Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Raros filmes de Julho


Chinatown
Roman Polanski

1974, 131’
Eram os Anos 70
(prog. Antonio Rodrigues)
4ª, dia 1, 19h
Cinemateca*, Lisboa

 In memoriam
 Vasco Granja
 
 Felix the Cat woos whoopee
 Otto Messmer 1930, 7'
 Magoo saves the bank
 Pete Burness 1957, 5'
 A chairy tale
 Norman McLaren, C. Jutra 1957, 10'
 Buket zvesdi
 Radka Backvarova 1962, 8'
 The truce hurts
 W. Hanna, J. Barbera 1947, 8'
 Baton bunny
 Chuck Jones, Abe Levitow 1959, 6'
 Mexicali shmoes
 Friz Freleng 1959, 7'
 Dial "P" for Pink
 Friz Freleng, Hawley Pratt 1965, 6
'
6ª, dia 3, 19h – Cinemateca
 

Dalla nube alla resistenza
Jean-Marie Straub e
Danièle Huillet

1979, 104’
Eram os Anos 70
2ª, dia 6, 22h – Cinemateca
cf. «Um diálogo»*


Morte a Venezia
Luchino Visconti
1970, 131’
Eram os Anos 70
3ª, dia 7, 21h30 –
Cinemateca

Crash
David Cronenberg
1996, 100’
2ª, dia 13, 15h30 – Cinemateca


Le voyage du ballon rouge
Hou Hsiao-hsien
2007, 115’
O cinema no museu
3ª, dia 14, 19h30 – Cinemateca
 

Bad lieutenant
Abel Ferrara
1992, 96’
3ª, dia 14, 21h30 – Cinemateca

The dead
John Huston
1987, 80’
4ª, dia 15, 21h30 – Cinemateca


Moonfleet
Fritz Lang
1955, 115’
6ª, dia 17, 22h30
Esplanada da Cinemateca

The lusty men
Nicholas Ray

1953, 110’
5ª, dia 23, 15h30 – Cinemateca
 

[apenas filmes vistos, sem repetições, em formatos originais]

No lugar onde havia algo a começar




É muito estranho avaliar, com mera sensibilidade de espectador e não de historiador da cultura, o que envelheceu irremediavelmente num determinado filme. É difícil distinguir, por entre os traços extremamente cansativos, os outros que inesperadamente sobrevivem. Quando o facto é que, muitas vezes, esse movimento de envelhecimento e sobrevivência atravessa os mesmos elementos. Aquilo que é cansativo acaba por se rebelar e encontrar sentido na nossa experiência. Outras vezes, tratam-se infelizmente de signos que já não constituem quaisquer traços de um tempo, mas somente os seus dejectos, aquilo que se tornou praticamente impossível de recolher de maneira frutífera. Porque permanecerão actuais obras que já eram anacrónicas no seu próprio presente? (Por exemplo, no campo musical, não é o singular modo de cantar de Karen Carpenter que a subtrai ao peso, seja favorável ou desfavorável, do extremamente bipolarizado tempo cultural que foi o seu?) Em LIONS LOVE (1969) de Agnès Varda, uma realizadora particularmente desigual e pouco sedimentada em volta de uma estilização autoral, mas sobretudo atenta ao ar do tempo, encontramos destes movimentos paradoxais. A acumulação insane de traços do tempo – o final dos anos 60, com os fluxos do movimento hippie, underground e pop – gritam constantemente na nossa direcção, exibindo a sua então evidente actualidade. Se é, por um lado, quase insuportável nessa saturação dos tiques das personagens e dos clichés musicais e culturais, por outro, o filme procura ir fugindo, e nisso é rico, concentrando-se, por exemplo, sobre as imagens televisivas do assassinato de Robert F. Kennedy.
Deparamos igualmente com um contraste elucidativo entre personagens sem persona cinematográfica alguma, que acabam por se nos tornar simpáticas enquanto pessoas, e outras (ou melhor, uma: a assim chamada Viva) cheias de persona, mas de alguma forma ocas. Estamos em pleno campo da (necessária?) superficialidade do cinema, da sua particular tendência para a bidimensionalidade (a profundidade teatral é insuportável em cinema). Talvez passasse por aqui o objectivo perverso de Varda: produzir um desgaste tal que a avaliação das persona cinematográficas se invertesse, e com ela esta ordem estabelecida entre superficial e profundo. No sentido desta dissolução, LIONS LOVE seria um objecto declaradamente reaccionário e contra o seu tempo. Mas as personagens, a quem no filme se dá aparentemente algum livre arbítrio cinematográfico, têm também o seu poder de revolta. A “superficial” Viva poderá assim, num golpe de génio, produzir um acontecimento que quase reduz todo o filme anterior a pó. Contra a acumulação dos traços histéricos que ela própria ajudou a acumular – a poeira do tempo, vai ela reclamar uma súbita paragem para respirar, exigindo tempo de plano para que isso se torne sensível. Torna assim, de repente e talvez pelo efeito de choque, muito denso aquilo que parecia irresponsavelmente leve e fugaz. E a verdade é que o filme termina irremediavelmente ali, no lugar onde havia algo a começar...

