Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #171 (António Guerreiro): A miséria da ortografia

Estes linguistas que engendraram um acordo ortográfico que nos foi politicamente imposto têm uma ideia tão pindérica e instrumental da ortografia que jamais perceberão o ‘hénaurme’ em vez de ‘énorme’, de Flaubert, e a ‘dansa’, de Sophia – alguém consegue imaginá-la como ‘Sofia’ – de Mello Breyner Andresen, que a poeta justificava assim: “Deve-se escrever com ‘s’, como era antes, porque o ‘ç’ é uma letra sentada, uma letra pesada.” Podemos argumentar que há algo na literatura que passa por um texto irredutivelmente gráfico e podemos isolar nela o jogo da forma e da substância da expressão (ortho) gráfica. Mas todos nós desenvolvemos o sentido de um valor icónico-semântico-performativo da ortografia que faz com que sintamos como uma violência e uma amputação a queda das consoantes mudas, por exemplo. Aqueles que recusam seguir as normas do acordo ortográfico não são, em princípio, uns snobs: são objetores (isto é, ‘objectores’) de consciência. 
Mas a questão coloca-se ainda com mais acuidade nas palavras que passam a ser utilizadas como conceitos. Alguém que escreva sobre a teoria da ‘acção’ (da vita activa), de Hannah Arendt, que esforço tem de fazer para prescindir daquele ‘c’ sem cair na debilidade? E alguém que estude a teoria da soberania de Carl Schmitt conseguirá rebaixar-se ao nível da ‘exceção’ que está no centro da noção schmittiana do soberano: “Soberano é aquele que decide sobre o estado de excepção”? Garantem-nos que tudo isto é uma questão de hábito, mas a verdade é que há uma espécie de arquigrafia que nenhuma reforma ortográfica conseguiu ainda liquidar (o Acordo, em muitos casos, parece aplicado nessa tarefa criminosa). Estes linguistas que colocaram os seus bons ofícios científicos ao serviço da elaboração deste Acordo são avatares anedóticos daquela que já foi considerada a “ciência farol das ciências humanas”. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 23.12.2011.

Ao pé da letra #170 (António Guerreiro): Significantes flutuantes

Em Portugal, o Governo anda atarefadíssimo a fazer reformas. Mas, se nos deslocarmos para Itália, também a prioridade são as reformas; e para Espanha, e para França... A palavra ‘reforma’ segue à frente, na torrente quotidiana de discursos. ‘Reforma’ tornou-se uma palavra vazia de sentido ou com um significado indeterminado, apta a ser preenchida, como quisermos, isto é, como os decisores políticos quiserem. É qualquer coisa, aliquid, uma palavra-maná. Foi o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss quem, na introdução à obra de Marcel Mauss, se referiu a estas palavras de tipo maná, sem referente nem sentido precisos, dando-lhes o nome de significantes flutuantes. Que se dê o nome de palavra-maná ao significante flutuante mostra bem como este é dotado de uma mágica substância mística. Cada governo precisa pelo menos de uma destas palavras para poder apoderar-se de um sentido que dê a ilusão de preencher o lugar vazio que ocupa. Para Cavaco, foi a ‘modernização’, para Guterres, a ‘solidariedade’, para Sócrates, a ‘tecnologia’, para Passos Coelho, a ‘reforma’.
A existência de significantes flutuantes deve-se a uma fundamental inadequação entre significantes e significados, isto é, a um excesso de significantes e a uma falta de significados. Saber tirar partido desta condição é a grande arte dos feiticeiros, dos xamãs, dos profetas. Sem esta inadequação não haveria palavra mágica, nem divina, nem qualquer invenção mítica e estética. Nem haveria poesia nem outras formas de literatura. E também nunca teria havido revoluções. O espantoso, apenas isso, é que os significantes flutuantes já não são daqueles que despertam o sonho, incitam à ação e nos elevam o olhar. Parecem reconduzir-nos sem ilusões para as camadas inferiores, sem substância mística, para as regiões do baixo materialismo, onde a forma se enforma e, redundandemente, se reforma.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 17.12.2011.

