Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

[Desemprego] (Giorgio Agamben)

Eu trabalhava sobre os anjos, enquanto ministros e funcionários da providência, quer dizer, do governo divino do mundo. A angelologia é, neste sentido, o paradigma da burocracia. Ora, nos teólogos, uma pergunta estava sempre a aparecer. O que acontece aos anjos depois do juízo final, quando a obra do governo divino do mundo e a história da salvação estiverem concluídas de uma vez por todas? Sobre isto, os teólogos são formais: os anjos serão destituídos das suas funções, não terão literalmente mais nada para fazer. Desemprego e inoperância [désœuvrement] são no paraíso o estado normal. E a inoperância não diz respeito apenas aos anjos, mas também aos bem-aventurados e ao próprio Cristo, que no paraíso não têm rigorosamente nada para fazer.
Ora, perante esta inoperância, os teólogos têm dificuldade em concebê-la. Assim, no final da sua obra-prima, A Cidade de Deus, no momento de descrever a condição dos bem-aventurados, que se situa para lá tanto da ação como do otium, Agostinho vê-se obrigado a confessar que ela “ultrapassa toda a inteligência”. Foi aí que me pareceu que a inoperância — ou seja, essa figura da praxis que não é nem produção nem repouso — é verdadeiramente aquilo que a nossa cultura é incapaz de pensar.

Giorgio Agamben, in Aliocha Wald Lasowski, «Le désoeuvrement, pratique humaine et politique» («Oeuvrer / désoeuvrer : en quête d'un nouveau paradigme. Entretien avec Giorgio Agamben», Agenda de la pensée contemporaine, nº 16, Primavera 2010)

Ao pé da letra #121 (António Guerreiro)

Sobre o discurso da opinião enquanto pensamento “straight” que está sempre conforme ao que se espera dele

«Na nossa “grande época” — como dizia Karl Kraus da sua — há um fluxo de linguagem em todas as direções e que escorre por todos os meios a que chamamos “opinião”. A opinião, que Kraus identificou como aquilo a que ele chamava “fraseologia”, triunfou de tal maneira que já ninguém se lembra que ela começou por significar algo muito próximo do que os gregos chamavam doxa, que se opõe ao conhecimento. Neste sentido, a ideia de uma opinião heterodoxa é uma contradição nos termos: para se ser heterodoxo, é preciso sair do discurso da opinião, da sua linguagem servil e do seu espaço único de conformidade. A categoria straight, usada no discurso sobre a sexualidade (uma feminista e uma lésbica radical, Monique Wittig, definiu num livro de ensaios o que era o straight mind), poderia servir também para este campo. A opinião, tal como ela invadiu a esfera pública para se tornar espetáculo de variedades, é o pensamento straight.

Ele consiste essencialmente no equívoco de que é preciso dizer as coisas de outra maneira (e é sobretudo nesta arte da variação e da fuga que se aplicam os profissionais da opinião), esquecendo que há outras coisas a dizer. E aí é que reside uma urgência que não é da ordem daquela que a opinião julga estar a cumprir. A opinião é tendencialmente straight porque se submete à regra da conformidade. Pode ser maioritária ou minoritária, politicamente correta ou incorreta, mas a sua funcionalidade relativamente aos papéis mediáticos estereotipados cumpre-se da mesma maneira. Esta lógica encontrou na grande maioria dos blogues uma atualização caricatural. Aí, a opinião existe em estado de histeria: uns contra os outros, os outros a favor de todos ou de alguns — tudo se resume a uma guerra de opiniões e a convívios de gente “porreira” ou execrável, mas sempre muito straight

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 23.12.2010.

Coisa de subversivo (Ozualdo Candeias)


Em jeito de homenagem a este grande realizador brasileiro, por ocasião de um ciclo de cinema falhado...

«[S]ubversivo é igual a relógio: gosta de trabalhar de graça. [...] É aquilo que já falei: muita gente acha que não se deve mostrar a miséria num país tão bonito como o Brasil, mas só mostrar lugares e pessoas bonitas porque exibir pobreza é coisa de subversivo. Por isso muitas vezes fui chamado de subversivo. [...]
Outra vez eu estava procurando um viaduto p’ra filmar quando vi uma mulher esmolando, com quatro ou cinco filhos. Resolvi tirar umas fotos dela e depois filmar, quando apareceu uma mulher elegante, mandona, perguntando por que eu estava fazendo fotos daqueles pobres. Porque ela pediu e eu vou dar a ela as fotos que ela não pode comprar. Então a mulher elegante perguntou para a pobre: você pediu para ele fazer as fotos? A pobre respondeu: pedi. A mulher elegante foi embora com raiva.»

Ozualdo Candeias,
in Moura Reis, Ozualdo Candeias. Pedras e sonhos no Cineboca, Imprensa Oficial, São Paulo, 2010, pp. 120, 134-135.

Ao pé da letra #120 (António Guerreiro)

Sobre a diferença entre patriotismo e nacionalismo, numa altura em que também a pátria é difícil de reivindicar

«Os candidatos a Presidente da República são sempre, por definição, patriotas. Sejam eles de esquerda ou de direita, reivindicam o patriotismo e nem por nada querem ser associados ao nacionalismo. Na história semântica destas duas palavras, por mais que elas pareçam vindas de um lugar aparentado, uma passou a designar uma virtude e a outra um pecado. De onde vem esta diferença? Como mostrou um grande historiador dos conceitos, Reinhart Koselleck, a categoria do patriota, aquele que afirma o seu amor pela pátria, nasce no século XVIII e torna-se a figura-guia do Iluminismo político. O patriota já existia na Antiga Grécia, mas designava um conacional da mesma proveniência, muitas vezes um bárbaro ou um escravo da mesma origem, não o cidadão. A pátria tem os seus heróis monumentalizáveis; os heróis da nação, pelo contrário, são suspeitos. No entanto, devemos hoje perguntar o que significa ser patriota num quadro em que já não é a pátria, na sua configuração nacional-estatal, o princípio capaz de organizar uma ação política?

