Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #84 (António Guerreiro)

Sobre a ética, a polícia e a política 
«As “comissões de ética” da Assembleia da República são um exemplo flagrante de que a ética se tornou uma ideologia — mas uma ideologia que trabalha a favor da negação da política. Esta vigilância exercida em nome de uma ética no comportamento dos políticos pode ter a melhor das intenções, apresentar-se com as mais virtuosas roupagens, mas não deixa de ser a manifestação eloquente de um estado de coisas em que a regra (quase um ideal) é a despolitização. De tal modo que até a Assembleia da República, que deveria ser o lugar por excelência da disputa política, se dotou dos seus dispositivos de regulação ética e produtores de consenso.

Destinados a detectar desvios éticos, eles concorrem para a anulação do pensamento político. Há uma dicotomia moderna — o par polícia/política — sem a qual dificilmente entendemos o que se passa hoje. O que se apresenta sob o nome de política releva antes do domínio da polícia. E a referência à ética surge com tanta frequência porque, na verdade, são as acções próprias da polícia que ocuparam o lugar da política.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 27.2.2010.


[cf. «Polícia e política» (Jacques Rancière).]

Ao pé da letra #83 (António Guerreiro)
«Sobre jornalistas, professores e editores
Esta discussão sobre a liberdade de expressão incide sobre o jornalismo como instrumento de socialização do saber e da informação e órgão de formação colectiva de uma opinião pública racional. Mas omite que a liberdade de expressão é um factor dependente de outras instâncias fundamentais, nomeadamente a editoria (de livros e revistas), a escola e a universidade. Que relativamente ao jornalismo sejam lançados tantos avisos de carácter de urgência e se esqueça o que se passa com as outras duas instâncias – isso, sim, devia ser um sinal de alarme e visto como uma prova de que a liberdade de expressão e de informação não está plenamente garantida, não por efeito da censura mas de outros mecanismos coercivos.

A degradação da instância editorial, tão evidente em Portugal, segue as vias do jornalismo publicitário; e ambos têm a mesma causa que a deslegitimação da universidade, condicionada pelo pragmatismo económico, social e cultural. Daí, o destino comum que une hoje professores universitários, editores e jornalistas: todos foram destituídos da autonomia intelectual que era, desde o Iluminismo, o fundamento das suas actividades.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 20.2.2010.

“Jaime”, o inesperado no cinema português (entrevista a António Reis por João César Monteiro)












Entrevista a António Reis por João César Monteiro, «“Jaime”, o inesperado no cinema português», Cinéfilo n.º 29, 20-26 de Abril de 1974 [!!!].

JAIME de António Reis Portugal, 1974, 35’
TRÁS-OS-MONTES de António Reis e Margarida Cordeiro Portugal, 1976, 100’
com os habitantes de Bragança e Miranda do Douro

4ª, dia 17, 22h – Cinemateca, Lisboa

[Cf. ficheiro pdf da digitalização desta entrevista; cf. o excelente blogue-arquivo de António Neves sobre a obra de António Reis, onde se encontra a sua versão transcrita.]











[O branco é a cor do luto na Índia. | White is the color for mourning in India.]

Não se pode mexer nas imagens sem fazer política | On ne touche pas aux images sans faire de la politique (Didi-Huberman)

«Voltando à inocência de que falávamos há pouco, à posição do historiador de arte que acredita, ingenuamente, que trabalha apenas [justesobre as imagens... É um pouco o sentimento que eu tinha ao trabalhar sobre as imagens de Auschwitz. E a resposta que me deram, na sua violência mesma, e a meu ver na sua injustiça, foi a de me dizer “você está a fazer política”. Fiquei estupefacto que me devolvessem argumentos sobre o conflito israelo-palestiniano, tendo em conta que tinha falado apenas de quatro imagens de Agosto de 1944. Fiquei completamente estupefacto! Isto destabilizou-me completamente enquanto historiador de arte. Estão a ver! De facto, havia uma lição nessa violência e mesmo nessa injustiça. A lição é que não se pode mexer nas imagens sem fazer política. E creio que, enfim, começo a dar-me conta disso.»

