivaleria à colocação perante cada um dos filmes vivos. Mas também, e sobretudo, porque se trata de um trabalho para ir fazendo aos poucos, defronte de cada filme, escrevendo ou fazendo outros filmes, etc., na sua continuação, com a sua herança, mas sem dependências excessivas.
Escrever um texto sobre um filme, sobre cinema, pode apenas ter como alcance a dissecação dessa magia. Insisto no termo “dissecação”, pese embora o seu sentido mórbido, porque impõe o lado de que se tem que situar o texto, que é o lado do filme. É a ele que deve uma particular e feliz obediência. Todos os seus eventuais méritos literários ou filosóficos estarão muito bem, mas de nada servirão se não contiverem o filme ou, pelo menos, a tentativa de expressão da sua magia. E os textos podem certamente ser redigidos de muitas formas diferentes, e todas elas funcionar (embora seja um fenómeno relativamente raro). Mas, se não afrontarem esta magia, se não a reconhecerem, se a não escolherem como objecto, se não tentarem a sua decifração ou prolongamento, é como se pertencessem a outro reino, a outra dimensão, bem mais prosaica, isenta de deslumbres e alcances, isenta do mundo que o filme nos ofereceu, em suma. Serão também meritórias à sua maneira, cumprindo as várias funções sociais que escrever um texto obedece simultaneamente. Mas o cinema ficou assim como que de fora. Obviamente, para estas contas não podem contar os filmes isentos de magia, que tornam a tarefa do dissecador quase impossível. Portanto, vejam bem a enormidade do que fica de fora. Não resta quase nada.

Ao pé da letra #2 (António Guerreiro)

«A indústria do livro e as suas boas intenções

Guilhermina Gomes, directora editorial do Círculo de Leitores, numa entrevista publicada na Única do passado sábado, defendia com estas palavras um programa editorial muito abrangente: “Eu não posso, nem devo, exercer um juízo de valor dizendo: este é um leitor menor, consome lixo”. Trata-se de uma daquelas frases que afirmam aquilo que negam e dão nome aquilo que não querem nomear. A hipótese de o livro se ter tornado objecto de uma indústria do lixo em grande escala encontra confirmação no espectáculo nauseabundo que a maior parte das livrarias – os terminais de produção – hoje oferecem.

Muitos outros sectores produzem tanto ou mais lixo, mas a nenhum deles foi concedido este privilégio de proclamar impunemente que trabalha para o progresso espiritual dos homens, da nação, e do mundo em geral. Os livros que são em si uma coisa boa, os leitores que por o serem já estão a cumprir os desígnios culturais que lhes garantem a passagem para um estatuto de maioridade: eis o discurso que editores e agentes oficiais de promoção da leitura repetem incansavelmente e encontra eco nos “boulevards” da opinião. Desta massa indiferenciada e acrítica salvam-se os livros dotados de uma resistência que os protege dos seus amadores e até (às vezes, sobretudo) dos seus autores.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 24.5.2008.
[publicação retroactiva]



O espectador ocioso #8: Surround

Os historiadores do som no cinema, que não são na verdade assim tantos, acentuam bastante um aspecto pouco conhecido. Nos primórdios do espectáculo cinematográfico, para além das orquestras, enfim, talvez mais fanfarras, que musicavam o filme em directo, uma parafernália sonora à entrada dos cinemas chamava a atenção para a espectral novidade. Ou seja, tudo leva a crer que no cinema mudo era impossível ouvir o que quer que fosse, tal a barulheira.
Hoje, os cinéfilos mais aprumados gostam de fazer alarde da sua exigência de silêncio. Só assim podem usufruir de cada gotinha de som vinda do filme na sua direcção. Separam-nas, aliás severamente, das outras gotinhas ou cargas de água sonoras, externas ou internas à sala, com as quais não estão em concordância. Tosses, cochichos, ressonares, telemóveis a tocar e outros sons que os corpos humanos, infelizmente, não conseguem privar-se de fazer, são intolerados. Excepção a esta rigorosa severidade parecem constituir os risos, que, pese embora alguns mais radicais os tentem censurar ou discretamente coartar, continuam a circular livremente pelas mais consideradas salas, já que chorar não faz barulho por aí além. É como se o cinéfilo quisesse progressivamente trazer a sua experiência solitária de espectador caseiro para o espaço comum da sala.
Já não sei quando foi nem que filme estava a ver. O som estava a confundir-me. Não percebia donde vinham alguns dos seus acontecimentos. Esta incapacidade de os conseguir situar, de me conseguir decidir acerca da sua integração ou não na categoria de coisas que fazem parte do filme, que merecem consideração estética, estava a deixar-me, confesso, muito baralhado. Talvez fosse o espaço sonoro do filme, parte irremissível da sua contribuição criativa, que se estivesse a confundir com os ruídos vindos de fora daquela sala. Teria sido naquela bendita sessão do Fórum Lisboa, que foi marcada para decorrer ao mesmo tempo, e profundamente incomodar, o cocktail ali ao lado, organizado também pelo festival, com música e tudo, e cujo frenesim era sobremaneira perturbado pelo som do filme?
Foi durante este enervamento que tive uma bizarra ideia para um filme, ou melhor, para uma série de filmes, relacionada com o sistema de distribuição de som, agora comum nas salas, que é o Surround. O som destes filmes seria, a partir de agora, criado com o fim último de proceder à confusão e irritação dos espectadores na sala, tirando partido das maiores potencialidades expressivas desta espacialização do som. De que outra maneira empreender o combate às fontes sonoras, externas e também internas, que rompem o bloqueio ao sagrado silêncio da sala? Creio que apenas integrando-as na própria experiência da fruição do filme. Cobertos pelas argúcias de espacialização do som pelo Surround, a que experiências poderiam almejar os filmes? Por exemplo, que nos fizessem sentir um desastre natural a acontecer, não na tela, onde as personagens continuariam despreocupadas a tomar o seu chá palavroso, mas algures lá fora, no longuínquo fora da sala. Levantar-se-iam os espectadores com a expectativa de um terramoto? Talvez não, pois devem estar habituados às salas do Paulo Branco, onde o Metropolitano passa constantemente fazendo-se sentir. Mesmo assim, outras contrariedades poderiam ser imaginadas para tornar a experiência na sala mais realista, como altercações, cenas de pancadaria e outras discussões filosóficas no átrio vizinho. E tudo isto pelas virtudes do som colocado onde se quiser.
Mesmo dentro da sala há muitos ocorrências por explorar. Por exemplo, a precisão da colocação de determinado som, um desses catalogados como incomodativos para a fruição cinematográfica, no lugar ocupado por um espectador na sala, poderia desencadear reacções vizinhas de pedidos de silêncio mais ou menos agressivos. O espectador mais atento e circunspecto pareceria afinal ressonar; outro, tão ciente dos seus fluxos, pareceria incontinente; e assim por diante.
São sugestões simples estas que deixo, talvez úteis para que a experiência da sala não perca o seu esplendor, por comparação com o dvd visto em casa ou as instalações e performances nos museus, contextos onde é sabido que existe muito mais tolerância para si próprio e para os outros.