Por isso, ao ouvirmos os candidatos à presidência a reivindicarem as virtudes patrióticas, sentimos que as suas palavras se tornam de um vazio intolerável quando as confrontamos com o que se desenrola diante dos nossos olhos. Digamos que eles se distanciam do nacionalismo, mas acabam por cair na aspiração arcaica de encontrar uma pátria que já só existe como objeto de um impulso irracional. Haverá ainda lugar para a pátria, mesmo num grau mínimo, quando todas as pátrias deixaram de ser unidades políticas ou culturais e perderam a sua capacidade de ação soberana? Há um fantasma que se esconde hoje em todo o patriotismo e que em breve fará desta palavra algo tão maldito e de má reputação como o nacionalismo que reivindica o solo e o sangue.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 18.12.2010.

Ao pé da letra #119 (António Guerreiro)

Sobre a mística dos segredos diplomáticos e a deceção que provocam as revelações que nada revelam

«Quando soubemos que o site Wikileaks iria divulgar um enorme volume de informações confidenciais da diplomacia dos Estados Unidos, sentimo-nos como os místicos na via do conhecimento último — aquele que nos faz aceder à essência e ao nome, ao quê e ao quem. Mas, como ensinou um grande teólogo judeu do século XX, Gershom Scholem, a doutrina do objeto do conhecimento último redunda sempre em deceção porque não existem enigmas, apenas a aparência deles. O que acabou por nos ser revelado mostra bem que assim é, e que a estrutura interna da diplomacia, mesmo a americana, não é muito diferente da que governa a família, onde todos os grandes enigmas não passam de pequenos segredos sujos. A propósito, devemos recordar uma parábola de Kafka que surge em “O Processo”: um camponês chega diante da porta da lei, vigiada por um guarda, e fica aí a vida inteira sem conseguir entrar, até que finalmente fica a saber que a porta estava guardada para poder entrar nela. A porta estava aberta — aberta para o nada — e a lei era, afinal, guardada por um guardião que não guardava nada.

Assim são também os segredos diplomáticos: sem enigma e sem além. Podemos dizer deles o que Adorno dizia do ocultismo: é a metafísica dos imbecis. Mas tudo isto não significa que o esvaziamento do enigma — e a deceção que tal implica — não seja, em si mesmo, importante. Há um sentido da distância que fica destruído. Podemos pensar que se cumpre aqui uma promessa do saber e da razão, mas também sabemos bem como funciona a dialética do Iluminismo: o mito da razão e da luz engendra o seu contrário e, neste domínio, além de não haver conquistas definitivas, quanto mais tudo se revela transparente e sem enigma, mais precisamos de supor o reino do segredo e da opacidade.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 4.12.2010.

Ao pé da letra #118 (António Guerreiro)

Sobre salário proletário e sobressalário burguês que se pode realizar em tempo ou em dinheiro

«Sursalaire é uma palavra francesa a que o filósofo Jean-Claude Milner deu o estatuto de conceito num pequeno livro de 1997 intitulado “Le salaire de l’idéal”. Experimentemos traduzi-la por ‘sobressalário’. Milner parte da seguinte verificação: os títulos de pertença à burguesia já não dependem da propriedade mas do nível de remunerações e do modo de vida que estas permitem. Mas para o burguês remunerado não é válida a análise marxista do salário do proletário. O salário proletário, do ponto de vista marxista, é sempre iníquo; o salário burguês, esse, é arbitrário. Depende de arbítrios políticos e da definição de poderes. Aquele que é considerado poderoso num determinado momento ganha um sobressalário e está sujeito a perdê-lo se perder o poder (quer porque o delapidou, quer porque houve uma alteração da distribuição de poderes na sociedade). Tem um sobressalário aquele que ganha à medida da sua sobrepotência.

A proletarização de algumas classes profissionais (por exemplo, professores e jornalistas) mede-se não apenas pelo facto de terem perdido autonomia intelectual mas também porque o tempo de que dispõem para ganhar dinheiro é cada vez menor e o tempo de trabalho aproxima-se do correspondente ao salário proletário. Ora, a questão do tempo tem de ser equacionada quando falamos em salário e em sobressalário. Como mostra Milner, não há apenas uma burguesia do sobressalário, há também uma burguesia do sobretempo. A burguesia sobrerremunerada, ao contrário da antiga burguesia da propriedade, em geral não dispõe de tempo: é a realidade de muitos quadros das empresas. A burguesia que converte o salário em tempo — a burguesia do sobretempo —, pelo contrário, é désoeuvrée: não faz obra, ou a obra que faz não corresponde a um operare. Em suma: é a ‘parte maldita’ da economia produtiva.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 27.11.2010.

[Problemas espirituais] (Giorgio Agamben)

Faulkner escreveu uma vez que o verdadeiro problema do nosso tempo é já não existirem problemas espirituais.

O significado deste diagnóstico é mais cruel do que parece e diz-nos muito respeito. Que já não existam problemas espirituais, que estes já não sejam sentidos como algo de decisivo e de iniludível, gera, com efeito, uma angústia sem precedentes. Longe de nos libertar do mal-estar, o facto de os problemas da humanidade se terem tornado calculáveis, questões factuais urgentes e eventualmente complicadas, mas que, em última instância, requerem ser governadas e não vividas nem pensadas, é precisamente o que nos remete para uma especial angústia, tanto mais intolerável quanto mais, pelo menos na aparência, resolúvel. No seu diário, Fallot conta ter tido assim a experiência mais profunda da angústia diante da morte quando, depois de no restaurante ter pedido a sua sobremesa habitual, ouviu responder que, naquele dia, não havia. Naquele instante soube com absoluta certeza que daquela angústia jamais se libertaria, que esta o acompanharia para toda a vida.

Se o filme giallo é o paradigma de um mundo no qual tudo depende unicamente da solução de um problema factual, então, num universo já sem problemas espirituais, os homens ficam ansiosos e alheios perante a sua vida como as personagens de uma detective story diante do delito. E enquanto economia, medicina e tecnologias de toda a espécie (que são sempre, em última análise, técnicas de governo) assumem a direção dos destinos humanos, os problemas espirituais (e as técnicas que transmitiam a sua experiência: poesia, filosofia, arte) escorregam impercetivelmente para a esfera da cultura, ou seja, deixam de ser decisivos.
Porque hoje — é preciso lembrá-lo? — continuam a construir-se museus (e até, sem darem conta da contradição, “museus de arte contemporânea”), auditórios e teatros, mas é claro que tudo isso já não concerne às questões que decidem acerca da nossa possibilidade de viver e ser felizes. O assim chamado “espírito”, que não era senão o nome que os homens davam ao ponto de maior intensidade em cada domínio da sua vida, torna-se assim uma esfera autónoma e separada, tudo somado, dispensável e frequentemente aborrecida. Aquilo pelo qual cada coisa vale a pena ser vivida transforma-se numa distração cada vez mais manchada pela dúvida de que talvez “não vale a pena”, que se possa viver apenas procurando na internet uma outra vida e um rosto que parece mais verdadeiro, precisamente por ser constitutivamente marcado pela falsidade e pela máscara.