«Pour revenir à cette innocence dont on parlait tout à l’heure, cette position de l'historien de l'art qui croit, un peu niaisement, comme ça, qu’il travaille juste sur des images... C’est un peu le sentiment que j’avais en travaillant sur des images d’Auschwitz. Et là réponse qui m’a était faite dans sa violence même, et à mon avis dans son injustice, mais dans sa violence, c’était de me dire « vous faîtes de la politique ». J’étais stupéfait qu’on me renvoie des arguments sur le conflit israélo-palestinien, alors que j’avais juste parlé de quatre images d’août 1944. J’étais complètement stupéfait ! Ça m’a vraiment déstabilisé complètement comme historien de l’art. Vous pensez bien ! En fait, il y avait une leçon dans cette violence et même dans cette injustice. La leçon c’est que on ne touche pas aux images sans faire de la politique. Et je crois que, voilà, je commence de m’en rendre compte.»

Georges Didi-Huberman,
in “Discussion du 6 mai au sujet de son dernier livre Quand les images prennent position. L’œil de l’histoire, 1” (audio: 78:24-79:30) [obrigado à Marta Mestre].

Ao pé da letra #82 (António Guerreiro)
«Sobre os significantes vazios do discurso político
Se tentarmos escutar com atenção e com uma disposição analítica o discurso político em que estamos envolvidos, verificamos facilmente que chegámos a um limite em que tudo gira em torno de significantes vazios. ‘Democracia’ é o exemplo extremo desse esvaziamento, até pelo consenso quase universal que em torno dela se organizou. Mas “asfixia democrática” também não significa nada e tem a desvantagem de querer denunciar as formas de controlo mais grosseiras, que são também as mais inócuas. Para onde quer que nos viremos, ouvindo à Esquerda ou à Direita, não há um único discurso que não advenha do lugar de uma democracia gestionária.

Talvez seja útil perceber que uma genealogia da ideia de democracia (como aquela que fez o filósofo Giorgio Agamben) nos obriga a ter em conta a ambiguidade do conceito, o seu duplo aspecto: por um lado, ele designa uma ‘forma de constituição’, isto é, uma racionalidade política, mas, por outro, designa também uma ‘forma de governo’, isto é, uma racionalidade económico-gestionária. Esta última triunfou em toda a linha e por isso até já esquecemos que o ‘ingovernável’ não é o caos. É onde acaba a gestão e começa a política.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 13.2.2010.

Crueldade e infantilismo | Cruelty and infantility (Roberto Rossellini)



«A que chama posição moral? Os defensores do cinema-verdade também reivindicam esse termo.
É, antes de mais, uma posição feita de amor. Logo, de tolerância, de compreensão. Logo, também, de participação. Como vêem, as coisas misturam-se, complicam-se, e tornam-se cada vez mais estreitas, cada vez mais próximas do que vocês próprios são. A partir do momento em que afastam de vocês todo o juízo, toda a participação, toda a simpatia, toda a tolerância, e em que dizem: “Sejam como são, estou-me nas tintas”, já não é uma posição moral, é até uma atitude muito cínica.