Ao pé da letra #1 (António Guerreiro)

«A epifania da verdade, na versão de Pacheco Pereira

José Pacheco Pereira, comentando, no Público do passado sábado, os procedimentos dos realizadores do programa da RTP onde foi entrevistada Manuela Ferreira Leite: “Durante grande parte do tempo, o rosto nem cabia no ecrã, de tão próximo estava o olhar da câmara”. Mas “há um Deus especial que protege os bons e faz a escrita do mundo pelas linhas tortas dos maus”, de tal modo que “aquela face desprovida de qualquer defesa, exposta ao escrutínio (...) dos espectadores, transmutou-se numa beleza muito especial, muito rara – a da verdade”.
Leitor de Weber, JPP poderia ter identificado o carisma de MFL. Mas não, ele assistiu a uma epifania da “aura”, a um modo de aparição que distancia o objecto por mais próximo que ele esteja. Esta distanciação na proximidade (segundo a definição de “aura” de Benjamin) significa que o objecto permanece inacessível. Daí a conclusão de JPP: quanto maior é o desejo de possessão das câmaras, mais o objecto do seu desejo resiste a ele. Porque, evidentemente, a “verdade” pertence a uma outra ordem que não é a da exposição secularizada – é o atributo de uma autoridade religiosa. Se quisermos perceber a persistência do teológico-político, sob a forma de um culto prestado a uma autoridade temporal que lhe concede uma máscara religiosa, não devemos dispensar este texto de JPP.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual
, 17.5.2008
[publicação retroactiva]


Quem enfia a carapuça?

O resultado [do ciclo] também poderá ser interessante para aqueles que se assemelham a um dos personagens de Seis problemas para Don Isidro Parodi, escrito a quatro mãos por Borges e Bioy Casares: são capazes de escrever uma História Científica do Cinema recorrendo “para a documentação, à sua infalível memória de artista, sem contaminá-la com uma visão directa do espectáculo, sempre imperfeita e falaz”.
Assim termina o texto de apresentação do ciclo “Eram os anos 60”, que decorre de Maio a Setembro na Cinemateca, assinado por Antonio Rodrigues, programador.

A fixação autobiográfica



Uma das grandes dificuldades da condição autobiográfica para a leitura das obras cinematográficas reside no seu carácter eminentemente extrínseco. É líquido que um espectador espantosamente ignorante dessa indicação autobiográfica, desse qualquer parentesco entre o autor e a obra por intermédio de uma vida suposta, encontre na sua visão isolada a evidência dessa autobiografia? E que sem ela o espanto perante a obra se perca? Como distinguirá o espectador essa vida privilegiada, sem informação conveniente, de todas as outras vidas que correm no ecrã? No ecrã têm todas a mesma dignidade. De que valerá uma obra, ou melhor, que força terá, se depender de um qualquer elemento extrínseco que a vem colmatar? Sabemos que as obras não são, a maior parte das vezes, acolhidas num campo neutro e despido de elementos conhecidos, de informações várias, mas isso não pode significar fazê-las depender desse contexto extrínseco.
É por isso que parece necessário encontrar as, porventura difíceis, evidências intrínsecas do autobiográfico num filme. Da belíssima trilogia de Bill Douglas, composta por MY CHILDHOOD, MY AIN FOLK e MY WAY HOME, recentemente programada por Augusto M. Seabra na Culturgest, poder-se-ia dizer que o próprio título tendencialmente denuncia essa condição autobiográfica. Sem dúvida, embora haja casos semelhantes onde tal não se passe assim. Creio que podemos encontrar nesta trilogia um outro elemento, este sim inequivocamente intrínseco à própria matéria cinematográfica. Aliás, trata-se de um elemento da condição autobiográfica que tem quase uma dimensão estrutural dessa mesma matéria cinematográfica.

Nestes três filmes, acompanhamos alguns momentos, por vezes isolados, da infância e, por fim, da adolescência tardia, de um rapaz escocês de vida extremamente carenciada e por demais confusa e exaltada em termos de relações familiares. As cenas aparecem bastante isoladas, não apenas por relação a um contexto dramatúrgico envolvente, mas também no que diz respeito às personagens, quase sempre sozinhas no plano. Pode especular-se, talvez, que isso se deve à natureza da rememoração dos acontecimentos da infância, que surgem desgarrados e sem uma continuidade vincada entre uns e outros. Como se se tratasse de uma convocação da dita memória fotográfica, daquelas imagens que nos ficam na cabeça, muitas vezes inexplicavelmente, pois não dizem respeito aparentemente a acontecimentos demasiado marcantes, e que somadas constituem a trama irregular, que pode ser reconstituída, do que foi uma infância, por exemplo.
Esta insistência, no interior destes filmes, na concentração em elementos espaçados, criteriosamente definidos pela imagem quase como arquétipos, poderiam ter lamentavelmente conduzido a uma esteticização fotográfica de carácter sentimental que se tornaria insuportável. No entanto, há destes filmes, de cuja força é tão grande que até o abismo perigoso que neles se abria, a sua tentação estéril, se expõe como vencido. E por isso, e progressivamente na trilogia, embora talvez concentrada no segundo filme, MY AIN FOLK, e no início do terceiro, MY WAY HOME, também porque começamos, com a acumulação, a entender com o corpo o gesto singular do realizador, se torna clara a sua grande audácia.


Dentro das cenas vemos que, pouco a pouco, certos elementos, certas personagens se fixam à vez, estancadas num tempo que não foi provavelmente recuperado pela memória. Essa fixação faz com que haja, dentro do plano, elementos fixos e outros que continuam móveis, ou seja, vivos. É uma diferenciação muito poderosa. No entanto, não parece obedecer a uma atribuição fácil, por exemplo, aos mais velhos, dessa fixidez. São todas as personagens que potencialmente divergem, seja quando isoladas, seja quando convocadas em conjunto com outras no mesmo plano, mas com quem não partilham afinal a mesma localização precisa na memória. Elementos dispares podem ser assim agregados, produzindo a tão desejada ficção narrativa, mas deixando os traços sensíveis da sua origem fragmentária.
Eis aquilo que parece constituir uma fixação especificamente autobiográfica. A beleza do gesto de Bill Douglas reside muito em nos dar essa fixação fotográfica da memória introduzida aos poucos na continuidade do filme, e ter-nos poupado a uma partilha, que seria inevitavelmente falseada, da memória duma infância, de uma vida, que não nos pertence a nós por igual.



Uma ideia de programação #1: Augusto M. Seabra



A programação é a continuação da crítica por outros meios
Uma conversa com Augusto M. Seabra, crítico cultural

Pretendo iniciar aqui uma pequena série de conversas e textos dedicados à ideia de programação e às suas variadas concepções. Procuro interrogar o gesto particular do programador, que creio não se confunde com o dos comissários e curadores das artes plásticas, no momento em que este se torna evidente. Quer dizer, quando simultaneamente esse gesto é presente, sob a forma da passagem dos filmes em sala, e nele se nota uma originalidade.
Esta série poderia ter-se iniciado mais cedo e de várias maneiras, seja interrogando a intrigante actividade ocasional de programador do realizador Pedro Costa, seja com António Rodrigues da Cinemateca sobre o problemático ciclo «História permanente do cinema», ou ainda com o prolífero programador independente Ricardo Matos Cabo. Mas, também pela particular importância que o seu trabalho teve, enquanto crítico do jornal Público, no desenvolvimento da minha própria cinefilia, faz todo o sentido começar com Augusto M. Seabra. Os seus longos e intricados textos oriundos de paragens longínquas, que ocupavam várias páginas dos suplementos culturais do Público dos anos 90, eram uma delícia ansiada.
Lembro-me, por entre outras descobertas e suspeitas lançadas, da fruição antecipada na sua escrita de BLUE de Derek Jarman ou SÁTANTANGO de Bela Tárr.
Para além de crítico cultural, em particular de cinema e música erudita, no Público, jornal de que foi um dos fundadores, Augusto M. Seabra teve igualmente uma importante participação na excelente e defunta Revista do Expresso, onde escreveu sobre SHOAH de Claude Lanzmann, por exemplo. Foi também membro do júri de vários festivais internacionais, entre os quais Cannes, e anima o blogue «Letra de forma».
Esta entrevista é também uma homenagem, sincera, em terra de pobres e mal-agradecidos, no dia em que se inicia o seu ciclo «Autobiografias / Autoficções» na Culturgest, em Lisboa.