Ao pé da letra #169 (António Guerreiro): Homo culturalis

O regozijo nacional por o fado ter sido classificado pela UNESCO como Património Cultural Imaterial não nos deve fazer esquecer que não há foco de luz que não projete também a sua sombra. E, neste caso, a sombra é aquela que, expandindo-se a alta velocidade, cobre o mundo de museus e mausoléus. Com a noção de “património imaterial”, o museu estende-se mesmo além do espaço físico e captura no seu culto comportamentos, práticas, formas de vida. Aloïs Riegl, diretor de um museu em Viena e considerado o inventor da noção moderna de património, escreveu no princípio do século XX um livro sobre o culto moderno dos monumentos, onde analisa o dilema destruição/conservação (um dilema muito moderno, muito próprio das épocas das vanguardas), na medida em que a destruição pode ser criadora e a conservação esterilizante.  
Mas não se pode pensar a museificação sem o seu correlato, a culturalização: a capacidade pan-inclusiva da cultura, os mecanismos de homogeneização de que ela é dotada, enquanto dissolvente de todas as asperezas. Anima-a um dispositivo mortal de apaziguamento, como observou algures Blanchot: “Que existam acontecimentos interessantes e mesmo importantes e que, no entanto, nada possa ter lugar que nos perturbe, esta é a filosofia de todo o serviço da cultura.” O homo culturalis é uma espécie triunfante, em estado de proliferação cancerosa. É a forma encarnada de filisteísmo. Onde quer que ainda exista vida, experiência e aura, lá estará o homo culturalis para edificar um museu, uma reserva, um parque. É certo que, patrimonializado, o fado não fica submetido a nada, nenhuma incumbência o vem condicionar, e difunde-se o seu acrescido capital simbólico. A sombra de que falávamos está noutro lado: nas representações plácidas e tranquilizantes, com o brilho do ouropel, sem pecado nem partes malditas, induzidas por estas operações estético-culturais de patrimonialização e museificação.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.12.2011.

Ao pé da letra #168 (António Guerreiro): Os animadores do gosto

O suplemento literário do El País publicou na semana passada uma “radiografia da crítica literária”, sob a forma de um inquérito feito a 20 “influentes líderes da opinião literária da Europa e da América” (assim os apresentava o jornal). Desse inquérito, podemos tirar as seguintes conclusões: a crítica literária está em crise em todo o lado e em risco de se tornar uma coisa do passado; a crítica literária não está a morrer de morte natural (ninguém defende que se tornou obsoleta), mas foi vítima de um conjunto de condições que levaram a que se tomasse de assalto a esfera pública literária. Na medida em que a crítica literária é uma matriz da crítica de todas as disciplinas artísticas, fácil é perceber o que se passa em todos os domínios. Houve um tempo, ainda não muito distante, em que o motivo de debate eram o modo como ela se situava no interior das ciências humanas (era o tempo em que a diferença entre a “crítica impressionista” e a “crítica universitária” tinha um valor importante na economia dos discursos).  
Esse tempo, e tudo o que nele estava em jogo, tornou-se caduco, ultrapassado pelas circunstâncias. E nada representa melhor essa caducidade do que as famigeradas estrelas, as listas, os balanços anuais, as antecipações de “o que aí vem”. Com estes métodos de classificação e de hierarquização, a crítica, que tinha consistido em transformar a opinião em conhecimento (como dizia Samuel Johnson), é solicitada a fazer o contrário: transformar o conhecimento em opinião. Nesta época pós-crítica e da hipertrofia da opinião, o papel do crítico está reduzido ao de um animador do gosto ou animador cultural. E tão impositivo se tornou este modelo que até os comentadores políticos surgem investidos nesse papel de animadores, onde os de gosto mais à esquerda contracenam com os de gosto mais à direita, num palco onde se desenrola o espetáculo de variedades. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 3.12.2011.

A ideologia não existe (Deleuze)

Todas as sociedades são, ao mesmo tempo, racionais e irracionais. São forçosamente racionais pelos seus mecanismos, engrenagens, sistemas de ligação, e mesmo pelo lugar a que assignam o irracional. No entanto, tudo isto pressupõe códigos ou axiomas que não são produto do acaso, mas que também não têm uma racionalidade intrínseca. Como na teologia: tudo é de facto racional se se aceita o pecado, a imaculada concepção, a encarnação. A razão é sempre uma região talhada no irracional. Não de todo ao abrigo do irracional, mas uma região atravessada pelo irracional e definida apenas por um certo tipo de relações entre factores irracionais. No fundo de toda a razão, o delírio, a deriva. Tudo é racional no capitalismo, salvo o capital ou o capitalismo. Um mecanismo bolsista é efetivamente racional, pode compreender-se, aprende-lo, os capitalistas sabem dele servir-se; no entanto, é completamente delirante, é demente. É neste sentido que dizemos: o racional é sempre a racionalidade de um irracional. Há algo que não foi suficientemente notado em O Capital de Marx: a que ponto está ele fascinado com o mecanismos capitalistas, precisamente porque estes são, ao mesmo tempo, dementes e funcionam muito bem. Então, o que é racional numa sociedade? É – estando definidos os interesses no quadro dessa sociedade – a maneira como as pessoas os perseguem, perseguem a sua realização. Mas nisso existem desejos, investimentos de desejo que não se confundem com os investimento de interesse, e dos quais os interesses dependem nas suas determinações e na sua própria distribuição: todo um enorme fluxo, toda a espécie de fluxos libidinais-inconscientes que constituem o delírio dessa sociedade. A verdadeira história é a história do desejo. Um capitalista ou um tecnocrata atuais não desejam da mesma maneira que um mercador de escravos ou que um funcionário do antigo império chinês. Que as pessoas numa sociedade desejem a repressão, para os outros e para si mesmos, que haja sempre pessoas que querem chatear os outros, e que tenham a possibilidade de o fazer, o “direito” de o fazer, é isto que manifesta o problema de uma ligação profunda entre o desejo libidinal e o campo social. Um amor “desinteressado” pela máquina opressiva: Nietzsche disse belas coisas sobre este triunfo permanente dos escravos, sobre a maneira como os amargurados, os deprimidos, os estúpidos nos impõem o seu modo de vida. >