Descobrimos, pelo nosso lado, uma posição moral em La Punition [Jean Rouch, 1962]. Isto é, poética, se prefere. Há uma maneira de filmar as pessoas que as ridiculariza, as entorpece, as reduz à animalidade. Há uma outra que as faz aparecer como seres livres. Em La Punition, não há dúvida que as personagens eram ridicularizadas, mas à primeira vista. A ideia de liberdade (primeiro título do filme) aparece através do seu comportamento.
Quanto a mim, não aparece. O que dizem está certo. Podemos mostrar uma pessoa como quisermos. É verdade. Mas não acredito que um facto artístico seja um facto artístico acabado, se não houver ternura. Podemos ridicularizar alguém e, ao mesmo tempo, ter ternura. Podemos até tratá-lo de uma maneira aparentemente muito cruel. A ternura é uma verdadeira posição moral. Não sei reconhecer como forma artística alguma coisa que não tenha ternura. Ora, nesse filme, não há ternura, visto que é o acaso que conduz tudo.
O que me enerva, o que me irrita no mundo actual? O mundo actual é um mundo demasiado cruel e é-o em vão. A crueldade é ir violar a personalidade de alguém, é pôr alguém em condição de fazer uma confissão total e gratuita. Se fosse uma confissão com vista a um fim determinado, aceitá-la-ia; mas é um exercício de um voyeur, de um vicioso. Isto é: é cruel.
Reagi violentamente a isso, visto que acredito firmemente que a crueldade é sempre uma manifestação de infantilismo, sempre. Toda a arte de hoje se torna de dia para dia mais infantil. Cada um tem o desejo louco de ser o mais infantil possível. Não digo ingénuo: infantil. Por causa do infantilismo, caímos no mais baixo da escala humana. Passámos ao macaco antropomórfico; em breve estaremos na rã e na enguia. É isso que me irrita. É essa falta total de pudor.
Vimos esse infantilismo no nouveau roman. Vemo-lo sob uma fórmula absolutamente inacreditável em pintura. Chegámos à vaidade total, ao doentio. E isso num mundo que se torna todos os dias mais sério, mais complexo. Ora, visto que este mundo é feito pelos homens, tenho de o aceitar sempre, apesar das queixas do género de: “Caminhamos para a destruição geral, para a bomba atómica, etc.” Hoje, a arte é a queixa ou a crueldade. Não há outra medida: ou se queixam, ou fazem um exercício absolutamente gratuito de pequena crueldade.

Mas, nesse caso, ataca toda a arte contemporânea, de há cem anos para cá. Não há ternura em, por exemplo, A Educação Sentimental de Flaubert, ou, se a há, também a há na arte de hoje.
Por exemplo, tomemos essa especulação – é preciso chamá-la pelo nome – que fazem sobre a incomunicabilidade, sobre a alienação, etc.. Não encontro nisso nenhuma ternura, mas uma enorme complacência. É possível que essa ternura exista e que eu a não saiba ver. Talvez me escape. A partir do momento em que não possa avistar cores para cá do vermelho e para lá do violeta, é como se não existissem. Tenho de ser físico para saber que para cá do vermelho, há o infravermelho, e, para lá do violeta, o ultra-violeta. Se não sou físico, se julgo através dos meus sentidos, não consigo avistar a ternura.
Hoje, sentimo-nos na vanguarda a partir do momento em que nos queixamos. Mas queixar-se, não é criticar, o que é já uma posição moral. A partir do momento em que descobrimos que nos podemos afogar se cairmos na água, e em que mergulhamos todos os dias pessoas na água para vermos essa coisa terrível e abominável que é aqueles que mergulhamos na água poderem afogar-se, acho que é absolutamente ignóbil. Mas se, quando me apercebi que as pessoas que caem à água se afogam, começar a aprender a nadar para poder arremessar-me à água e salvá-las, é então uma outra posição.
E isso, disse-lhes no ano passado, determinou-me a não fazer mais cinema.»


Roberto Rossellini,
entrevistado por Fereydoun Hoveyda e Eric Rohmer, Cahiers du cinéma 145, Julho 1963 (in A política dos autores, trad. Isabel Maria Lucas Pascoal, Assírio & Alvim, Lisboa, 1976, pp. 110-112).
«What do you call a moral position? The advocates of cinéma vérité use the same term.
First of all it is a position of love, and therefore of tolerance and understanding. And of participation. You see how things mix, complicate each other and always become tighter, closer to who you are, what you want. But the moment you stand back from any judgment, any participation, any sympathy, any tolerance, and say: “Be as you are, I don’t give a damn,” then we are no longer speaking of a moral stance but rather of a very cynical attitude.