André Dias – Podemos talvez começar com um pequeno historial das suas programações de cinema. De que actos marcantes se recorda?







Augusto M. Seabra – Houve alguns programas realizados em colaboração com instituições estrangeiras. Sem prejuízo do meu trabalho em Roterdão ter sido, para mim, de razoável relevância, o mais importante foi a Mostra de Pesaro de 88, dedicada ao cinema português. Por cá, o primeiro momento marcante foi o segundo ano da Semana dos Novos Realizadores no Fantasporto, que me pediram para programar. Uma apresentação de novos realizadores, como nunca mais vou conseguir, que incluía Hal Hartley, Todd Haynes, Sharunas Bartas, Arnaud Desplechin, Wong Kar-Wai... E ainda, em projecções especiais, porque não se enquadravam em primeiras ou segundas obras, mas eram autores não conhecidos em Portugal, fiz muita questão em que apresentar Sokurov e Edward Yang. Isto em 1992. Não teve consequências, ou não teve seguimento, porque essa selecção apareceu como um corpo excêntrico no meio do festival. Enfim, também se viu, pela sequência dos autores, que aqueles nomes eram extravagantes demais, concerteza sem futuro...
Depois fiz algo que ultrapassou a estrita programação cinematográfica. Os dois festivais do Monumental incluíam cinema, embora estivessem longe de se limitar a isso. Por exemplo, em 1995 passei pela primeira vez Takeshi Kitano. Em 1996, também Makhmalbaf. Por essa altura programei igualmente o ciclo de Cinema Positivo, que era obviamente determinado por questões de mobilização cívica e cultural. Mas, para além dessas, achava que se estavam a pôr questões-limite de figuração cinematográfica. Esta programação que fiz agora para o DocLisboa, «Diários filmados e autoretratos», olha retrospectivamente para isso. Entretanto, há dois anos no DocLisboa, fiz uma programação [«Histórias da Europa: nacionalismos, identidades e fronteiras»], em parte porque, para além de ter a ver com campos de interesses e de especialização minha, me interessava o campo da sociologia e da sociologia política, mas também pela oportunidade de passar um filme que eu achava muito importante, THE ISTER [(2004) de David Barison e Daniel Ross].
Simultaneamente, houve um envolvimento maior no programa geral do DocLisboa do ano passado, em que apareci como programador associado. Apesar de tudo, para salvaguardar a minha autonomia crítica, não devo ser um dos directores. Ser director tem também inúmeros aspectos que não me interessam. Continuo a pensar que sou, basicamente, um crítico. E que a programação é uma continuação das opções críticas, digamos. Parafraseando, para mim, a programação é a continuação da crítica por outros meios. Concebi com o DocLisboa uma nova secção que se chama «Riscos e ensaios», dedicada a questões formais, onde há várias portas de passagem com os «Diários filmados e autoretratos», que é a que me toca mais. Ter naquela secção um filme do Marcel Hanoun ou do Jean-Claude Rousseau são coisas, para mim, muito importantes. E, recentemente, programei também, na Culturgest, o Hou Hsiao-Hsien.

Essa continuidade entre a profissão de crítico e de programador, não sendo um acaso meramente biográfico, revela então uma postura?


















Tive ocasião de conhecer e conviver com Serge Daney, o que foi muito gratificante. E, para além desse convívio pessoal, de fazer a leitura dos seus textos... Ele tinha aquela noção de “passeur” que é, para mim, muito importante. Na medida do possível, designadamente com objectos que são filmes, o nosso entusiasmo é algo que deve ser partilhado. Essa partilha começa por tentar disponibilizar que os filmes sejam mais vistos. Além dos actos de programação, uma das coisas que fiz ao longo dos anos foi ter uma relação próxima, em alguns momentos, com três distribuidores portugueses exteriores às majors. Dizia-lhes: “acho que deves distribuir este filme”. Ou, pelo menos, quando isso ainda era possível, “se distribuíres esse filme, garanto que tens cobertura e destaque”. Isso sucedeu inúmeras vezes.
Por outro lado, embora a situação do cinema não tenha nada a ver com a dos anos 70, há uma outra fórmula que também sempre me marcou. É do chefe de redacção dos Cahiers desses anos, Jean Narboni. A propósito de momentos como a Mostra de Pesaro e outros, dizia: «Il y a un film, je l’ai rencontré». Portanto, o que muitas vezes me aconteceu foi ser passador, neste sentido, de uma série de objectos que tinha visto em festivais e que achava importante serem sinalizados.
No meio disto vou-me lembrando de outras coisas. E, agora sim, fica completo o historial. Na altura em que havia ainda, com o António Pinto Ribeiro, aqueles festivais anuais [na Culturgest], programei o «Extremos do Mundo», o «Europa» e o «Comunidade». Era a possibilidade de passar filmes distantes. Distantes em todos os sentidos. Cinematografias da Ásia, por exemplo. E enfim, quando digo agora cinematografias da Ásia, no sentido que adquiriu comummente o cinema asiático, são as cinematografias da Ásia e do Pacífico, mas também as da Ásia Central, das Repúblicas ex-Soviéticas, ou de África. Portanto, do que é um algures cinematográfico, supondo que esse algures não é só uma questão de distância geográfica, mas também de sensibilidade cultural e modos de olhar.