Significa isto, como alguns bem pensantes aconselham, que se deva voltar às “coisas do espírito” (expressão ainda mais contraditória que “museu de arte contemporânea”) como se poesia, arte e filosofia estivessem à espera, separadas e acessíveis, algures? Ou antes, como sugere Humphrey Bogart no final de Relíquia Macabra, que verdadeiramente espiritual e poética é a consciência de que as coisas e os factos a que estamos irrevogavelmente remetidos são apenas, como a estatueta do falcão, “a matéria de que são feitos os nossos sonhos”? Que, no nosso errar por entre os factos e as coisas, não devemos esquecer a recordação daquele ponto de intensidade (espiritual, ou seja, evanescente e subtil) que decide a cada vez o nosso desejo e a nossa forma de vida?

Giorgio Agamben in piazzaemezza (nottetempo), 23.10.2009 (por via daqui e dali; conferir também isto).

[Lançamento do livro “Classe” de Andrea Cavalletti]

Ao pé da letra #117 (António Guerreiro)

Sobre a constante dita de Enzensberger que um editor português, dado a contas, pode invalidar

«Vasco Teixeira, responsável editorial pela Porto Editora, o maior grupo editorial português, fez as contas e concluiu: “Se me perguntar se daqui a dez anos ainda se edita poesia em Portugal, dir-lhe-ei que não. Quando muito, teremos algumas edições artesanais (...). E haverá mercado para isso. Para o tipo que faz uma edição de 30 ou 50 exemplares que os amantes de poesia comprarão.” Em 1989, um grande poeta e ensaísta alemão, Hans Magnus Enzensberger, também tinha feito as suas contas (a matemática não é uma ciência que lhe seja estranha) e chegara a um número muito mais rigoroso do que o do empresário português: mais ou menos 1354. E como tentava demonstrar que esse número era uma constante universal, para todas as comunidades linguísticas e em todos os tempos, chamou-lhe “a constante de Enzensberger”. O escritor alemão explicava esta constante através desta anomalia: é impossível transformar poemas em dinheiro. Sempre assim foi e sempre assim será.

Menos dado à matemática, Vasco Teixeira formula a sua constante não em termos de valor numérico (há um intervalo demasiado grande entre os dois números que avança no seu prognóstico) mas em termos de lei económica: a lei do mercado não admite anomalias. A constante dita de Vasco Teixeira pode invalidar a constante dita de Enzensberger por uma razão fraudulenta: quem detém um tão grande grupo editorial e também a maior rede de livrarias do país (a Bertrand) tem algum poder para fazer com que a sua profecia se realize, para que ela seja uma self-fulfilling prophecy. Mas sabendo nós que anteriores mortes anunciadas foram uma falsa notícia, talvez a constante dita de Vasco Teixeira admita as suas exceções e as espécies minoritárias sobrevivam em microclimas. Vamos então suspeitar da constante dita de Vasco Teixeira: “30 ou 50” não é afirmação de ciência certa.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 20.11.2010.

Até que todo o passado seja recolhido (Benjamin)

Pequena proposta metodológica para a dialética da história cultural. É muito fácil estabelecer dicotomias para cada época, em seus diferentes “domínios”, segundo determinados pontos de vista: de modo a ter, de um lado, a parte “fértil”, “auspiciosa”, “viva” e “positiva”, e de outro, a parte inútil, atrasada e morta de cada época. Com efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamente se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa. Toda negação, por sua vez, tem o seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a esta parte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo de visão (mas não de critérios!) faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo e diferente daquele anteriormente especificado. E assim por diante ad infinitum, até que todo o passado seja recolhido no presente em uma apocatástase* histórica. [N 1a, 3]

* Apocatastasis = a “admissão de todas as almas no Paraíso” [...].

Walter Benjamin, Passagens,
Editora UFMG, Belo Horizonte, 2006.

Ao pé da letra #116 (António Guerreiro)

Sobre a ilusão de que a bancarrota está iminente quando nela já entrámos há muito tempo

«No discurso político em que estamos envolvidos, a velha questão da classe permanece, da Direita à Esquerda e vice-versa, apenas como vestígio na referência generalizada a uma “classe média” que não é mais do que a não-classe em que as velhas classes se dissolveram: a pequena-burguesia universal, que encurtou a distância entre o gosto das massas e o das elites. Dir-se-ia que ela é uma alusão deturpada da consciência de classe que Lukács reelaborou, nos anos 20 do século passado, como categoria fundamental de uma teoria da história. Por isso é que assistimos hoje, em todo o espectro político, à tragicomédia onde se representa a reconciliação de tudo com o seu contrário: a poupança com o consumo, o capital com o trabalho, o ‘crescimento’ com a abstinência, o espetáculo mediático com a democracia, o valor de uso com o valor de troca, a política económica com a economia política. Nesta dança sacrificial pela salvação a todo o preço de velhos potentados político-ideológicos que bloquearam o horizonte, renunciou-se completamente a explorar novas possibilidades e a reconhecer que, tal como fora anunciado por uma mente lúcida, o estado de exceção se tornou a regra e a bancarrota que tanto receamos já se deu.

Reconhecer que se esgotaram os meios para pagar as dívidas — não as materiais, mas as culturais e políticas — que durante décadas fomos contraindo como conquistas e direitos é o passo necessário para recomeçar de novo. Que a bancarrota pode chegar de forma impercetível (como o Messias da mística judaica) é o que nos dizem estas palavras do poeta grego Kavafis dirigidas a Forster: “Vocês, os Ingleses, não podem compreender-nos; nós, os Gregos, entrámos em bancarrota há muito tempo.” Quase um século depois, a Grécia está a tentar salvar-se da bancarrota como se nela nunca tivesse entrado e nem por sombras quer escutar o seu demónio — o poeta de Alexandria.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 13.11.2010.

