«A que chama posição moral? Os defensores do cinema-verdade também reivindicam esse termo. É, antes de mais, uma posição feita de amor. Logo, de tolerância, de compreensão. Logo, também, de participação. Como vêem, as coisas misturam-se, complicam-se, e tornam-se cada vez mais estreitas, cada vez mais próximas do que vocês próprios são. A partir do momento em que afastam de vocês todo o juízo, toda a participação, toda a simpatia, toda a tolerância, e em que dizem: “Sejam como são, estou-me nas tintas”, já não é uma posição moral, é até uma atitude muito cínica.
Descobrimos, pelo nosso lado, uma posição moral em La Punition [Jean Rouch, 1962]. Isto é, poética, se prefere. Há uma maneira de filmar as pessoas que as ridiculariza, as entorpece, as reduz à animalidade. Há uma outra que as faz aparecer como seres livres. Em La Punition, não há dúvida que as personagens eram ridicularizadas, mas à primeira vista. A ideia de liberdade (primeiro título do filme) aparece através do seu comportamento. Quanto a mim, não aparece. O que dizem está certo. Podemos mostrar uma pessoa como quisermos. É verdade. Mas não acredito que um facto artístico seja um facto artístico acabado, se não houver ternura. Podemos ridicularizar alguém e, ao mesmo tempo, ter ternura. Podemos até tratá-lo de uma maneira aparentemente muito cruel. A ternura é uma verdadeira posição moral. Não sei reconhecer como forma artística alguma coisa que não tenha ternura. Ora, nesse filme, não há ternura, visto que é o acaso que conduz tudo. O que me enerva, o que me irrita no mundo actual? O mundo actual é um mundo demasiado cruel e é-o em vão. A crueldade é ir violar a personalidade de alguém, é pôr alguém em condição de fazer uma confissão total e gratuita. Se fosse uma confissão com vista a um fim determinado, aceitá-la-ia; mas é um exercício de um voyeur, de um vicioso. Isto é: é cruel. Reagi violentamente a isso, visto que acredito firmemente que a crueldade é sempre uma manifestação de infantilismo, sempre. Toda a arte de hoje se torna de dia para dia mais infantil. Cada um tem o desejo louco de ser o mais infantil possível. Não digo ingénuo: infantil. Por causa do infantilismo, caímos no mais baixo da escala humana. Passámos ao macaco antropomórfico; em breve estaremos na rã e na enguia. É isso que me irrita. É essa falta total de pudor. Vimos esse infantilismo no nouveau roman. Vemo-lo sob uma fórmula absolutamente inacreditável em pintura. Chegámos à vaidade total, ao doentio. E isso num mundo que se torna todos os dias mais sério, mais complexo. Ora, visto que este mundo é feito pelos homens, tenho de o aceitar sempre, apesar das queixas do género de: “Caminhamos para a destruição geral, para a bomba atómica, etc.” Hoje, a arte é a queixa ou a crueldade. Não há outra medida: ou se queixam, ou fazem um exercício absolutamente gratuito de pequena crueldade.
Mas, nesse caso, ataca toda a arte contemporânea, de há cem anos para cá. Não há ternura em, por exemplo, A Educação Sentimental de Flaubert, ou, se a há, também a há na arte de hoje. Por exemplo, tomemos essa especulação – é preciso chamá-la pelo nome – que fazem sobre a incomunicabilidade, sobre a alienação, etc.. Não encontro nisso nenhuma ternura, mas uma enorme complacência. É possível que essa ternura exista e que eu a não saiba ver. Talvez me escape. A partir do momento em que não possa avistar cores para cá do vermelho e para lá do violeta, é como se não existissem. Tenho de ser físico para saber que para cá do vermelho, há o infravermelho, e, para lá do violeta, o ultra-violeta. Se não sou físico, se julgo através dos meus sentidos, não consigo avistar a ternura. Hoje, sentimo-nos na vanguarda a partir do momento em que nos queixamos. Mas queixar-se, não é criticar, o que é já uma posição moral. A partir do momento em que descobrimos que nos podemos afogar se cairmos na água, e em que mergulhamos todos os dias pessoas na água para vermos essa coisa terrível e abominável que é aqueles que mergulhamos na água poderem afogar-se, acho que é absolutamente ignóbil. Mas se, quando me apercebi que as pessoas que caem à água se afogam, começar a aprender a nadar para poder arremessar-me à água e salvá-las, é então uma outra posição. E isso, disse-lhes no ano passado, determinou-me a não fazer mais cinema.» Roberto Rossellini, entrevistado por Fereydoun Hoveyda e Eric Rohmer, Cahiers du cinéma 145, Julho 1963 (in A política dos autores, trad. Isabel Maria Lucas Pascoal, Assírio & Alvim, Lisboa, 1976, pp. 110-112).