Ao pé da letra #53 (António Guerreiro)

«O que é o estilo de um político senão uma mímica?

A propósito do nosso primeiro-ministro, tem-se falado muito de estilo. Eis uma noção que, mesmo na arte e na literatura, jamais foi definida com precisão. Quando se fala do ‘estilo’ de um político, utiliza-se a palavra numa das suas acepções, talvez a última que qualquer dicionário de retórica regista: o estilo como conjunto de traços formais, algo que tem que ver com o modo de fazer qualquer coisa, e não com o que é feito ou dito; neste sentido, o estilo implica sempre a dissociação forma/conteúdo. Algumas célebres definições de estilo apontam num sentido que recusa ver o estilo como uma espécie de vestimentária que pode ser mudada conforme as circunstâncias. 
Buffon: “o estilo é o homem”; Flaubert: “o estilo é, por si só, uma maneira de ver as coisas”; Proust: “o estilo não é uma questão de técnica mas de visão”. Um estudo de iconologia política (isto é, das imagens dos políticos, nas fotos e nos filmes) seria muito interessante. Um tal estudo comparativo talvez mostrasse que aquilo a que neste domínio se chama ‘estilo’ é sempre uma questão de mímica, de imitação de gestos e formas de discurso que se tornaram fórmulas expressivas sem autor.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 27.6.2009. 


Cf. igualmente esta pequena série de “louvores” ao estilo: I, II, III.

Interromper o fluxo das imagens? (Doc’s Kingdom 2009, Serpa #4)

Um dos aspectos mais curiosos dos chamados filmes militantes, os que documentam as lutas políticas actuais, tem que ver com a sobrevivência neles de algumas formas estereotipadas da produção do cinema e do audiovisual. À sua ambição formal, tantas vezes mal dirigida e obliteradora do próprio gesto, não lembra questionar a utilidade dessas divisórias. Em particular a insistência no genérico e na assinatura, como formas de cunhar autoralmente os filmes e de os reclamar para o cinema com maiúscula, e mesmo a datação final que ocupa o lugar envergonhado do copyright (um caso assinalava o domínio de creative commons). Estas divisórias pretendem delimitar onde e como começa o filme e onde e como ele acaba. Postulam o modo de ver aquelas imagens tipificadas como “cinema”. Ora, se o que se procura fazer é dar ao acontecimento político as suas imagens justas e, portanto, principal ou secundariamente operar um curto-circuito nas imagens dominantes, “ideológicas”, dos média, não seria antes a passagem indiferente no fluxo das imagens aquilo que se desejaria? As imagens justas não teriam mais hipóteses assim de passar, numa indistinção formal, nos vários canais de disseminação do poder (televisões, Youtube, telemóveis, etc.) por entre e contra as actualidades, que deviam combater de forma imanente? E só se distinguiriam das imagens do poder pela sua força interna, quer dizer, pela sua capacidade diferenciadora não antecipável, e não por um estatuto exterior e abstracto, um regime excepcional de que se reclamam. Neste contexto, importa separar esta interrupção estatutária da que advém pelas próprias capacidades expressivas do cinema. Dizer que o potencial do cinema é cortar ou suspender o fluxo das imagens correntes contém, sem dúvida, uma beleza poética inestimável, mas é objectivamente contrário à sua eficácia política. É que a poesia não está dada à partida, como a política, de resto. Como viu Godard há muitos anos, a imagem justa tem antes que tornar-se imagem qualquer.