Ao pé da letra #115 (António Guerreiro)

Sobre uma geração delapidada e o vazio cultural que está a ser criado por ausência de renovação

«Não é fácil medir — mas é plausível uma conta pesada — os efeitos nefastos da situação precária, ou até indigente, em que se encontram hoje grande parte dos jovens que acabam os estudos. Aliás, já não é bem uma situação, é um estatuto. Além do drama individual, há uma devastação coletiva, uma ruína social e cultural que avança em silêncio e da qual quase ninguém fala porque os jovens também estão excluídos da parte ativa da opinião pública, aquela que Pasolini incitou os estudantes a reivindicar. O grande linguista russo Roman Jakobson escreveu nos anos 30, na sequência do suicídio de Maiakovski e da deportação de outros escritores, um texto intitulado “A Geração que Delapidou os seus Poetas”. O nosso tempo é aquele que delapidou os seus jovens. Para percebermos o alcance desta delapidação, devemos recordar a forte carga utópica que a juventude teve desde as primeiras décadas do século XX, quando se mobilizou em diversos movimentos. Mais do que um sujeito social, a juventude surgiu aí como uma categoria do espírito, o centro de onde nasce o novo, contra o filisteísmo da ‘experiência’ das gerações instaladas.

Esta lição irrecusável faz-nos ver que a questão atual da delapidação dos jovens não pode ser encarada apenas em termos sociais. O que acontece com as instituições culturais que não se renovam? O que acontece quando uma grande parte da população — precisamente aquela que não está em letargia defensiva — foi condenada à situação de pária? O que acontece à Universidade quando estão bloqueadas todas as entradas de novos professores e ela caminha, em bloco, para a reforma? Acontece, muito provavelmente, que alguns dos seus cursos e departamentos (e as Humanidades são as primeiras vítimas) vão extinguir-se, para gáudio dos governos que podem apresentar como vítima de ‘morte natural’ o que na verdade eles quiseram exterminar.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.10.2010.

«The Man of the hoe» (translation), on Thomas Harlan’s TORRE BELA.

Expoentes críticos | Critical exponents (O período cor-de-rosa | The pink period #1.9)

Se houve uma pequena irmandade de cineastas – a Nouvelle Vague – que chegaram necessariamente tarde, porém se reconheceram na “impossibilidade de fazer o cinema que [lhes] tinha dado vontade de o fazer” (Godard), haverá também uma outra, cujo magistério pertence sem dúvida ao crítico Serge Daney: a dos que afinal se viram na impossibilidade de ver o cinema da mesma maneira, sem a doce inocência do cinema clássico nem sequer já com as esperanças abertas do primeiro cinema moderno, aqueles que aterraram directamente no cinema irremediável, que no entanto souberam ainda amar. Aquele que vem depois — Serge Daney — como o decano dessa comunidade lutuosa, é também a prova de como a cinefilia não se sustenta necessariamente no exclusivo da fruição cinematográfica, mas pode ter igualmente uma expressão literária.
O género crítico suscita muitas expectativas, filmes por que se passa a esperar e de já se gosta mesmo antes de se os ver, como que por um processo de osmose da ansiedade. A tardo-modernidade tem também os seus grandes expoentes críticos e criadores de ânsias cinéfilas, que devem ser nomeados: a verdadeira súmula crítica, melancólica e severa, dos excessivos anos 70, é La rampe de Serge Daney; e L’image-temps de Gilles Deleuze – livro de filosofia muito e mal lido, cuja incompreensão tem negligenciado, em prol do papaguear dos grandes conceitos abrangentes de natureza ontológica, o nível discreto mas constante de leitura parcial de certos filmes bem concretos –, indiscutivelmente posicionado na linhagem da grande tradição crítica dos Cahiers du cinéma, a saber, a de uma soberania imanente do cinema que estende à dimensão vizinha de pensamento.

[fim do #1; continua]

If a small brotherhood of filmmakers — the French New Wave — arrived necessarily late, and nevertheless acknowledged the “impossibility of doing the cinema that had gave [them] the urge to do it” (Godard), there is also another one, whose magisterial position belongs to the film critic Serge Daney: of those who were in the impossibility of seeing cinema the same way — without the sweet innocence of classical cinema nor even the opened hopes of the first modern cinema —, those who landed directly on the irreparable that, notwithstanding, they managed to love. The one who comes after — Serge Daney, dean of that mournful community... and also the proof that cinephilia doesn’t stand solely in exclusive cinematic fruition, but can also have a literary expression.
The critical genre bestirs lots of expectations: films one starts wishing for and already loves before seeing them, as if by a process of anxiety osmosis. Late modernism has also its great critical exponents, those creators of cinephile expectations that should be named: so melancholically harsh, the true critical summa of those excessive 70’s is Serge Daney’s La rampe; and there is also this very badly read philosophy book — Gilles Deleuze’s The time-image — whose common misunderstanding has neglected — in favour of a babble repeating those big overreaching concepts of ontological nature — the subtle but constant partial readings of certain films, thus also clearly positioned in the lineage of the great critical tradition of the Cahiers du cinéma, i.e., of the immanent sovereignty of cinema extending to the vicinity of the dimension of thought.

[end of #1; to be continued]

Trabalho de luto | Work of mourning (O período cor-de-rosa | The pink period #1.8)

Depois do cinema moderno, portanto, ainda em trabalho de luto. Mas sem que esse luto demorado se torne um peso excessivo e condicione a alegria dos encontros. Pelo contrário, esta necrofagia tornou-se paradoxalmente uma condição, se não necessária pelo menos fundamental, para a nossa alimentação cinematográfica. E, se reconhecermos o valor de uma aprendizagem que pode começar pelo meio, ou mesmo pelo fim de alguma coisa, neste caso, pelo preciso momento em que nada é já claro sobre o destino do cinema (e passados trinta anos continua tudo bastante confuso), não temos quaisquer motivos para, contrariando a nossa pertença, ceder à autoridade insistente que remete para as origens históricas como premissas insuperáveis da compreensão. Chega-se ao cinema por onde se chega, pelos filmes que se viram, pelos que nos demandaram, e é sempre a eles que é preciso responder.

[continua]

After modern cinema, hence, still the work of mourning. But this slow mourning doesn’t become a heavy burden nor conditions the joy of encounters. On the contrary, this necrophagy has paradoxically become a requirement — if not strictly necessary, at least fundamental — to our cinematic nourishment. And, if we recognize value to an apprenticeship that can start from the middle, or even at the end of something — in this case, at the moment in which nothing was clear anymore about the destiny of cinema (and, thirty years later, everything is still pretty much confusing) — we have no motive whatsoever to go against our belonging and submit to that persistent authority that consigns us to historical origins as insurmountable premises for an understanding. One reaches cinema by so many ways, by the films one sees, by the ones demanding us, and only to those one must answer to.