Houve um fenómeno em que fui de alguma importância por cá. Tive a intuição ou a sensibilidade, mas porque tive a oportunidade, de me dar conta cedo da existência de florescimentos importantes em territórios como esses da Ásia e do Pacífico, em particular das três Chinas: Taiwan, Mainland (portanto, República Popular), e Hong Kong. O que me suscita ainda um grande interesse. Por exemplo, assistimos em poucos anos ao aparecimento e consolidação do cinema chinês da 5ª geração e, depois, ao aparecimento da 6ª geração. Lembro-me, a propósito dos primeiros filmes de Zhang Yuan, de um texto meu de 1995, provavelmente, em que colocava a questão: “Mas será que entretanto já está a aparecer uma 6ª geração?” Tive uma certa sensibilidade específica para isso, e fui tido internacionalmente como um dos críticos mais sensíveis. Quando digo isto é pondo noutro plano as pessoas que foram especialistas disso e que estiveram na origem do nosso conhecimento. E essa oportunidade de que falei é a eles que devo: Marco Müller ou Tony Rayns. Mas acabou por ser por me marcar, e até marcar a minha imagem, em circunstâncias em que eu fui júri. Isto não apenas em Cannes, embora esse seja o momento marcante. Porque o ano em que há a Palma de Ouro a ADEUS, MINHA CONCUBINA [BA WANG BIE JI (1993) de Chen Kaije] e o Prémio do Júri a O MESTRE DE MARIONETAS [XI MENG REN SHENG (1993) de Hou Hsiao Hsien] é o momento em que há, de facto, a consagração final dessa erupção. Depois disso também aconteceu com autores posteriores. A primeira vez que vi um filme de Tsai Ming Liang, no Festival de Berlim de 1994, tratava-se REBELS OF THE NEON GOD [QING SHAO NIAN NUO ZHA (1992)]. Não era sequer um filme que tivesse em competição, estava na secção Panorama. Pois, no dia seguinte havia uma página do Público sobre esse filme. Achava que tinha descoberto... Não gosto da expressão “descoberto”, porque parece que a coisa vem de nós, quando eles é que são importantes. Tinha encontrado um cineasta. Obviamente, a partir daí foi alguém que acompanhei, de quem sou próximo e amigo, etc. Portanto, programar é um gesto de partilha, de partilha das opções próprias. E, para mim, é, de facto, a continuação do acto crítico por outros modos.
O ano passado não foi nada feliz em termos de desaparecimentos. A posteriori há um facto que ainda me custa mais. A retrospectiva dedicada a Hou Hsiao Hsien na Culturgest era inicialmente para incluir Edward Yang. Trata-se de um caso extremo de autorismo. Mesmo os filmes que não foram produzidos por si, deles retomou os direitos. Tentei durante semanas, senão meses, mas nunca respondeu. Portanto, tive que fazer apenas Hou Hsiao Hsien, o que me deu muito prazer e permitiu uma visão mais completa da sua obra. Mas a ideia inicial era os dois autores importantes de Taiwan. Para se perceber que Hou Hsiao Hsien faz parte de uma base cultural tradicional, e é claramente um cineasta que vem do campo, enquanto que Edward Yang sempre foi uma pessoa de paisagens urbanas. E se penso que O MESTRE DE MARIONETAS e AS FLORES DE XANGAI [HAI SHANG HUA (1998)], mas sobretudo o primeiro, o que pode ser também por estar mais ligado a esse filme, são duas das obras mais marcantes da arte cinematográfica dos últimos vinte anos, penso igualmente que Edward Yang fez alguns filmes extraordinários. Dado ter havido uma colaboração entre os dois, praticamente se produzirem um ao outro, ou de Hou Hsiao Hsien aparecer como actor num filme do Yang e este ter colaborado directamente num filme daquele, era importante apresentá-los em conjunto. Não foi possível. Só passado algum tempo é que percebi o porquê de o Edward não ter respondido aos meus emails, no momento em que, infelizmente para mim, soube da sua morte.

Como descreve o contexto português de acesso aos filmes? A situação mudou um pouco com os novos festivais, que ganharam uma dimensão diferente nos últimos anos. Mas, por outro lado, parece haver uma retracção do público nas salas.
A preocupação em dar a ver objectos distantes é obviamente tanto maior quanto têm menos hipóteses de serem apresentados cá. Em primeiro lugar, distribuídos em sala. Mas, neste momento, não só. Ao contrário do que houve há alguns anos, não existir um segundo canal da RTP que tenha responsabilidades de programação complementares às cinematografias dominantes é uma coisa que me parece grave.
Para mim, o cinema é uma questão de sala. Só existe por outros meios supletivamente, de uma forma que já não é exactamente a percepção cinematográfica. E há uma grande retracção da sala. Infelizmente, suspeito que está para se agravar. Há factores intrinsecamente nacionais, mas é um fenómeno mais geral. Estamos a assistir a uma brutal mudança de paradigma. O que penso que está substancialmente a desaparecer é a ideia do cinema como espectáculo de massas. Que, no fundo, apesar de tudo, foi o cinema com que nós crescemos e aquilo a que nos habituámos a ver como cinema. A passagem por sala será cada vez menor na economia da produção cinematográfica. E agora haverá também essa nova imensa mutação, a passagem directa para difusão na internet.
Portanto, isto cria uma situação bastante paradoxal. A constituição de filmes também como objectos-arte, no sentido em que têm modos de organização e rituais mais próximos dos actos de exposição noutras artes. Ora bem, isto envolve factores que são extremamente perversos. Por exemplo, haver uma focalização do interesse geral nos festivais, mas depois não noutras formas de exibição, também elas paralelas, é notório por parte do público, e ainda mais notório por parte da imprensa. O ciclo «Diários filmados e autoretratos» do DocLisboa teve na imprensa níveis de interesse que de forma nenhuma teria se passasse isoladamente. Ou seja, nalguns aspectos era preferível que não passasse isoladamente. Tem a ver com questões de crítica. Quer dizer, sendo a crítica um acto por excelência de mediação, supõe colocar questões. E, evidentemente, ela hoje tende a desaparecer, tende a ser cada vez mais um acto de intermediação dentro de um processo de consumo. Isto anda tudo ligado.


Referiu os actos de exposição da arte contemporânea, das artes plásticas. Mas até que ponto não está a própria emancipação da programação e da figura do programador ligada a esse contexto mais geral do museu? Os programadores assinam como curadores ou comissários. Não estará o cinema a tornar-se um arquivo em que o programador joga com os filmes? Ou serão gestos diferentes?




É difícil. Há momentos em que digo que sim, outros em que digo que não. Em primeiro lugar, penso que a imagem projectada não é só o cinema. Portanto, não considero como cinema muitas das obras de imagem projectada que constam, que têm sido mais eminentemente apresentadas no campo das artes visuais ou das artes plásticas. Continuo a pensar que o cinema solicita a sala escura. Mas é um facto que nos habituámos a modos de relacionamentos com as imagens que são já posteriores a esse acto fundador. Acho muito difícil que a relação que se tem com um visionamento em Dvd ser da mesma ordem que uma exibição em sala.
Isto supõe também problemas estéticos e formais. A construção do cinema como arte do tempo nem sempre está longe de existir em outras obras de imagem em movimento. É certo que algumas coisas que começaram mais genericamente, ou mais integradas inicialmente no campo das artes, são importantes para o cinema. Ao trabalhar sobre este material de diários ou autoretratos, em obras reconhecíveis apenas como cinema, deixei de lado tudo o que há, e é muito importante, de vídeo. Mas reconheço que muitas vezes a inspiração veio daí, do conhecimento de experiências feitas no campo do vídeo por artistas plásticos, visuais.
Há alguns equívocos na passagem do cinema para o museu. Creio que está a ser demasiado facilitado. E, para mim, de forma clara, as duas grandes exposições de importantes criadores cinematográficos em museus, ou seja, o Godard em Beaubourg e o Lynch na Fondation Cartier, foram substanciais falhanços. O cinema define-se, para além dos seus modos de produção, também pelo lugar do espectador. Coisa curiosa que nos leva a algumas das primeiras teorizações do cinema, nomeadamente a Hugo Munsterberg. O lugar do espectador perante imagens em movimento não é o mesmo numa exposição ou numa sala de cinema. Mas há cruzamentos. E apesar desses equívocos, acho que teremos cada vez mais que lidar com o facto de que a consideração dos objectos cinematográficos como objectos artísticos far-se-á muitas vezes por formas que não aquelas tradicionais da exibição cinematográfica. Nesse aspecto, é a uma grande mudança de paradigma a que estamos a assistir, infelizmente em muitos aspectos. Sobretudo infelizmente, mas pronto.