O testemunho cantado (Doc’s Kingdom 2009, Serpa #3)




Mais do que por uma qualquer qualidade catártica associada ao proferir de um juízo universal, à visão de BAMAKO (2006) de Abderrahmane Sissako assalta-nos o inesgotável LES MAÎTRES FOUS (1955) de Jean Rouch porque neste aparece com clareza o particular desvio que os africanos fazem de algumas estruturas coloniais, sobretudo dos traços simbólicos de aclamação e pompa, que sujeitam implacavelmente ao transe. BAMAKO, por sua vez, é dedicado ao julgamento, bastante geral e abstracto, de duas instituições responsáveis pela imposição à força de procedimentos económicos e financeiros tipicamente ocidentais, também eles “ideológicos”, ou seja, da persistência do colonialismo. Mas é a própria estrutura do tribunal de Justiça, tal como aparece no filme, que nos surge paradoxalmente como a importação colonial por excelência, aquela que permanece passível de apropriação pelos africanos no processo que instauram. Como se as estruturas do Direito fosse em si mesmas politicamente neutras. É preciso notar que o tribunal do filme é pleno dos tiques e das togas, da função soberana do juiz, em que se reconhece bem mais o tribunal francês (sendo a França a antiga potência colonial local) do que o tribunal, com júri popular e baseado na jurisprudência, da potência americana que controla as instituições acusadas: o Banco Mundial e o FMI. De facto, cumpre perguntar se não será esta estrutura do direito utilizada pelo filme pelo menos tão perniciosamente colonial como as outras (económicas, financeiras, “ideológicas”, etc.) sujeitas ao severo juízo?

Apesar deste tribunal cinematográfico de BAMAKO decorrer num quintal ao ar livre, profano quanto baste (trata-se do quintal da infância do realizador), em local de passagem quotidiano, estamos ainda um pouco longe da perversão do próprio tribunal conseguida por Kiarostami em CLOSE UP (1990), este sim um tribunal existente, não imaginário, que é, no entanto, sujeito a profundos e fascinantes desvios, mesmo no juízo final, pela intromissão do cinema. Ainda assim, BAMAKO respira cinema, sobretudo nas cenas de natureza mais ficcional, e nas interacções destas com os procedimentos do tribunal, segundo o princípio de coabitação preconizado pelo realizador. Talvez por isso, por este tribunal tão formal ser trespassado constantemente pelas vidas concretas que decorrem ao lado, possam surgir dois testemunhos comparáveis, segundo o próprio Sissako, porventura mais importantes que os outros: o do homem que não chega a conseguir falar, portanto, que testemunha mudo; e o de um outro homem mais velho que testemunha cantando, numa língua africana que não é falada pelos presentes e que não surge legendada no filme. A incrível beleza desse canto, cujas queixas na sua especificidade verbal nos permanecem desconhecidas, é na sua singularidade de testemunho cantado o destronar mesmo da categoria de validade.