[to be continued]

Pequenos elementos parciais ardentes | Small partial burning elements (O período cor-de-rosa | The pink period #1.7)

Este processo de indagação sobre um certo cinema tardio requer que tentemos escapar a uma cansativa cinefilia canónica e meramente rememorativa, que não se projecta nem implica nos filmes. Logo se torna evidente a obrigação de descermos um degrau e nos colocarmos ao lado, nem sequer dos “autores” menores, mas da própria pequenez formigante dos filmes em concreto ou, ainda mais abaixo, dos pequenos elementos parciais que neles ainda ardem. Ou seja, descer ao nível do que nestes filmes tardios, mesmo que à escala ínfima de uma cena ou sequência, movimento ou gesto, nos interpela e permanece actual contra o nosso próprio tempo.
Do mesmo modo, vemo-nos também obrigados a evitar, nalguns casos talvez de forma injusta, uma certa modernidade “de prestígio” que nos parece demasiado sedimentada, a saber: Ingmar Bergman, Luís Buñuel, Andrei Tarkovsky, Federico Fellini, Rainer Werner Fassbinder, Pier Paolo Pasolini, Luchino Visconti...

[continua]

The process of enquiry of a certain late cinema requires that we attempt to escape a tiresome canonical cinephilia — merely recollective — that does not project nor implies itself in the films. It quickly becomes clear the obligation to descend a step in order to be side by side — not even of minor “auteurs” — the vibrant smallness of particular films or, even lower, the small partial burning elements in them. That is, to descend until the level in which these later films, even at the pitiful scale of a scene or sequence, a movement or gesture, take hold of us and remain actual against our own times.
Similarly, we are also forced to avoid — in some cases unfairly — a somewhat “prestigious” modernity that seems far too well-grounded, like: Ingmar Bergman, Luís Buñuel, Andrei Tarkovsky, Federico Fellini, Rainer Werner Fassbinder, Pier Paolo Pasolini, Luchino Visconti...

[to be continued]

Amplitude gestual | Gestural amplitude (O período cor-de-rosa | The pink period #1.6)


Embora a descoberta de uma ambiguidade livre — cujo sentido propriamente cinematográfico tem de ser entendido como extra-linguístico e extra-moral — seja o movimento que nos parece abranger melhor todo o cinema moderno e sintetizar o conjunto das suas façanhas, é mais precisamente no campo tardio deste cinema que se encontrará uma inaudita amplitude gestual.
Em TERRA EM TRANSE (1967) de Glauber Rocha, dois amantes rodeiam-se de pé, abraçam-se, beijam-se e, enquanto a câmara os contorna, sussurram um ao outro e ela declama um poema dele em off, acompanhados pela música de Villa-Lobos. Trata-se de um momento muito ambicioso e de raro conseguimento, dado que a declamação de poemas em cinema tem tendência a ser bastante penosa ou a deixar escapar por completo a própria apreensão do poema dito. Neste caso, pelo contrário, é extremamente comovente, e certamente que um particular desacordo entre os elementos, os corpos e as vozes, para isso contribui.
Esta amplitude gestual liberta, não naturalista, permitirá várias encarnações aos corpos, possessões por uma vez explícitas, expondo a sua natureza cinematográfica e não remetendo para entidades imaginárias. Permitirá também, em casos extremos, como no massacre com que termina LANCELOT DU LAC (1974) de Robert Bresson, dar a imagem mais terrível e desoladora — sobretudo porque isenta de pathos — da separação da vida nos corpos.

[continua]

Although the discovery of a liberated ambiguity — whose cinematic sense must be properly conceived as extra-linguistic and extra-moral — seems the movement that encompasses the best of all modern cinema and synthesises the gathering of its feats, it is more precisely in the later field of this cinema that one can find a new gestural amplitude.
In Glauber Rocha’s TERRA EM TRANSE / ENTRANCED EARTH (1967), two lovers round up, embrace and kiss each other, and, while the camera goes around them, they whisper and she recites his poem in off, accompanied by the music of Villa-Lobos. It is a very ambitious moment, one of rare achievement, since the recitation of poems in films tends to be rather painful or to completely miss the seizing of the poem itself. In this case, on the contrary, it is extremely moving, and surely the particular disagreement between the elements, bodies and voices, plays a major part.
This liberated gestural amplitude, non-naturalistic, will allow several incarnations of the bodies, possessions for once explicit, exposing their cinematic nature and non-consigning imaginary entities. It will allow also, in extreme cases such as the massacre that ends Robert Bresson’s LANCELOT DU LAC (1974), to give the most terrible and desolate image — because absent of pathos — of the separation of life in bodies.

[to be continued]

Linhas de fuga | Lines of flight (O período cor-de-rosa | The pink period #1.5)

No entanto, porque o carácter verdadeiramente problemático da apreensão do cinema moderno não se encontra hoje tanto na consideração do seu surgimento, como no seu dificilmente compreensível desvanecimento, precisamente nos anos 70 que nos ocupam, em detrimento de uma definição histórica geral, demasiado geral, do cinema moderno, parece-nos antes necessária a apreciação de um modernismo tardio, que é aquilo de que a nossa periodização “cor-de-rosa” procura dar conta. Como disse Deleuze, parafraseando Nietzsche, “nunca é no início que algo de novo, uma nova arte, pode revelar a sua essência, mas, o que era desde o início, só o pode revelar num desvio da sua evolução”. O que implica a declinação de algumas linhas de fuga, em grandes pinceladas e pequenos traços ao mesmo tempo, de um cinema que, perdido por entre o calor vociferante do seu tempo e em si mesmo já de natureza indomesticável, jaz praticamente abandonado, sem seguidores, e dificilmente recuperável pelos habituais revivalismos kitsch.

[continua]

Nevertheless, since today the true problematic character of modern cinema’s apprehension resides not so much in the consideration of its irruption as in the difficult understanding of its disappearance, precisely in those 70’s we are dealing here, instead of a general, all too general historical definition of modern cinema, it seems rather necessary the appreciation of a late modernism, one which our “pink” periodization tries to account for. As Deleuze once said, paraphrasing Nietzsche, “it is never at the beginning that something new, a new art, is able to reveal its essence; what it was from the outset it can reveal only after a detour in its evolution”. This implies the declension of some lines of flight, in big strokes and small traces at the same time, of a cinema that — lost within the vociferous heat of its time and in itself already of an untamed nature — lies practically abandoned, without followers, and hardly recoverable by the usual kitsch revivals.