Mas, para além desse contexto de apresentação das obras, não corre a própria figura do programador o risco de se transformar numa espécie de operador discursivo, um operador que joga conceitos e apresenta obras como exemplos? Parece-lhe legítima uma programação conceptual, ou baseada numa noção, que depois agregue obras a essa noção? Não acha que pode ser um gesto que coloca as obras a demasiada distância?

Tenho-me pronunciado sobre essa questão da consideração do comissário como artista. Que é algo que acontece imenso por cá... Quanto ao risco das programações conceptuais, não necessariamente... Estou perfeitamente convencido que cada vez mais isso irá ser feito. Um ciclo como o dos «Diários filmados e autoretratos» teve apenas a dificuldade da escolha. Por um lado, restringi-me na altura ao contexto ainda reconhecível como documental, excluindo as autobiografias e autoficções do campo ficcional, e não entrando explicitamente em relação com artistas do vídeo.
Vamos lá a ver. Os ciclos conceptuais também existem nas cinematecas. Às vezes até é pena que não existam mais. Porque se eu fizer um ciclo sobre o plano-sequência, sobre a voz-off, trata-se de uma questão formal, uma questão de cinema. No caso desses «Diários filmados e autoretratos», o que está fundamentalmente em causa é a reavaliação do lugar da subjectividade no cinema. Sobretudo no documentário, que é suposto ser o meio ou o género, ou uma forma de cinema motivada, tanto quanto possível, pela objectividade. É um elogio da subjectividade, do cinema singular, claramente da primeira pessoa do singular, e de experiências do tempo no quotidiano. E quando digo quotidiano é mesmo quotidiano do dia-a-dia e da relação temporal. E isto é uma questão de cinema.

Por oposição a ciclos organizados por questões não cinematográficas?

Sim.
Embora talvez seja um pouco difícil distinguir entre o que é cinematográfico e o que não é...

Posso dizer que o ciclo que fiz há dois anos no DocLisboa – «Histórias da Europa: nacionalismos, identidades e fronteiras» – era um ciclo temático. Um dos que me interessava porque tem a ver com um princípio que me move sempre, que é o de trabalhar e possibilitar a apresentação pública de uma diversidade de olhares. O «Diários filmados e autoretratos» [e o «Autobiografias/Autoficções»] não. Não só é formal, como diz respeito a algo de fulcral de cinema. A questão de saber até que ponto é, fundamental e explicitamente, a subjectividade que determina as formas de apresentação cinematográfica. E até que ponto categorias tidas como marginais, por uma ou outra razão, como o home movie ou o dito filme experimental, são desconsideradas. Pode pensar-se que são extremos. Mas como é que, hoje em dia, estão associadas dentro de formas de cinema que tenderão cada vez mais a existir? Portanto, pode haver circunstâncias de ciclo temáticos. Quer dizer, os ciclos que fiz anteriormente para Culturgest, todos eles, é certo, movidos pela importância que dou, por um lado, a ser passador, e, por outro lado, à diversidade de olhares, são, apesar de tudo, ciclos temáticos.
O que hoje acontece muito com o papel dos comissários nas artes visuais, o risco que se corre, é o das obras serem a demonstração de uma teoria pré-determinada. Não digo que nasça do nada, porque obviamente que vem de alguma observação que os comissários fizeram, mas é pré-determinada. E pode ser determinada por razões políticas e culturais até muito estimáveis, mas que correm o risco de fazer aparecer apenas com valor demonstrativo.
Por exemplo, tenho as maiores dúvidas (e isto é uma forma suave de pôr a questão) que o campo teórico genericamente considerado como o do pós-colonialismo seja hoje esteticamente operativo. Receio que, nalguns casos, se torne mesmo num paternalismo neo-colonial, por assim dizer. É exactamente o tipo de campo em que as obras surgem como demonstrações de um discurso pré-determinado.
Portanto, se o discurso for de ordem formal, ou se for um autor... Quer dizer, até acho que há ciclos que podem ser especulativos. E especulativo não é a mesma coisa que demonstrativo. Nem que seja para se chegar à conclusão que as coisas nada tem a ver umas com as outras. Dou um exemplo. No campo dos possíveis, gostaria de fazer um ciclo sobre filmes baseados em fotografias. Ou seja, em que estas sejam determinantes na sua matéria. A questão da imagem fixada e da imagem em movimento. Não sei se alguma conclusão global se extrairia daí, mas é uma coisa que me interessava investigar.
Outra questão. Gostaria que a organização e a apresentação de ciclos fosse, na medida do possível, também um processo de conhecimento, de transmissão de conhecimento. Cada vez mais acharia interessante que houvesse apresentações de ciclos que se ligassem a âmbitos do tipo seminário, colóquios ou assim. Seria muito relevante.


Uma das dificuldades, quando o cinema se associa a esse tipo de acontecimentos, é a de poder aparecer como ilustrativo, ou demonstrativo, como dizia. Outra dificuldade paralela é a de que certos filmes não chegam às pessoas que os precisam de ver. Talvez porque são “vendidos” apenas como cinema. Era quase preciso que escapassem a essa condição de cinema para poderem ser simplesmente vistos. Dou-lhe um exemplo. Um filme de Harun Farocki – DIE BEWERBUNG [A ENTREVISTA (1997)], que aborda a formação (do comportamento) dos desempregados para candidaturas de emprego, passou no âmbito de um museu, o CCB [e depois também no DocLisboa, num ciclo sobre o trabalho]. Temos a sensação que não é o público das artes plásticas que mais precisa daquele filme. Seriam antes os sindicatos, as pessoas que fazem recursos humanos, etc. Poderíamos talvez sonhar com um acesso mais directo aos filmes, que não se limitaria ao temático...

Percebo... O trabalho de divulgação tem uma enorme importância. Por vezes, na promoção, na divulgação, há que tentar sensibilizar filmes para sectores um bocadinho mais específicos. Aqui voltamos à questão do papel da imprensa, que hoje me dia me parece ser particularmente dramático. É muito complicado, sobretudo cá, conseguir fazer isso. É esse o lado perverso dos festivais, onde de facto as pessoas vão todas. Também não tenho a noção se são capazes de digerir, passe o termo, a quantidade de filmes que vêem num festival. Mas o que é certo é que vão, e depois não vão para as salas de cinema. Ainda assim, contrariamente a algumas reacções de distribuidores e até de autores, perante o facto de que um certo tipo de cinema ter cada vez menos espectadores nas salas, acho que não podem ser atribuídas culpas aos festivais. Infelizmente, é uma perversidade que está instituída. E já nem falo num aspecto que é importante, que tem a ver com os distribuidores ou exibidores que deixam degradar ou diluir a imagem específica de uma sala de cinema.
Mesmo que, por opções próprias, tenha deixado de seguir os festivais de há alguns anos a esta parte, de uma forma geral, depois apanho os filmes. Mas tenho uma verdadeira angústia em pensar na quantidade de filmes importantes, ou na quantidade de revisões, que não são possíveis de fazer partilhar. A programação da Cinemateca Portuguesa, porque é a única que existe, está longe de corresponder a isso, hoje cada vez mais. Mas também porque não existem outras formas. Custa-me muito que haja espaços que estão subaproveitados, ou que haja instituições que não apostem suficientemente num programa regular de programação cinematográfica.
O acto de programar é indissociável do gesto de partilha e, pelo menos em muitos dos casos, é indissociável do acto de colocar em público certas questões para saber também qual é o feedback. Isto corresponde também a uma forma de exposição pessoal, que é de risco, mas inerente ao gesto crítico. Não deve ser apenas um gesto de triagem com suposta autoridade, como se fosse um lugar neutro. Pelo contrário, é um gesto de diferenciação, de opções, de tomadas de partido. Quando hoje se tende fundamentalmente a construir consensos, o mais simples e raquítico de todos, que é o consenso das estrelinhas.