O bom reflexo




Em ALICE NAS CIDADES de Wim Wenders, a dada altura, o encurralado fotógrafo das desoladas paisagens americanas, deixa-se por sua vez fotografar pela pequena Alice, que toma a máquina polaroid nas suas mãos. Depois de o retratar, ela diz-lhe: «Assim ao menos sabes como és». Quando, logo em seguida, o fotógrafo observa a sua própria imagem, maneja talvez para lá do admissível a inclinação da fotografia. Talvez não estivesse tão desamparado. Ainda sabe inclinar-se. Assim, a superfície parcialmente espelhada da polaroid devolve-lhe o reflexo insistente, se bem que fugidio, da miúda à sua frente, que instavelmente se sobrepõe ao seu. Porque uma imagem não manejada, quer dizer, tomada sem atenção, dar-lhe-ia o reflexo da miúda meramente invertido (na vertical), já que ela estava defronte. Vemos que é preciso procurar. Uma procura que tem de ser desatenta, no entanto.
Talvez a experiência do confronto à imagem de uma infância, por exemplo, da mulher que se ama, nos diga algo de concordante. Se tomarmos em mãos fotografias de outras infâncias, reparamos que estas nos dizem mais do que a nossa, tão miseravelmente umbilical. A não ser que a tomemos como uma qualquer, gesto não tão fácil. Há algo de irremediável numa infância. Diz-nos pelo menos o mundo sem a nossa mancha. Como não pasmar perante ela?
Por isso me exaspera, para lá do razoável, a multiplicação das imagens das infâncias. Não há hoje criança que não esteja, sobrecarregada de toneladas de kilobytes de desgastantes imagens, segura a mastros a que se agarrar quando o maelstrom de quem é a tormentar. Não lhe dirão nada. Estão lá simplesmente a mais. Feitas para um mau silêncio. Uma impressão de falsa coexistência consigo própria. Para nos dizer alguma coisa, não há melhor que o vazio, o nada... ou então o bom reflexo, essa outra pessoa cuja imagem nos atravessa, faz sombra e nos devolve o caminho.

publicado anteriormente aqui

ALICE IN DEN STÄDTEN (1973) Wim Wenders
4ª, dia 24, 19h30 – Cinemateca

Ao pé da letra #52 (António Guerreiro)

«A morte do examinador é a contradição performativa

O que chama a atenção na prova escrita de Português do 12º ano não é o enunciado, mas os preliminares: dezena e meia de indicações, prescrições, prevenções, proibições. Com um zelo burocrático total, os examinadores não deixam nada ao acaso, não ousam permitir aos alunos uma margem mínima para estes exercerem voluntariamente e sem tutelas as normas básicas do bom senso (por exemplo, que a resposta a um determinado item deve ser identificada com o número ou a letra desse item). Hoje tutelados, amanhã delapidados – eis o destino de uma geração.
E porque nada pode ser deixado à mercê de decisões e interpretações pessoais, os examinadores chegam ao ponto de avisar, na pág. 7: “Página em branco”. Mas aqui incorrem numa contradição que não admitiriam aos alunos: a chamada ‘contradição performativa’, que consiste em dizer algo que é imediatamente desmentido por aquilo que se faz: nenhuma página pode ser em branco se nela está escrito “Página em branco”. E se os alunos, perante tão enigmática “Página em branco”, mandassem os examinadores para onde eles merecem – para Aristóteles e Karl-Otto Apel?»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 20.6.2009; 
cf., na mesma edição, «Ao serviço do consumidor»: “[...] editar livros é exercer uma actividade dirigida a quem não gosta de ler”.

Política, isto é, a distância (Doc’s Kingdom 2009, Serpa #2)