Justamente, em tudo isso, o que é verdadeiramente específico do capitalismo?
Será que, no capitalismo, o delírio e o interesse, ou então o desejo e a razão, se distribuem de uma maneira de facto nova, particularmente “anormal”? Creio que sim. O dinheiro, o capital-moeda, é um ponto de demência tal que não teria na psiquiatria senão um equivalente: aquilo a que se chama estado terminal. É demasiado complicado, apenas uma observação de pormenor. Nas outras sociedades existe exploração, existem igualmente escândalos e segredos, mas isso faz parte do “código”, existem mesmo códigos explicitamente secretos. No capitalismo é muito diferente: nada é secreto, ao menos em princípio e segundo o código (é por isso que o capitalismo é “democrático” e se reclama da “publicidade”, mesmo em sentido jurídico). E, no entanto, nada é confessável. É a própria legalidade que não é confessável. Por contraste com outras sociedades, trata-se do regime, ao mesmo tempo, do público e do inconfessável. É específico do regime do dinheiro, um delírio efetivamente particular. Veja-se aquilo a que se chama de escândalos atualmente: os jornais falam bastante, toda a gente finge defender-se ou atacar, mas procuramos em vão o que há de ilegal naquilo, tendo em conta o regime capitalista. A declaração de impostos de Chaban, as operações imobiliárias, os grupos de pressão e, mais em geral, os mecanismos económicos e financeiros do capital, tudo é mais ou menos legal, salvo pequenas manchas; sobretudo, tudo é público, ainda que nada seja confessável. Se a esquerda fosse “razoável”, contentar-se-ia em fazer a vulgarização dos mecanismos económicos e financeiros. Nem seria preciso publicar o privado, contentar-nos-íamos em fazer confessar aquilo que é público. Encontrar-nos-íamos numa demência sem equivalente algum nos hospícios. Em vez disso, falam-nos de “ideologia”. Mas a ideologia não tem importância alguma: o que conta não é a ideologia, não é sequer a distinção ou oposição “económico-ideológico”, é a organização de poder. Porque a organização de poder é a maneira na qual o desejo já está no económico, na qual a libido investe o económico, assombra o económico e alimenta as formas políticas de repressão. 
A ideologia é uma ilusão de perspectiva [trompe-l’oeil]?
Nada disso. Dizer «a ideologia é uma ilusão de perspectiva» é ainda a tese tradicional. Metemos a infraestrutura de um lado, o económico, o sério, e depois, do outro lado, metemos a superstrutura, da qual a ideologia faz parte, e rejeitamos os fenómenos de desejo na ideologia. É uma boa maneira de não ver como o desejo trabalha a infraestrutura, como a investe, como dela faz parte, como deste modo organiza o poder, como o sistema repressivo se organiza. Não dizemos: a ideologia é uma ilusão de perspectiva (ou um conceito que designa certas ilusões). Dizemos: a ideologia não existe, trata-se de um conceito ilusório. Por isso convém tão bem ao PC, ao marxismo ortodoxo. O marxismo deu tanta importância ao tema das ideologias para melhor esconder o que se passava na URSS: a nova organização do poder repressivo. A ideologia não existe; não existem senão organizações de poder, uma vez dito que a organização de poder é a unidade do desejo e da infraestrutura económica.

Gilles Deleuze, «Sur le capitalisme et le désir» (1973), 
in L’île déserte. Textes et entretiens 1953-1974, ed. David Lapoujade, Minuit, Paris, 2002, pp. 365-68.


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