[to be continued]

Descontinuidade forçada | Forced discontinuity (O período cor-de-rosa | The pink period #1.4)

O cinema moderno terá nascido como uma descontinuidade forçada – a tese é conhecida – no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, no confronto “ao que nos aconteceu”, do inaudito dos campos de extermínio à própria incapacidade histórica do cinema, pior do que isso, à sua participação voluntária nas grandes encenações e máquinas de propaganda. Esta descontinuidade poder-se-á talvez definir, positiva e simultaneamente, por uma libertação da ambiguidade e uma extensão dos afectos. Nessa ferida aberta inscreveram-se várias dinâmicas disruptivas, das quais se salientam os choques vitais, de que as repetidas “ressurreições” nos filmes de Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni ou Carl. Th. Dreyer são fascinantes expoentes.

[continua]

Modern cinema might have been born as forced discontinuity — a common stance — in the aftermath of World War II, facing “what happened to us”, from the originality of extermination camps to the historical inability of cinema itself, even worse, its willing participation in the great staging and propaganda machinery. This discontinuity could perhaps be defined, positively and simultaneously, as liberation of ambiguity and extension of affects. In that open wound several disruptive dynamics were inserted, of which one can emphasize the vital shocks of which the repeated “resurrections” found in Roberto Rossellini, Michelangelo Antonioni and Carl Th. Dreyer are fascinating instances.

[to be continued]

Tentativa de periodização | Attempt at periodization (O período cor-de-rosa | The pink period #1.3)

Esta degradação cromática, à qual nos apegámos, parece ser o mote descritivo adequado para um certo cinema. Um “período cor-de-rosa” da história do cinema, assim tão inabilmente concebido, na soberba de partir exclusivamente de um acidente da experiência de espectador, e negligenciando obviamente a incongruência da inclusão dos filmes a preto e branco ou dos que não foram vistos nesse estado, decorre antes de mais da seguinte afirmação: é unicamente no interior dessa experiência de espectador que se pode fundar toda e qualquer “ciência” ou, mais modestamente, ter pensamentos perante o cinema. Tal tentativa de periodização é também, e sobretudo, um gesto conscientemente desesperado de recuperação da parcela mais desprezada da história do cinema; uma parcela transversal e rarefeita, pequenos pontos verdadeiramente excêntricos e extremados no mar avassalador da indiferente produção...

[continua]

This chromatic degradation, of which we became fond of, seems to be an adequate descriptive motto for a certain cinema. A “pink period” of film history, so ill-conceived in the arrogance of starting just with a singular accident in the experience of a spectator, and obviously neglecting the incongruence of including black & white films or those who were not seen in that condition, derives first of all from the following statement: it is uniquely through the spectator’s experience that any whatever “science” can be founded or, more modestly, can we have thoughts facing film. Such an attempt at periodization is also, and mostly, a consciously desperate recovery gesture of the most neglected slice of film history, a rarefied and transversal slice, truly eccentric and extreme tiny points in the overwhelming sea of an indifferent production...

[to be continued]

In memoriam Thomas Harlan (1929-2010)

“Cópias cor-de-rosa” | “Magenta prints” (O período cor-de-rosa | The pink period #1.2)

As “cópias cor-de-rosa” são um fenómeno explicável historicamente pela substituição progressiva, a partir dos anos 50 e por razões de simplicidade e economia, do sistema Technicolor pelo Eastmancolor. A instabilidade química intrínseca das emulsões positivas do novo sistema manifestava-se frequentemente no rápido desvanecimento da cor, com a particularidade de ser a resistente camada magenta a última a perder densidade. O problema começa com uma dominante castanha nas sombras, perca de contraste, o céus azuis ficam brancos, tudo tende a uma tonalidade vermelha... No final resta apenas um inundante rosa que banha o filme por completo. Esta limitação tecnológica terá sido aparentemente corrigida ou atenuada no início dos anos 80 (depois de uma carta aberta de Martin Scorsese); no entanto, para um cinéfilo pouco conhecedor de detalhes químicos e históricos, o mal já estava feito. A coincidência temporal e a afinidade estilística daqueles filmes cedo deu azo a uma interpretação paranóica, que incluía especulações delirantes sobre o menosprezo de um certo tipo de cinema por parte dos poderes da preservação, etc. E, na verdade, que melhor estatuto de menoridade haverá, para um cinema relativamente recente, do que a dificuldade em encontrar cópias novas e em condições?

[continua]

“Magenta prints” are a historically understandable phenomenon caused by the progressive substitution from the 50’s onwards, for reasons of simplicity and economy, of Kodak’s Technicolor system by Eastmancolor. The intrinsic chemical instability of the new system’s positive emulsions manifested frequently in rapid colour vanishing, with the particularity that the resistant magenta layer was the last one to lose density. The problem starts with a brown dominant in the shadows, loss of contrast, the blue skies turn white, everything tends to a reddish tonality... In the end, an overflowing pink drowns the film completely. This technical limitation was apparently corrected or attenuated in the beginning of the 80’s (following a Martin Scorsese open letter); nevertheless, for a cinephile ignorant of chemical and historical details, the harm was done. The temporal coincidence and stylistic affinity of those films soon gave way to a paranoid interpretation, including delirious speculations about the neglect of a certain kind of cinema by the preservation powers that be, etc. And, truth be told, what better minority status can there be, to a relatively recent cinema, than the difficulty of finding new or able to be shown prints?

[to be continued]

Uma particular cinefilia | A singular cinephilia (O período cor-de-rosa | The pink period #1.1)

«O período cor-de-rosa. Sobre o modernismo tardio no cinema», publicado previamente no catálogo do ciclo Eram os Anos 70, ed. Antonio Rodrigues, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2009, pp. 90-115.