Aparentemente, O TEMPO E O LUGAR (2008) de Eduardo Escorel centra-se sobre a personagem deveras interessante de Genivaldo, homem em fuga das várias sedimentações políticas que podiam tê-lo ou, indecidível, efectivamente aprisionaram. No entanto, o filme revela verdadeiramente a sua política cinematográfica quando, em contraponto, procura acercar-se da mulher dessa personagem principal, a Dona Mia. Um plano é particularmente elucidativo a este respeito, pois demora-se, em estrito e desconfortável silêncio, no rosto aproximado dela, enquanto ela prepara o almoço de domingo da família. Poder-se-ia pensar, sentir, que a demora de Dona Mia, defronte à câmara, corresponde a uma dificuldade de expressão dela própria por relação ao que viveu. Mas não é isso o que plano diz. Se existe um desconforto, é antes o do próprio dispositivo cinematográfico, que fica exposto por ser precipitado, por não ter achado a distância adequada à personagem, à figura que procura igualmente abarcar. Este cinema (vídeo) não soube esperar, quando essa espera é aquilo que o meio videográfico mais pode oferecer. No longo silêncio desse plano da mulher, não é a hesitação dela que se mostra, mas a precipitação do dispositivo em abordá-la, como se ela fosse subitamente transparente ou, pior, sugestionável, em suma, forçada a revelar-se. A política no cinema passa assim, aprendemos neste filme, menos pela explicitação das posições, do que pela cautela e aprendizagem das distâncias.

Morire a Cuba, ou duas filiações (Doc’s Kingdom 2009, Serpa #1)

Se, como disse Cyril Neyrat, LA RABBIA (1963) de Pier Paolo Pasolini – uma sua tentativa de criar um “novo género cinematográfico”, o “ensaio de montagem”, trabalho sobre “imagens vulgares [...] que se encontram à mão”, as actualidades, então consideradas de baixo nível – terá tido influência na obra posterior de Guy Debord, Groupe Dziga Vertov e, mesmo, no Godard das HISTORIE(S), será talvez também possível, com um pouco de maldade, encontrar-lhe uma outra filiação, esta bem menos nobre. Na relativa emancipação das duas bandas – a de som, em particular, do texto que é dito (ainda que não na elegíaca, mas mais simples e directa, bela voz do próprio Pasolini) e a de imagem – pôde inscrever-se certamente a vocação ensaística. Mas também, ainda que não decorrendo do espírito do seu gesto, mas sobretudo com o uso desligado que, por vezes, Pasolini faz da música (Straub disse, a propósito de IL VANGELO SECONDO MATTEO (1964), que o realizador italiano teria “vidée sa discothèque [despejado a sua colecção de discos]”), a enfatização da desgraça.
Esta hipotética descendente do insuportável audiovisual lacrimoso corrente que, com efeitos gordurosos de imagem a acompanhar (dessaturação, arrastamento, etc.), pretende comover-nos, na verdade, fazer-nos exorcizar rapidamente, as desgraças diárias que é função dos noticiários precisamente presentificarem. Veja-se, na versão curta, a passagem sobre os cadáveres do morire a Cuba [00:10:49 – 00:11: 09] com o Adagio de Albinoni. Certo, Pasolini é ainda cauteloso, sem o excesso sentimental que a bastarda descendência audiovisual sem descanso explorará, mas talvez deixe a porta aberta... Imediatamente depois, diz: Morire a Cuba, forze solo una canzone poter dire cosa c’era...

O que não escrevi (Doc’s Kingdom 2009, Serpa #0)