Consensos, mas também fomentos dos desejos, quase tráfico de relações públicas, artigos que parecem comunicados de imprensa das próprias distribuidoras... O que parte da própria ausência de exigência nos jornais, que não têm lugar para isso, ou julgam não ter lugar...

... que se demitiram disso.
O que gostaria era que houvessem condições para um trabalho de pensamento. Não sei se existem estruturas para isso, para além das instituições culturais estabelecidas. No caso, só a Culturgest em Lisboa. Apesar de tudo, continuo a pôr aos festivais, e aos dois que existem em Lisboa, que são o Indie e o Doc, a questão de saber se eles têm meios, disponibilidade e interesse para, além daquilo que é a sua razão de ser, fazerem programações mais regulares. Evidentemente, a resposta não depende só deles. Mas custa-me não haver espaços mais vocacionados especificamente para o cinema contemporâneo e para apresentação mais teórica e conceptual de questões de cinema, que é uma função que não é de todo preenchida pela Cinemateca. Sem embargo desta Cinemateca ser capaz de apresentar retrospectivas bastantes extensas e completas de uma série de autores importantes. Mas é um modelo de programação muito característico das cinematecas, em termos conceptuais muito pouco heterogéneo. Mesmo que hoje grande parte das cinematecas já o tenham alterado, sem dúvida por reacção ao exterior.


Uma articulação entre as cinematecas, enquanto museus históricos, ligados à própria respeitabilidade do cinema enquanto arte, e os museus de arte contemporânea que aparecem como mais flexíveis...

Sinceramente, acho que os espaços pluridisciplinares são muito interessantes. Permitem outro tipo de olhares diferentes sobre o cinema. Isto dito, era da tradição do Langlois apresentar autores completamente novos e desconhecidos. O Garrel teve das primeiras apresentações pela mão do Langlois. Mas não me gostaria de me centrar excessivamente, já foi uma discussão de muitos anos, no caso desta Cinemateca. Tem um modelo que cada vez mais me parece muito estafado. Mesmo aqui já houve mais imaginação para fazer ciclos do que há actualmente. Porque essa parte de imaginação também se exige ao programador.
Tem que haver condições para que a imaginação se repercuta.

Pelo minha parte, tenho sempre presente aquela frase do Narboni de que falei há pouco – «Il y a un film, je l’ai rencontré». Toda a vida fiz de forma a que isso fosse possível. Das coisas em que tenho mais orgulho, é na lista dos autores que fui a primeira pessoa a apresentar em Portugal: Todd Haynes, Hal Hartley, Desplechin,Wong Kar-Wai, Takeshi Kitano, Sharunas Bartas, Elia Suleiman, cuja primeira apresentação foi na Culturgest, e outros, Edward Yang, Sokurov. É uma parte muito importante do gesto crítico. Estão aqui estes que eu defendi, agora fica também à vossa apreciação... Não me dá gozo nenhum, confesso, saber que vi uns quantos filmes importantes, não são assim tão poucos, que, pelo menos aqui, praticamente mais ninguém viu. É uma coisa que não me dá gozo nenhum, antes pelo contrário.
Mas dentro deste trabalho todo, há também coisas que dão um gozo particular. E todas elas têm o seu risco particular. Mas não consigo pensar em programar sem pensar que é uma prática de riscos. «Riscos e ensaios» [secção do DocLisboa], o título aliás é meu. Acho que se põe uma ética da programação. A dimensão ética não está apenas presente nas obras em si mesmo, designadamente numa arte como o cinema, está presente num gesto de programação.


Autobiografias / Autoficções
Um programa de Augusto M. Seabra
Culturgest, Pequeno Auditório — Lisboa

«De diversos modos, um cinema enunciado na primeira pessoa vai-se tornando cada vez mais frequente, tal como o registo em material fílmico ou videográfico dos passos de uma vida, quantas vezes, e com quanto maior frequência, desde o próprio acto de nascimento.

É inegável já o vasto material de diários e auto-retratos filmados, objecto aliás da secção retrospectiva do doclisboa do ano passado. Falar em “autobiografia cinematográfica” em sentido estrito coloca contudo outros problemas. É, dir-se-á, uma questão de linguagem e de referente. Ou, para citar o grande teórico actual da autobiografia, Philippe Lejeune: “O problema principal parece-me ser o do valor de verdade. O cinema autobiográfico parece destinado à ficção. Não posso pedir ao cinema que mostre o que foi o meu passado, a minha infância ou a minha juventude não posso senão evocá-las ou reconstituí-las. Esse problema não existe na escrita, porque o significante (a linguagem) não tem qualquer relação com o referente”.

Todavia, também desde a nouvelle vague, desde Truffaut e o seu alter-ego Antoine Doinel, a experiência autobiográfica, ou as “autoficções”, para retomar o termo do escritor Serge Doubrovsky, foram recorrentes à singularidade de cineastas como Eustache, Garrel e mesmo Pialat.

Face ficcional da retrospectiva de “Diários filmados e Auto-Retratos”, este ciclo apresenta quatro realizadores que de modo persistente e recorrente, filme após filme, foram evocando e reconstruindo as memórias da sua vivência pessoal, a belga Chantal Akerman, os britânicos Bill Douglas e Terence Davies e a húngara Márta Mészáros.» (Augusto M. Seabra)



5ª, dia 8
Chantal Akerman
21h30 Portrait d’une jeune fille à la fin des années soixante à Bruxelles (1994)

6ª, dia 9 Trilogia de Bill Douglas
18h30 My Childhood (1972), My Ain Folk (1973)
21h30 My way home (1978)


Sáb, dia 10
Filmes de Terence Davies
15h00 A trilogia – Children / Madonna and child / Death and transfiguration (1984)
18h00 Distant Voices / Still Live (1988)
21h30 The Long Day Closes (1992)


Dom, dia 11
Os Diários de Márta Mészáros
15h00 Diário para os meus filhos (1982)
18h00 Diário para os meus amores (1987)
21h30 Diário para o meu pai e a minha mãe (1990)

Meros filmes em Maio b)

...
À bout de souffle
Jean-Luc Godard
1960, 90’
Eram os anos 60
5ª, dia 8, 21h30 – Cinemateca, Lisboa

Plein soleil
René Clement
1960, 110’
Eram os anos 60
2ª, dia 12, 21h30 – Cinemateca

L'avventura
Michelangelo Antonioni
1960, 132’
Eram os anos 60
3ª, dia 13, 19h – Cinemateca

Les parapluies de Cherbourg
Jacques Demy
1963, 90’
6ª, dia 16, 22h – Cinemateca

Wind across the Everglades
Nicholas Ray

1958, 90’
3ª, dia 20, 21h30 – Cinemateca

Pick-up on South Street
Samuel Fuller
1953, 80’
História permanente do cinema
Sáb, dia 24, 21h30 – Cinemateca


