Ao pé da letra #200 (António Guerreiro): O consenso cultural
No sábado passado, em Grândola, na sessão de encerramento e entrega dos prémios do belíssimo festival de música sacra do Baixo Alentejo (com um alcance exemplar no domínio do património artístico e natural), chamado Terras sem Sombra, o secretário de Estado Carlos Moedas fez um discurso, que poderia ser subscrito por qualquer grupo de artistas e intelectuais, apelando à defesa da cultura, ameaçada pela brutalidade e pelo obscurantismo. Tal circunstância obriga-nos a pensar que espécie de ídolo é este em torno do qual se estabelece uma grande unanimidade em sua defesa e se cria a convicção de que é um bem precioso e, em última instância, capaz de dissolver as diferenças entre os defensores da cultura das elites e os partidários da cultura das massas e das indústrias culturais, entre os detratores da arte contemporânea e os que reclamam cuidados especiais para a experimentação em todos os domínios da criação artística. | A autoridade da palavra ‘cultura’ deixa toda a gente (até um secretário de Estado que não é o da dita) na disposição de se vergar a esta injunção: defendamo-la contra tudo e contra todos. Ora, é precisamente esta unanimidade, suscitada pela mais plástica e extensiva das noções, que faz com que dificilmente em seu nome, se possa travar um combate e operar uma divisão dos exércitos no campo de batalha. Ela é o lugar onde até um general inimigo pode juntar-se às hostes de combatentes voluntários e desarmados, num sábado à tarde, na terra da fraternidade. Por isso é que todos aqueles que mais contribuíram para defender a cultura foram sempre os que se afastaram da culturofilia e da unanimidade que ela suscita. Foram, em geral, umas criaturas simiescas, furiosas, que acharam que isso da cultura era para ser tratado como um insigne filósofo do século XIX, Nietzsche de seu nome, fez à filosofia: à martelada. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 14.7.2012. |
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