Tinha-me (auto)proposto como cronista da edição de 2008 do seminário Doc’s Kingdom, dedicada à paisagem como «trabalho do tempo». Falhei então redondamente, por várias razões: indisponibilidade de meios técnicos, extrema saturação do horário, cansaço, etc. Depois acabei por perder o meu caderno de notas, ficando sem base para recuperar as ideias para os textos. Mas lembro-me que teria sido interessante escrever: sobre como a apreensão de uma mesma paisagem é afectada pelo formato em que é filmada (e projectada), a partir da passagem sucessiva em POUR LE MISTRAL (1965) de Joris Ivens de um inicial preto e branco para a cores em 1:1.33 até à abertura para Cinemascope, ao ponto de se poder sustentar que já não se trata da mesma paisagem; como, a propósito de BANDITI A ORGOSOLO (1960) de Vittorio De Seta, se descobre que, mesmo por entre íngremes montanhas, a primeira paisagem é a do rosto humano; de como em SURFARARA (1955), do mesmo De Seta, existe um momento de suspensão, que interrompe o ritmo do trabalho com a vida póstuma; como, também nos filmes de De Seta, o problema do animal emerge poderosamente, na então evidente estrita dependência entre a vida dos animais e a dos camponeses e pescadores, tornando hoje claro como nos tornámos compassivos porque vivemos no luxo recente de um novo lazer, e levando-nos a perguntar sobre quem se atreveria a ter pena das ovelhas que morrem forçadas a atravessar os montes, ou dos atuns pescados no mar, quando são as próprias gentes também elas mortas de fome; sobre o abismo negro de LA VALLÉE CLOSE (1995) de Jean-Claude Rousseau; ou sobre algumas formas cinematográficas tendencialmente “achatadas”...  
E ainda sobre um pequeno raccord fascinante em TROIS FOIS RIEN (2006) do mesmo Rousseau, passagem de plano estático sobre uma janela para um movimento de câmara na neve; ou como todo o vídeo é, desde logo, câmara de vigilância, “home video”, filme pornográfico; sobre a magia simples, material, de EUROPE 2005 – 27 OCTOBRE (2006) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet; sobre a hipótese de um género de comédia experimental-estrutural, cujo primeiro expoente seria o fabuloso ONE WAY BOOGIE WOOGIE (1977) de James Benning; e sobre a necessidade de actualização também da banda de som no remake que é 27 YEARS LATER (2004) do mesmo realizador; sobre as difíceis relações som/imagem em CASTING A GLANCE (2007) de James Benning e RETRATO DE INVERNO DE UMA PAISAGEM ARDIDA (2008) de Inês Sapeta Dias; ou acerca da "solidariedade dos constrangimentos" ( seja lá o que isso for agora, que nem eu me lembro); ou sobre a inteligente frase, respondendo a uma objecção, de Inês Sapeta Dias – «Se [o meu filme] fosse a preto e branco não se via o preto e branco [da floresta ardida]»; e, para terminar, sobre como existe uma concatenação de elementos documentais e ficcionais em AQUELE QUERIDO MÊS DE AGOSTO (2008) de Miguel Gomes, mais do que uma verdadeira fusão, e de como ali a ficção ainda permanece relativamente estanque; mas, principalmente, sobre a expressão afectiva de Marante a cantar Som de Cristal no mesmo filme.

Past-present interferences

Having this translation prepared a long while ago, I now finally publish it as a sort of motto for the hopefully coming Doc's Kingdom 2009 related texts...


As John Gianvito’s PROFIT MOTIVE AND THE WHISPERING WIND (2007) expands, we’re slowly taken, by the serial accumulation of shots, to the presence before innumerous historical and funerary monuments evoking several progressive struggles in North America, such as those of Unions, farmers, Indians, miners, etc., intertwined with another kind of shots of wind blowing in the trees. At certain moments, the extreme delicacy of the approach reminds us W. G. Sebald’s informed drifts into the fields where historical memory lies buried.
However, almost by the end of the film, a corollary, which the director surely found necessary, and that might even be the true motivation of everything that preceded it, abruptly emerges and partially destroys the accumulated subtlety of the approach, one that was non-pamphletary despite being serial. The ending hurriedly presents a series of contemporary struggles for which it evidently tries to motivate us, like the ones against the War on Iraq, for the rights of minorities, etc.
The way in which this past-present interference establishes itself, between the slow evocations of these past struggles, which so hardly had grown close to us, and the sudden presentation of those contemporary struggles, is quite problematic. Opposing the film’s intended continuity, it becomes inevitable that, in the film’s material construction, the present struggles appear to us as a distant corollary, as something that’s not evident per se. The compositional work was based in a past time, which is obviously relevant to the present, but not, perhaps unfortunately, automatically translatable into it.
There is a significant non-relation between these two textures in the film, even if politically and sentimentally one might be drawn to relate them. That overwhelming point where the establishment of that relation might occur is indefinable, like an invisible link to be discovered, which can’t, even if that costs us (us, people of the left), be established beforehand.
One can’t presuppose the past, which is at least as opaque and impossible to grasp as the present. The ancient but forgotten things revolution must put back into place, mentioned by Straub while quoting Péguy, don’t offer themselves easily. They don’t respond to mere moved and moving appeals. Most importantly, perhaps one doesn’t even know exactly what they are before starting the revolution.
That’s why perhaps one has to limit to other past-present interferences, more subtle but by no means of a doubtful nature, which might be more productive, since their potential for repercussion seems immense. Like the ones of Pedro Costa’s THE RABBIT-HUNTERS (2007), for instance, in which two not just old but truly ancient men – Ventura and Alberto – evoke poverty, while staring through the concrete openings into the street, in a perhaps architectonically sophisticated staircase balcony that’s also an unequivocal trace of an inadequate present time, one imposed by force and that simply doesn’t allow to see the landscape. As a matter of fact, maybe landscape itself can only be gazed upon if it’s in the past.

