Ao pé da letra #198 (António Guerreiro): Os impostos e a ética do dom
Para perceber as mudanças do clima político e das formas ideológicas de representação do social é necessário recorrer ao que o filósofo alemão Peter Sloterdijk (uma figura fundamental da vida intelectual europeia, a quem se devem grandes debates públicos) chama “energias psicopolíticas”. Por exemplo, é hoje bem visível como o capitalismo, que desde as duas últimas décadas do século passado até 2008 era um dado natural, neutro no plano moral (a não ser nalguns discursos minoritários que, de resto, tinham perdido a credibilidade), de um momento para o outro readquiriu uma aceção polémica e começou de novo a ser objetivado criticamente. Entrando numa boa livraria de uma capital europeia (as livrarias em Portugal pertencem a outro mundo), temos a sensação de que se assiste ao triunfo dos herdeiros do pensamento crítico dos anos 70. Baseado nesta ideia de energias psicopolíticas, Sloterdijk fez há cerca de dois anos uma proposta polémica que deu origem a um aceso debate, na Alemanha, em alguns jornais. | Com a sua tendência para o que muitos acham que é o mero gosto da provocação, Sloterdijk, apelando à teoria do dom de Marcel Mauss, como laço social primário, incitou a esta experiência intelectual: que os impostos fossem repensados de modo a considerar o cidadão contribuinte como um dador (Sloterdijk pensa que o nosso sistema fiscal mascara voluntariamente o carácter de dom) e não como um devedor, passando-se assim do sistema da obrigatoriedade a outro baseado no gesto voluntário. Como é óbvio, foi acusado de querer desmantelar o Estado social e de andar a brincar perigosamente com ideias utópicas. Mas a verdade é que consegui introduzir a ideia de que, na atual fase do capitalismo, era necessária uma reforma fiscal e repensar os impostos, a partir de pressupostos que estão completamente fora do horizonte do poder político. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.6.2012. |
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