The night and the city
Jules Dassin
1950, 101’
2ª, dia 26, 21h30 – Cinemateca

Splendor in the grass
Elia Kazan
1961, 124’
História permanente do cinema
Sáb, dia 31, 15h30 – Cinemateca

[apenas filmes vistos, sem repetições]

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #12: Interferências passado-presente

Ao longo de PROFIT MOTIVE AND THE WHISPERING WIND de John Gianvito somos lentamente levados, por uma acumulação serial de planos, à presença perante inúmeros monumentos fúnebres e históricos evocativos de várias lutas progressistas na América do Norte, como as sindicais, dos camponeses, dos índios, dos mineiros, etc., intercaladas com o vento a bater nas árvores. Em certos momentos, a delicadeza da aproximação lembra-nos as derivas informadas de Sebald, por entre os campos onde a memória histórica vive enterrada.
No entanto, quase no final do filme, um corolário, que o realizador terá julgado necessário, que talvez até seja a verdadeira motivação de tudo o que o precedeu, irrompe pelo filme adentro, e destroça em parte a subtileza acumulada da aproximação. Esta, apesar de serial, era delicada e não panfletária. O final apresenta de rompante uma série de lutas contemporâneas para as quais nos tenta motivar, como a contra a Guerra do Iraque, pelos direitos das minorias, etc.
O modo como a interferência passado-presente se estabelece, entre a evocação lenta destas lutas passadas, que nos tinham sido duramente tornadas próximas, e a apresentação súbita daquelas lutas presentes, é muito problemático. É inevitável que, na construção do filme, sejam as lutas presentes que nos apareçam como um corolário distante, com uma evidência nada clara. O trabalho da sua composição baseava-se num passado, obviamente relevante para o presente, mas que não é passível, se calhar infelizmente, de tradução automática no presente.
Há uma não-relação significativa entre estas duas espessuras, mesmo que sentimental e politicamente seja legítimo aproximá-las. O ponto, por demais difícil, do estabelecimento desta relação é indefinível, como um laço invisível por descobrir, que não pode, por muito que nos custe (a nós, povo de esquerda), ser estabelecido à partida.
É preciso não pressupor o passado, que é pelo menos tão opaco, tão impossível de cingir como o presente. As coisas muito antigas, mas esquecidas, que a revolução tem que repor, de que fala Straub citando Péguy, não se dão facilmente. Não respondem a meros apelos comovidos ou comoventes. Principalmente, não se sabe precisamente quais elas são antes de começar a fazer a revolução. Por isso teremos que nos contentar com outras interferências passado-presente, mais subtis mas nem por isso duvidosas, que podem ser mais produtivas, pois o seu potencial de repercussão é imenso. Como as de Pedro Costa em A CAÇA AO COELHO COM PAU, por exemplo, em que dois homens verdadeiramente antigos, não apenas velhos – Ventura e Alberto, evocam a pobreza, enquanto olham por entre as frestas para a rua, num vão de escada arquitectonicamente sofisticado, mas traço de um presente inadequado, imposto por força, que não deixa ver a paisagem. De resto, talvez a paisagem não se dê a ver senão no passado.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #11: Denúncias, tiques

A figura da denúncia anunciou-se, logo no início do festival, aquando de PODUL DE FLORI (The Flower Bridge) de Thomas Ciulei, um «documentário-filmado-como-se-fosse-uma-ficção» (segundo Jorge Mourinha do Público). De facto, em certas cenas, o filme fazia mesmo questão em se denunciar quanto aos procedimentos de filmagem. Vemos o pai de família, que estava fora de casa, entrar de costas para a câmara; de repente, estamos à sua frente no corredor da casa, mas em plena continuidade temporal. Nada de especial, na verdade, mas trata-se de algo que, acentuado, cria um mal-estar, que não é específico ao procedimento, mas antes às condições concretas do filme em que aparece. O procedimento distrai-nos do filme. Assim, quando o pai se despede da filha, vemo-lo acenar de frente em grande plano; logo em seguida, estamos no morro adiante, bem longe, com a filha igualmente acenando-lhe adeus. Pior ainda, noutra cena em casa, essa mesma filha, que está de costas, pendura um desenho na parede e contempla-o, recuando um pouco. Pois imediatamente nos surge em grande plano, de frente, a levar a mão à cara, em gesto de contemplação pensativa. Estas denúncias merecem do espectador, pelo menos, o gesto semelhante, no escuro da sala, de levar a mão à cara, mas franzindo o sobrolho.
Ao identificarmos estas denúncias não procuramos proteger uma especificidade documental, identificada com um certo tipo de procedimentos de filmagem, seja apenas a utilização de uma câmara ou o que seja. Não é, aliás, crível que essa especificidade seja completamente irredutível ou diga somente respeito apenas aos elementos técnicos. É antes como se esses métodos, que associamos à ficção e à encenação que lhe corresponde, criassem uma mais-valia de sentido que é desconfortável, que bloqueia a fruição do filme, que o torna problemático e manipulador, pois parece querer dizer-se a si próprio e não responde a nada que o filme peça. Trata-se provavelmente de uma insinuação perante o público habituado à ficção (e não por acaso, o filme está na Competição Internacional).
Noutro documentário aparece novamente esta figura da denúncia. Mas ela ganha aqui outra forma, provavelmente mais esclarecedora. Esta nova forma é devida ao objecto particular de DOCH (But still) de Oleg Tcherny e Erwin Michelberger, que são os doentes atingidos com o Síndrome de Tourette. No filme estes ensaiam uma reflexão sobre a sua doença e os efeitos que tem na sua vida quotidiana, enquanto se evidenciam profusamente perante a câmara os tiques repetitivos e os reflexos involuntários de que padecem. Os saltos súbitos da montagem parecem ser uma espécie de demonstração de solidariedade cinematográfica para com eles, constantemente interrompidos por aquelas repetições inconvenientes. É assim que, ao observarmos de costas uma mulher sentada no meio de um bosque, rodeada dos seus parceiros de doença num momento de confissão pungente e tocante sobre aquilo que a doença a impede de viver a nível familiar e afectivo, de repente saltamos para a sua frente, sem justificação alguma. Sem justificação alguma que não seja a própria justificação do tique cinematográfico, uma solidariedade involuntária do filme para com os seus objectos de atenção. Aquilo que, ao início, nos surgia ainda com a dignidade de uma denúncia, revela-se afinal apenas um tique descontrolado.

Notas demasiado soltas (IndieLisboa 2008) #10: Aos leitores de Etty Hillesum


Não li ainda Etty Hillesum. Nem o diário nem as cartas, onde se encontram as suas reflexões sobre a vida na Holanda ocupada e no campo de Westerbork durante a Segunda Guerra Mundial. Conheço-a apenas do ensaio que Maria Filomena Molder publicou na revista Intervalo, bem como dos bonitos fragmentos partilhados e comentados pela Cristina nos dias felizes. Hesito em escrever estas breves notas, pois não possuem nem o rigor nem o tempo de maturação que deviam. E estou consciente que não é de todo suficiente proteger o seu risco com a profusão de “talvez”. Mas respondo à urgência da coincidência, no mesmo dia, da exibição do filme de Harun Farocki RESPITE/ADIAMENTO, incluído em MEMORIES, e de um artigo no jornal Público sobre Etty Hillesum, que vai ser publicada entre nós.
O filme de Farocki, mudo e com intertítulos, é composto estritamente das imagens que nos chegaram de um filme inacabado de divulgação (!) do Campo de Trânsito para Judeus de Westerbork, e delas constitui uma análise. Ao vê-lo, comecei a interrogar-me se pode a sombra de Etty Hillesum, a deixada pela sua vida e obra, que se confundem, ser parcialmente compreendida pelo conhecimento das condições de vida particulares em que se desenrolou.