previously published in Portuguese here

Ao pé da letra #51 (António Guerreiro)
«O discurso político é reconhecível como sintoma

O momento de estertor de um governo anuncia-se através de um sintoma: o discurso da estupidez. A bêtise, dizia Flaubert, é inabalável, da natureza do granito, dura e resistente. Ninguém a ataca sem ficar ferido. Por isso, Adorno e Horkheimer definiram a estupidez como uma “zona endurecida cuja superfície é insensível”. Irredutível, compacto e cheio de tenacidade, o discurso da estupidez é vazio mas obstinado. O idiota de Rilke, na sua “Canção do Idiota”, pede que não o incomodem e o deixem prosseguir: “Como é bom/ nada pode acontecer.”
Manifestações do discurso da estupidez enquanto força imobilizadora e, ao mesmo tempo, afirmativa tivemo-las em abundância no dia das eleições: a ministra da Educação que avança, soberana e arrogante, com um “deixem-me passar”; o ministro das Obras Públicas que ninguém detém porque vai ao carro buscar tabaco; o primeiro-ministro que vê no resultado um incentivo “para prosseguir, ainda com mais determinação, o mesmo rumo”. Esta corrida irreprimível traça o destino de um sujeito debilitado, incapaz de controlar um discurso que não se diz outra coisa senão que a bêtise triunfou.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 13.6.2009.

Sobre aquilo que podemos não fazer (Giorgio Agamben)

«Deleuze definiu uma vez a operação do poder como um separar os homens daquilo que podem, isto é, da sua potência. As forças activas são impedidas do seu exercício ou porque são privadas das condições materiais que o tornam possível, ou porque um interdito torna este exercício formalmente impossível. Nos dois casos, o poder – e é esta a sua figura opressiva e brutal – separa os homens da sua potência e, deste modo, torna-os impotentes. Há, todavia, uma outra e mais sub-reptícia operação do poder, que não age imediatamente sobre aquilo que os homens podem fazer – sobre a sua potência – mas antes sobre a sua impotência, isto é, sobre aquilo que não podem fazer ou, melhor, podem não fazer.