O cinema “moderno”, uma provocação sem objecto e um luto sem fim.
(Serge Daney, 1982)

Uma particular cinefilia não se dá indiferente aos acidentes que a perturbam. Procura, para lá da apetência por determinados filmes, traços que a singularizem, que a justifiquem como anomalia que é. E, ao longo dos anos fechados, certas coincidências acabam por revelar-se significativas. Por exemplo, ter-se dado o caso de descobrir alguns filmes, tornados depois entre os preferidos, em condições estranhas, nada ideais; em concreto, em cópias manchadas de um tom rosa, mais propriamente, num quase insuportável magenta. Assim nos chegaram, lembramos: OTHON (1970) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, MILESTONES (1975) de Robert Kramer, SON NOM DE VENISE DANS CALCUTTA DÉSERT (1976) de Marguerite Duras, JEANNE DIELMAN (1975) de Chantal Akerman, PROVIDENCE (1977) de Alain Resnais, entre outros. Depois deparamo-nos com fotografias de cena ou fotogramas reproduzidos, e não lhes reconhecemos a cor. Eram, no entanto, aqueles os filmes vistos. Algo na nossa experiência de espectador tinha ultrapassado a circunstância nefasta, negligenciando-a. Uma força tinha atravessado a cor, os filmes ainda vivos acercando-se a nós...

[continua]

«The pink period: On cinema’s late modernism», english translation of an essay previously published in the film program catalog Eram os Anos 70, ed. Antonio Rodrigues, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 2009, pp. 90-115.


‘Modern’ cinema: provocation without object and endless mourning.
(Serge Daney, 1982)

A singular cinephilia doesn’t come unharmed the accidents it goes through. It reaches — beyond the affinity of some films to each other — for traces that singularize and justify it as the anomaly it indeed is. And, in those years closed inside, coincidences ended up making some kind of meaning. For instance, that a few films — later among favourites — were revealed in strange and far from ideal conditions; specifically, in pinkish stained prints, an almost unbearable magenta, to be more precise. That’s how — we remember — those films came to us: Jean-Marie Straub and Danièle Huillet’s OTHON (1970), Robert Kramer’s MILESTONES (1975), Marguerite Duras’ SON NON DE VENISE DANS CALCUTTA DÉSERT (1976), Chantal Akerman’s JEANNE DIELMAN (1975), Alain Resnais’ PROVIDENCE (1977), among others. We would afterwards notice photos taken at the set of those films or reproduced frames; we wouldn’t then recognized their colour. Those were, nevertheless, the films we had seen. Something in our spectator’s experience had overcome the adverse circumstance by neglecting it. A force had traversed the colour, those films still alive, reaching us...

[to be continued]

Ao pé da letra #114 (António Guerreiro)

Sobre uma revista que é um parque temático e que fornece material para uma etologia da vida literária

«A literatura, que na época do romantismo fez da crítica o seu conceito imanente e, com a sociedade de massas, se tornou objeto da sociologia, entrou na fase em que reclama uma etologia. Em rigor, a etologia nada tem a dizer sobre a literatura, mas é a ciência mais competente para falar sobre aquilo em que esta se dissolve: a vida literária. Entende-se por vida literária o código de comportamentos que rodeiam a instituição literária. A utopia de uma vida literária plena, encontramo-la na revista “Ler”. Até um etólogo de fraco saber percebe, mal começa a folheá-la, que entrou numa reserva de vida especial. Não é que esta vida não habite nas páginas literárias dos jornais. Mas na revista “Ler” todos os álibis foram abandonados e o resultado é uma concentração de vida literária, um encontro jubilante de escritores, editores, críticos, divulgadores, leitores: a grande entrevista que eleva o entrevistado ao Olimpo do Grande-Escritor; as rubricas de fait-divers e de brincadeiras inocentes; as notícias e as listas dos livros a sair (a vida literária tem, por definição, uma tensão prospetiva, declina-se sob a forma do que aí vem); o top dos livros mais vendidos nos países a que o leitor cosmopolita não pode deixar de estar atento; a prodigiosa proliferação (dez, ao todo) de crónicas — o bem mais partilhado neste mundo de sonho.

Tudo alimentado por um fervoroso amor aos livros, até às suas entranhas materiais. A vida barroca e flamejante deste jardim, que é o melhor dos mundos possíveis, tem a sua expressão na eloquência patética de um Candide sem ironia: “O que faz falta na crítica literária portuguesa é a análise superficial” (Jorge Reis-Sá). Só nesta coutada protegida de vida literária, onde reina uma harmonia pré-estabelecida, “um devorador de livros açoriano”, anunciado na capa, não é uma séria ameaça a um escritor que, logo abaixo, ousa dizer em voz alta: “O Livro sou eu.”»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 16.10.2010.

Empty extension (Birth of electronic space #11)

On the other hand, the (philosophical) problem concerning the intensity of space remains. Besides some paradoxes of place, with its superimposed incongruous spaces and times, contemporary cinema seems to offer us an additional dimension that just cannot be expressed by the too general concept of “space”. Can we still elaborate deeply about interior or exterior space in the films of Hou Hsiao-hsien, Apichatpong Weerasethakul, Rithy Panh, Abbas Kiarostami, Pedro Costa, etc.?
Or, on the contrary, are those most impressive exploits already a manifestation of an empty extension? We feel that an important philosophical problem is being incarnated or, better still, being expressed through contemporary cinema (even if one might suspect that what one might call an empty affective extension was anticipated by Henri Michaux’s later writings). Its further and conjoint exploration would perhaps provide a conceptual grid to comprehend it after modern cinema.

[the end]

[Devido à minha ausência de Lisboa, a rubrica mensal «Filmes ‘menores’» fica suspensa até ao início do próximo ano.]

