Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #201 (António Guerreiro): Uma espécie de Esperanto

Basta ler a resposta que Maria Helena Mira Mateus, eminente linguista e professora catedrática, deu a um artigo de Teolinda Gersão (ambos publicados no “Público”), em que a escritora criticava o deslumbramento com que os programas de Português debitam abundantes e complexos conceitos e categorias gramaticais (em tal grau que eles se anulam nos seus próprios fins), para percebermos a arrogância de quem tem tido alguma responsabilidade na disciplina. Com os resultados que estão à vista. Uma metáfora arquitetónica é recorrente no texto de M.H.M.M.: por três vezes fala em “construção”, a última delas para se referir aos elementos com que a língua “se constrói”. Esta obsessão construtivista tem um objetivo: mostrar que é preciso saber identificar, nomear e categorizar os elementos e as operações linguísticas e que sem esse saber os alunos estariam completamente desarmados para o conhecimento de tudo o que diz respeito à língua escrita e falada.  

A obsessão construtivista é a obsessão pela formalização linguística. A ideia de que a língua é uma construção pode ser muito útil para defender as suas teses sobre o ensino da língua, mas se M.H.M.M não estivesse tão preocupada em defender o seu território certamente que não cometia tal dislate. Uma língua construída só pode ser uma língua artificial, como o Esperanto. Esta comparação esclarece alguma coisa: na verdade, os grandes arquitetos do ensino da língua materna parecem aspirar a que ela seja ensinada como uma espécie de Esperanto. Ao investir grande parte da sua tarefa nas longuíssimas e exageradas categorizações gramaticais, o ensino do Português está tão obcecado com o estudo da frase (essa sim, uma construção) que se mostra muito inapto a trabalhar com o que vem para lá dela: o texto, e particularmente o texto literário. Será porque a frase é o limite do objecto de investigação da Linguística?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 21.7.2012.


Ao pé da letra #200 (António Guerreiro): O consenso cultural

No sábado passado, em Grândola, na sessão de encerramento e entrega dos prémios do belíssimo festival de música sacra do Baixo Alentejo (com um alcance exemplar no domínio do património artístico e natural), chamado Terras sem Sombra, o secretário de Estado Carlos Moedas fez um discurso, que poderia ser subscrito por qualquer grupo de artistas e intelectuais, apelando à defesa da cultura, ameaçada pela brutalidade e pelo obscurantismo. Tal circunstância obriga-nos a pensar que espécie de ídolo é este em torno do qual se estabelece uma grande unanimidade em sua defesa e se cria a convicção de que é um bem precioso e, em última instância, capaz de dissolver as diferenças entre os defensores da cultura das elites e os partidários da cultura das massas e das indústrias culturais, entre os detratores da arte contemporânea e os que reclamam cuidados especiais para a experimentação em todos os domínios da criação artística.  

A autoridade da palavra ‘cultura’ deixa toda a gente (até um secretário de Estado que não é o da dita) na disposição de se vergar a esta injunção: defendamo-la contra tudo e contra todos. Ora, é precisamente esta unanimidade, suscitada pela mais plástica e extensiva das noções, que faz com que dificilmente em seu nome, se possa travar um combate e operar uma divisão dos exércitos no campo de batalha. Ela é o lugar onde até um general inimigo pode juntar-se às hostes de combatentes voluntários e desarmados, num sábado à tarde, na terra da fraternidade. Por isso é que todos aqueles que mais contribuíram para defender a cultura foram sempre os que se afastaram da culturofilia e da unanimidade que ela suscita. Foram, em geral, umas criaturas simiescas, furiosas, que acharam que isso da cultura era para ser tratado como um insigne filósofo do século XIX, Nietzsche de seu nome, fez à filosofia: à martelada.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 14.7.2012.

Ao pé da letra #199 (António Guerreiro): Fazer e desfazer a opinião

Um étologo competente que decidisse investigar o comportamento e os modos de sobrevivência dos detentores da opinião como espécie intelectual consagrada na imprensa portuguesa (e nos media em geral) teria de começar por descobrir porque é que toda essa gente que, pelas leis da racionalidade ocidental, só poderia angariar poder e capital simbólico a desfazer a opinião conseguiu triunfar, acomodando-se com sucesso a um papel tão desclassificado desde Platão: o de fazer opinião. Neste mundo às avessas, uma pesquisa etológica aprofundada descobrirá que no império da doxa também existem paradoxos, como é o caso (entre outros a solicitar trabalho de campo) de João Carlos Espada, cuja sobrevivência é um mistério porque não parece resultar de uma adaptação às regras do meio nem sequer às leis de Darwin. Numa época em que o discurso do universitário não encontra abrigo fácil nos jornais, J.C.E. consegue apresentar-se e representar-se como o hiperuniversitário.  

É certo que se trata mais de uma questão de pose do que de saber, mas o lugar de onde ele observa o mundo é sempre o small world das salas de aulas, dos congressos e dos colóquios universitários, com vista sobre uma bibliografia restrita e, parte dela, exausta. Pelo caminho, nunca prescinde de publicitar as instituições que os promovem e as marcas comerciais que os patrocinam. Para o leitor comum, tudo isto é muito inócuo e pouco digno de menção, mas o etólogo de serviço não pode deixar de se deter em tal objeto de estudo e de tentar responder às perguntas: do que é que J.C.E. é sintoma?, de que modo a sua sobrevivência nos jornais nos pode elucidar sobre o habitus do campo da corporação a que pertence?, como é que suscita não só uma etologia mas também uma sociologia da opinião em Portugal e das suas regras de casta?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 7.7.2012.

Ao pé da letra #198 (António Guerreiro): Os impostos e a ética do dom

Para perceber as mudanças do clima político e das formas ideológicas de representação do social é necessário recorrer ao que o filósofo alemão Peter Sloterdijk (uma figura fundamental da vida intelectual europeia, a quem se devem grandes debates públicos) chama “energias psicopolíticas”. Por exemplo, é hoje bem visível como o capitalismo, que desde as duas últimas décadas do século passado até 2008 era um dado natural, neutro no plano moral (a não ser nalguns discursos minoritários que, de resto, tinham perdido a credibilidade), de um momento para o outro readquiriu uma aceção polémica e começou de novo a ser objetivado criticamente. Entrando numa boa livraria de uma capital europeia (as livrarias em Portugal pertencem a outro mundo), temos a sensação de que se assiste ao triunfo dos herdeiros do pensamento crítico dos anos 70. Baseado nesta ideia de energias psicopolíticas, Sloterdijk fez há cerca de dois anos uma proposta polémica que deu origem a um aceso debate, na Alemanha, em alguns jornais.  

Com a sua tendência para o que muitos acham que é o mero gosto da provocação, Sloterdijk, apelando à teoria do dom de Marcel Mauss, como laço social primário, incitou a esta experiência intelectual: que os impostos fossem repensados de modo a considerar o cidadão contribuinte como um dador (Sloterdijk pensa que o nosso sistema fiscal mascara voluntariamente o carácter de dom) e não como um devedor, passando-se assim do sistema da obrigatoriedade a outro baseado no gesto voluntário. Como é óbvio, foi acusado de querer desmantelar o Estado social e de andar a brincar perigosamente com ideias utópicas. Mas a verdade é que consegui introduzir a ideia de que, na atual fase do capitalismo, era necessária uma reforma fiscal e repensar os impostos, a partir de pressupostos que estão completamente fora do horizonte do poder político.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.6.2012.


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