Que a potência seja logo também constitutivamente impotência, que todo o poder fazer seja também desde logo um poder não fazer é a aquisição decisiva da teoria da potência que Aristóteles desenvolve no Livro IX da Metafísica. “A impotência [adynamia]”, escreve ele, “é uma privação contrária à potência [dynamis]. Toda a potência é impotência do mesmo e a respeito do mesmo [de que é potência]” (Met. 1046a, 29-31). “Impotência” não significa aqui somente ausência de potência, não poder fazer, mas também e sobretudo “poder não fazer”, poder não exercitar a própria potência. E é precisamente esta ambivalência específica de cada potência, que é sempre potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer, que define antes a potência humana. O homem é, então, o vivente que, existindo sob o modo da potência, pode tanto uma coisa como o seu contrário, seja fazer como não fazer. Isto expõe-no, mais do que a qualquer outro vivente, ao risco do erro mas, conjuntamente, permite-lhe acumular e dominar de forma livre as suas próprias capacidades, transformá-las em “faculdades”. Dado que não apenas a medida do que alguém pode fazer, mas também e acima de tudo a capacidade de manter-se em relação com a própria possibilidade de não o fazer define o grau da sua acção. Enquanto que o fogo pode somente arder e os outros viventes podem somente a própria potência específica, podem só este ou aquele comportamento inscrito na sua vocação biológica, o homem é o animal que pode a própria impotência.
É sobre estoutra e mais obscura face da potência que prefere hoje agir o poder que se define ironicamente como “democrático”. Este separa os homens não só e não tanto daquilo que podem fazer, mas antes de mais e sobretudo daquilo que podem não fazer. Separado da sua impotência, privado da experiência daquilo que pode não fazer, o homem moderno crê-se capaz de tudo e repete o seu jovial “não há problema” e o seu irresponsável “pode fazer-se”, precisamente quando deveria ao invés dar-se conta de estar confinado numa dimensão inaudita a forças e processos sobre os quais perdeu qualquer controlo. Tornou-se cego, não às suas capacidades, mas às suas incapacidades, não àquilo que pode fazer, mas àquilo que não pode ou pode não fazer.

Daí o definitivo confundir-se, no nosso tempo, dos labores e das vocações, das identidades profissionais e dos papéis sociais, cada um dos quais personificado por um figurante cuja soberba é inversamente proporcional à provisoriedade e à incerteza da sua récita. A ideia que cada um pode fazer ou ser indistintamente qualquer coisa, a suspeita de que não apenas o médico que me examina poderia ser amanhã um vídeo-artista, mas que até o carniceiro que me mata é desde logo na realidade, como no Processo de Kafka, um cantor, não são senão o reflexo da consciência que todos se estão simplesmente dobrando àquela flexibilidade que é hoje a primeira qualidade que o mercado exige de cada um.

Nada nos torna tão pobres e assim tão pouco livres como este estranhamento da impotência. Aquele que é separado daquilo que pode fazer, pode, no entanto, ainda resistir, pode ainda não fazer. Aquele que é separado da própria impotência perde, ao invés, antes de tudo, a capacidade de resistir. E como é somente a ardente consciência daquilo que não podemos ser a garantir a verdade daquilo que somos, também é apenas a lúcida visão daquilo que não podemos ou podemos não fazer a dar consistência ao nosso agir.»


Giorgio Agamben, «Su ciò che possiamo non fare», 
Nudità, nottetempo, Roma, 2009, pp. 67-70.

Ao pé da letra #50 (António Guerreiro)
«A História e os retrocessos civilizacionais

No “sensacionalismo crescente dos noticiários” vê Pacheco Pereira “um retrocesso civilizacional”. A preocupação é pertinente, mas duvidoso é o pressuposto em que se baseia: o de uma história universal cuja lei é a da perfectibilidade e do progresso. As teorias progressistas da História herdadas do século XIX só sobreviveram nas formas mais fulgurantes do marxismo. Uma das grandes figuras intelectuais do século XX, Aby Warburg, mostrou que todas as conquistas da razão nunca são definitivas, e as forças demoníacas trans-históricas regressam sempre como fantasmas.
A palavra ‘civilização’ presta-se aos usos mais equívocos, e não é por acaso que os alemães fizeram uma distinção entre Zivilisation e Kultur, recusando a primeira por a identificarem com um progresso material e uma universalidade que destroem a verdadeira Kultur do espírito (germânica, acrescente-se). E assim baralharam o trabalho dos tradutores (afinal, Freud, com “Das Unbehagen in der Kultur”, escreveu o “Mal-Estar na Cultura” ou o Mal-Estar na Civilização”?) e lançaram ainda mais suspeitas sobre os arautos dos progressos e dos retrocessos civilizacionais.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 6.6.2009.


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