Talvez estas condições na Holanda ocupada, e em Westerbork em particular, fossem substancialmente diferentes do que seria suposto esperar, e tenham assim permitido a singularidade do seu testemunho e reflexão, por relação aos outros testemunhos conhecidos. Será certamente uma pergunta inadequada de fazer, mas... Teriam as reflexões de Etty Hillesum sido possíveis em Auschwitz? Materialmente, não. E quanto à sua substância? Nunca saberemos o que diria Etty Hillesum perante Auschwitz, pois ela não restou para testemunhar. Sobre as condições de vida em Westerbork, o filme de Farocki está cheio de desagradáveis surpresas, cujo carácter apenas ilusório é difícil de aceitar. Embora, numa primeira leitura, explicável pela condição da sua feitura – uma encomenda do responsável militar do campo –, que possibilitaria uma encenação generalizada, as imagens acabam por cumulativamente ir desmentindo essa ilusão pacificadora. Ainda menos nos ilibam de as olhar com atenção. De Etty Hillesum, à luz destas imagens, ficamos com um testemunho que compreende apenas a expectativa do extermínio, não o próprio.
Tudo nos pertuba nestas imagens, desde as existências relativamente despreocupadas, ao trabalho não-escravo, à mera existência de sorrisos, ao espectáculo de cabaret e vaudeville (durante o qual os artistas em palco retiravam as estrelas amarelas), aos exercícios de ginástica em campo aberto, a um jogo de futebol, à pacatez inesperada, e ao culto do trabalho próprio, precisamente por não terem nada de perturbante. É assim que tudo nelas aponta para um horizonte diferente do que se esperaria de imagens de um campo, um horizonte do qual o extermínio está ausente, ou profunda e paradoxalmente escondido.
A ausência de perturbação que mais nos interpela, ou antes, que mais faz problema nestas imagens, é a partida filmada de um comboio para Auschwitz, numa data específica que foi possível estabelecer pela leitura detalhada de uma das imagens, posteriores à partida de Etty Hillesum para esse mesmo campo de concentração e extermínio, onde viria a morrer. Nessa partida sobressai a pacatez dos passageiros, a ausência de qualquer tipo de violência e, principalmente, esse gesto, do mais extremo, e de um humor macabro, de um vagão de mercadorias carregado de pessoas ser fechado com a ajuda solícita de um passageiro [conferir imagem]. Como escreve no seu filme Farocki, a 19 de Maio de 1944, “um comboio com 691 pessoas saiu de Westerbork”; “neste dia uma criança acenava adeus” de dentro de uma carruagem e “um homem ajudava a fechar a porta do vagão que o levava”.


Era este efectivamente o campo que Etty Hillesum visitava e onde depois ficou definitivamente retida, antes de ser enviada para Auschwitz. Ao vermos estas imagens, emerge um primeiro paradoxo, por confronto a elementos do testemunho dela. Como compreender o conhecimento que parece possuir do extermínio que lhe está reservado, a ela e aos outros judeus, ciganos e restantes detidos de Westerbork? Seria ela uma das excepções informadas? Estariam igualmente a generalidade dos outros detidos cientes do seu destino? Ou teriam os informados, num silêncio apenas aparentemente semelhante ao dos judeus dos comandos especiais que tinham chegado à conclusão da profunda inutilidade do contar, compassivamente suprimido a informação dos restantes?
Aquilo que se lê, que Farocki nos lê, nas imagens do filme de divulgação de Westerbork, é a impossibilidade, pelo menos a evidente improbabilidade, desse mesmo conhecimento do destino, dado o comportamento revelado tanto pelos que sobem para os vagões como pelos que os convidam a subir. O seu comportamento apaziguado ao entrarem para os vagões, para nós hoje pesadamente isento de quaisquer sinais de perturbação, não o indica de todo.
No Crematório IV de Auschwitz “trabalhava” Filip Müller, sobrevivente de cinco liquidações do Sonderkommando, com cujo testemunho, posterior ao extermínio, por oposição ao, em parte anterior, de Etty Hillesum, se deveria talvez comparar (não é a palavra adequada, bem sei), seja o publicado em livro seja o constante no filme SHOAH.
Maria Filomena Molder concerteza corrigir-nos-ia, salientando que não se trata de todo de esperança. Filip Müller, de dentro de uma câmara de gás, simultaneamente objecto e, ainda que pouco, sujeito-agente de uma das mais supliciantes experiências humanas, afirma, no entanto: «quem quer viver está condenado à esperança». Talvez, por relação a Etty Hillesum, o acento devesse ser posto na primeira parte da frase de Müller, na condição de «quem quer viver». Porque, se bem que a experiência dos campos se defina, aos nossos olhos de hoje, como a da irredutível sobrevivência, a história humana é fértil em casos de abdicação da vida, pelo menos da orgânica ou vegetativa, em prol de uma outra vida, mística ou íntima, que os sujeitos dessa abdicação entendem poder dispensar.

Talvez seja esse o paradoxo de Etty Hillesum, mais um dos que Auschwitz produziu e que continuam a atormentar-nos, e aos quais não podemos virar os olhos: o da (quase) coincidência de uma abdicação mística da vida com o lugar e tempo da sua mais extrema aniquilação. E cumpre-nos tentar compreender se se trata de um gesto de uma recusa libertadora ou de uma profunda e penosa renúncia. Talvez estes dois gestos, que estamos habituados, que somos forçados a julgar incompossíveis no tempo de uma vida, sejam, na figura de Etty Hillesum, paradoxalmente confundíveis.

Meros filmes em Maio a)


Marfa si banni [Stuff and dough]
Cristi Puiu
2001, 90’
IndieLisboa 2008 – Novo Cinema Romeno
5ª, dia 1, 15h45Londres 1, Lisboa

Charly
Isild Le Besco
2007, 95’
IndieLisboa 2008 – Comp. Internacional
5ª, dia 1, 19h – Fórum Lisboa

Ai no yokan [The rebirth]
Masahiro Kobayashi
2007, 102’
IndieLisboa 2008 – Observatório
6ª, dia 2, 15h45 – Londres 2

A caça ao coelho com pau
Pedro Costa
2007, 21’ / in Memories
– Jeonju Digital Project 2007

IndieLisboa 2008 – Observatório
6ª, dia 2, 19h15 Teatro Maria Matos 1


Vertigo
Alfred Hitchcock
1958, 128’
6ª, dia 2, 21h30
Cinemateca, Lisboa

Killer of sheep
Charles Burnett
1977, 80’
IndieLisboa 2008 – Director's Cut
6ª, dia 2, 24h – Londres 1


Die klage der Kaiserin /
O lamento da Imperatriz

Pina Bausch

1990, 106’
Dom, dia 4, 22h Teatro São Luiz, Lisboa

...

[apenas filmes vistos, sem repetições]


Arquivo / Archive