| «What do you call a moral position? The advocates of cinéma vérité use the same term. First of all it is a position of love, and therefore of tolerance and understanding. And of participation. You see how things mix, complicate each other and always become tighter, closer to who you are, what you want. But the moment you stand back from any judgment, any participation, any sympathy, any tolerance, and say: “Be as you are, I don’t give a damn,” then we are no longer speaking of a moral stance but rather of a very cynical attitude. As far as we are concerned, we do see a moral stance in La Punition [Jean Rouch, 1962]. A poetic one, if you prefer. There is a way of filming people that makes them look ridiculous, stiff, that reduces them to a state of animality. And then there is another one that makes them look free. In La Punition the characters are ridiculed, no doubt about it, but only superficially. The idea of freedom (which was the first title of the film), shows through their behavior. As far as I am concerned it doesn’t show at all. What you say is right. There are all sorts of ways to show a person, that’s true, but I do not believe that an artistic event is really such if it doesn’t involve any affection. You can ridicule someone and at the same time show him more affection. You can even treat him in a way that’s apparently quite cruel. But affection remains the only real moral stance. I cannot recognize anything lacking affection as artistic. In the case at hand there is no affection since everything depends on chance. What irritates me, what infuriates me in today’s world? Today’s world is too gratuitously cruel. Cruelty means the violation of someone’s personality, the forceful extraction of a total and gratuitous confession. If it were a confession aimed at something specific, I would accept it: but it is the practice of a voyeur, of a pervert. In other words: it’s cruel. I react very strongly to all this because I firmly believe that cruelty is always an expression of infantility, always. Today’s art gets more and more childish every day. Everyone seems to have a mad yearning to be as childish as possible. I don’t mean naïve: childish. From infantility we have fallen to the bottom of the human scale. We have become anthropomorphic monkeys: we’ll soon move on to the stage of the frog or the eel. This is what angers me. This total lack of decency. This infantility, we have seen it in the nouveau roman. We see it in an absolutely unbelievable form in painting. We have gone as far as total vanity, sickness. And all this in a world that’s daily becoming more serious, more complex. now, since this world has been made by people, I must always accept it, in spite of all the moaning and groaning that goes on, such as: “We are heading toward total destruction, the atomic bomb, etc.” Today, art is either moaning and groaning or cruelty. There is no other measure: either you complain or you devote yourself to the gratuitous practice of petty cruelty.
It would seem you are attacking all the contemporary art of the last hundred years. There is no affection in Flaubert’s Éducation Sentimentale, or if there is, then you can find it also in contemporary art. Take, for instance, the way in which everyone is speculating–it has to be called by its real name–on incommunicability and alienation. I find absolutely no affection in all that, only an enormous complacency. But maybe there is some affection there and I am the one who’s unable to see it. Maybe it eludes me. As I cannot perceive colors this side of the red or that side of violet, it is as if there where none. I must be a physicist to know that on this side of red there is infrared, and on that side of violet there is ultraviolet. If I am not a physicist, if I judge with my own senses, I am unable to perceive any affection. Today it’s enough to complain to be part of the avant-garde. But to complain is not to criticize, which would already be a moral stance. When you find out that people may drown if they fall into the water, and keep on pushing them into the water every day to confirm the awful and abominable fact that indeed they may drown, I can only be disgusted. On the other hand if, the moment you discover that other people who fall into the water may drown, you start taking swimming lessons so that you can jump after them and save them, then it’s another story. This is what, as I told you last year, has made me decide to stop making films.»
in My Method: Writings and Interviews, transl. Annapaola Cancogni, Marsilio Publishers, 1995, pp. 144-146 [thanks to Andy Rector]. |