As far as we are concerned, we do see a moral stance in La Punition [Jean Rouch, 1962]. A poetic one, if you prefer. There is a way of filming people that makes them look ridiculous, stiff, that reduces them to a state of animality. And then there is another one that makes them look free. In La Punition the characters are ridiculed, no doubt about it, but only superficially. The idea of freedom (which was the first title of the film), shows through their behavior.
As far as I am concerned it doesn’t show at all. What you say is right. There are all sorts of ways to show a person, that’s true, but I do not believe that an artistic event is really such if it doesn’t involve any affection. You can ridicule someone and at the same time show him more affection. You can even treat him in a way that’s apparently quite cruel. But affection remains the only real moral stance. I cannot recognize anything lacking affection as artistic. In the case at hand there is no affection since everything depends on chance.
What irritates me, what infuriates me in today’s world? Today’s world is too gratuitously cruel. Cruelty means the violation of someone’s personality, the forceful extraction of a total and gratuitous confession. If it were a confession aimed at something specific, I would accept it: but it is the practice of a
voyeur, of a pervert. In other words: it’s cruel.
I react very strongly to all this because I firmly believe that cruelty is always an expression of infantility, always. Today’s art gets more and more childish every day. Everyone seems to have a mad yearning to be as childish as possible. I don’t mean naïve: childish. From infantility we have fallen to the bottom of the human scale. We have become anthropomorphic monkeys: we’ll soon move on to the stage of the frog or the eel. This is what angers me. This total lack of decency.
This infantility, we have seen it in the nouveau roman. We see it in an absolutely unbelievable form in painting. We have gone as far as total vanity, sickness. And all this in a world that’s daily becoming more serious, more complex. now, since this world has been made by people, I must always accept it, in spite of all the moaning and groaning that goes on, such as: “We are heading toward total destruction, the atomic bomb, etc.”
Today, art is either moaning and groaning or cruelty. There is no other measure: either you complain or you devote yourself to the gratuitous practice of petty cruelty.

It would seem you are attacking all the contemporary art of the last hundred years. There is no affection in Flaubert’s Éducation Sentimentale, or if there is, then you can find it also in contemporary art.
Take, for instance, the way in which everyone is speculating–it has to be called by its real name–on incommunicability and alienation. I find absolutely no affection in all that, only an enormous complacency. But maybe there is some affection there and I am the one who’s unable to see it. Maybe it eludes me. As I cannot perceive colors this side of the red or that side of violet, it is as if there where none. I must be a physicist to know that on this side of red there is infrared, and on that side of violet there is ultraviolet. If I am not a physicist, if I judge with my own senses, I am unable to perceive any affection.
Today it’s enough to complain to be part of the avant-garde. But to complain is not to criticize, which would already be a moral stance. When you find out that people may drown if they fall into the water, and keep on pushing them into the water every day to confirm the awful and abominable fact that indeed they may drown, I can only be disgusted. On the other hand if, the moment you discover that other people who fall into the water may drown, you start taking swimming lessons so that you can jump after them and save them, then it’s another story.
This is what, as I told you last year, has made me decide to stop making films.»


in My Method: Writings and Interviews,
 transl. Annapaola Cancogni, Marsilio Publishers, 1995, pp. 144-146 
[thanks to Andy Rector].


Ao pé da letra #81 (António Guerreiro) 
«Sobre a sensibilidade da época e o sentido do trágico 
Em 1910, há um século, a Europa preparou-se com temor supersticioso para a visita, a 17 de Maio, do cometa Halley. O acontecimento foi celebrado literariamente e festejado pelas multidões como se estivessem a assistir ao renascimento dos deuses pagãos. Mas esse foi também o ano de outros prodígios não escritos nas cartas astronómicas: surge a música atonal de Schoenberg, Alban Berg e Webern; sai o livro de Carlo Michelstaedter A Persuasão e a Retórica, a mais famosa tesi di laurea da universidade italiana e o documento extremo da consciência trágica da época (o autor suicidou-se no dia a seguir, com 23 anos); Rilke publicou os seus Cadernos de Malte Laurids Brigge; é construído o edifício Steiner, de Adolf Loos, em Viena, para grande escândalo do imperador, que se recusava a olhar para ele; o jovem Lukács publicou A Alma e as Formas.

A sensibilidade epocal encontrava em todas estas realizações artísticas uma configuração nítida e um destino. Era o tempo da tragédia da cultura. Nós, que vamos este ano comemorar o centenário da República, convinha percebermos o que, simultaneamente, e noutras latitudes, estava em jogo com um sentido do trágico para nós desconhecido.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 6.2.2010.


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