Aclamação (Giorgio Agamben + Charles Chaplin)

A função política essencial da glória, da aclamação e da doxologia parece hoje desvanecida. Cerimónias, protocolos e liturgias existem ainda por toda a parte, e não apenas onde sobrevivem as instituições monárquicas. Nas recepções e nas cerimónias solenes, o presidente da república continua a seguir regras protocolares, a cuja observância são delegados funcionários especiais, e o pontífice romano ainda se senta na cathedra Petri ou na sedia gestatoria e veste paramentos e tiaras, de cujo significado os fiéis perderam em geral a memória.
Regra geral, no entanto, cerimónias e liturgias tendem hoje à simplificação, as insígnias do poder estão reduzidas ao mínimo, as coroas e os ceptros conservados nas vitrinas dos museus ou dos tesouros e as aclamações, que tanta importância tinham para a função gloriosa do poder, parecem quase por toda a parte desaparecidas. Certo, há tempos não assim tão distantes, nos quais, no âmbito daquilo a que Kantorowicz chamava the emotionalism dos regimes fascistas, as aclamações tinham desenvolvido uma função decisiva na vida política de alguns grandes Estados europeus: talvez nunca uma aclamação em sentido técnico tenha sido pronunciada com tanta força e eficácia como Heil Hitler na Alemanha nazi ou «Duce duce» na Itália fascista. Todavia, estes gritos ruidosos e unânimes que ressoavam ontem nas praças das nossas cidades parecem hoje parte de um passado longínquo e irrevocável.
Mas será mesmo assim? […]
A contribuição específica de [Carl] Schmitt não é aqui somente a de ligar indissoluvelmente a aclamação à democracia e à esfera pública, mas também a de identificar as formas nas quais ela pode subsistir nas democracias contemporâneas, em que «a assembleia do povo presente e toda a espécie de aclamação se tornaram impossíveis». Nas democracias contemporâneas, a aclamação sobrevive, segundo Schmitt, na esfera da opinião pública e apenas partindo do nexo constitutivo povo-aclamação-opinião pública é possível reintegrar nos seus direitos o conceito de publicidade, hoje «bastante ofuscado, mas essencial para toda a vida política e em particular para a democracia». […]
Mais do que a singular anexação […] à tradição democrática de um elemento, a aclamação, que parece pertencer sobretudo à tradição do autoritarismo, interessa-nos aqui a indicação segundo a qual a esfera da glória — de que tínhamos tentado reconstruir o significado e a arqueologia — não desaparece nas democracias modernas, mas desloca-se simplesmente para um outro âmbito, o da opinião pública. Se isto é verdade, o problema hoje tão debatido da função política dos media nas sociedades contemporâneas adquire um novo significado e uma nova urgência.
Em 1967, com um diagnóstico cuja correcção nos parece hoje demasiado óbvia, Guy Debord constatava a transformação à escala planetária da política e da economia capitalista em «uma imensa acumulação de espectáculos», na qual as mercadorias e o próprio capital assumem a forma mediática da imagem. Se conjugarmos a análise de Debord com a tese schmittiana da opinião pública como forma moderna da aclamação, todo o problema do actual domínio espectacular dos media sobre cada aspecto da vida social aparece a uma nova dimensão. Em questão está nada menos que uma nova e inaudita concentração, multiplicação e disseminação da função da glória como centro do sistema político. Aquilo que outrora permanecia confinado à esfera da liturgia e dos cerimoniais concentra-se nos media e, conjuntamente, através deles, difunde-se e penetra a cada instante e em todos os âmbitos, tanto públicos como privados, da sociedade. A democracia contemporânea é uma democracia integralmente fundada sobre a glória, ou seja, sobre a eficácia da aclamação, multiplicada e disseminada pelos media para lá de toda a imaginação (que o termo grego para glória — doxa — seja o mesmo que designa hoje a opinião pública é, deste ponto de vista, algo mais que uma coincidência). E, como tinha sempre acontecido nas liturgias profanas e eclesiásticas, este suposto «fenómeno democrático originário» é mais uma vez capturado, orientado e manipulado pelas formas e segundo as estratégias do poder espectacular.


Começamos agora a entender melhor o sentido da actual definição da democracia como government by consent ou consensus democracy e a decisiva transformação das instituições democráticas que está aí em questão. [...]
Aquilo que a nossa pesquisa mostrou é que o Estado holístico fundado na presença imediata do povo clamante e o Estado neutralizado decidido nas formas comunicativas sem sujeito são opostos apenas na aparência. Estas não são senão as duas faces do mesmo dispositivo glorioso nas suas duas formas: a glória imediata e subjectiva do povo clamante e a glória mediática e objectiva da comunicação social. Como deveria ser hoje evidente, povo-nação e povo-comunicação, ainda que na diversidade dos comportamentos e das figuras, são os dois rostos da doxa, que, enquanto tais, incessantemente se entrelaçam e se separam na sociedade contemporânea. Neste entrelaçar, os teóricos «democráticos» e laicos do agir comunicativo arriscam encontrar-se lado a lado com os pensadores conservadores da aclamação como Schmitt e Peterson; mas este é, precisamente, o preço que devem pagar de cada vez as elaborações teóricas que crêem poder dispensar precauções arqueológicas.
Que o government by consent e a comunicação social, sobre os quais em última instância o consenso repousa, reenviam, na verdade, à aclamação, é algo que mesmo uma pesquisa genealógica sumária está em condições de mostrar. [... S]e se entende o nexo essencial que o liga à aclamação, o consenso pode ser definido sem dificuldade, parafraseando a tese schmittiana sobre a opinião pública, como «forma moderna da aclamação» (pouco importa que a aclamação seja expressa por uma multidão fisicamente presente, como em Schmitt, ou pelo fluxo dos procedimentos comunicativos, como em Habermas). Em qualquer caso, a democracia consensual, que Debord chamava «sociedade do espectáculo» e que é tão cara aos teóricos do agir comunicativo, é uma democracia gloriosa, na qual a oikonomia se resolve integralmente na glória e a função doxológica, emancipando-se da liturgia e dos cerimoniais, absolutiza-se de maneira inaudita e penetra todos os âmbitos da vida social.
A filosofia e a ciência política esqueceram-se de fazer as perguntas que, de cada vez que se analisam numa perspectiva genealógica e funcional as técnicas e as estratégias do governo e do poder, se apresentam em todos os sentidos como decisivas: De onde retira — mitológica e facticiamente — a nossa cultura o critério da politicidade? Qual é a substância — ou o procedimento, ou o limiar — que permite conferir a algo um carácter propriamente político? A resposta que a nossa pesquisa sugere é: a glória, no seu duplo aspecto, divino e humano, ontológico e económico, do Pai e do Filho, do povo-substância ou do povo-comunicação. O povo — real ou comunicacional — ao qual de algum modo o government by consent e a oikonomia das democracias contemporâneas devem inevitavelmente reenviar, é, na sua essência, aclamação e doxa. Se então, como procurámos mostrar in limine, a glória recobre e captura como «vida eterna» aquelas práticas particulares do homem vivente que definimos como inoperância e se é possível, como foi anunciado no fim de Homo sacer I, pensar a política — para além da economia e da glória — a partir de uma desarticulação inoperante tanto da bios como da zōē, é o que permanece atribuído como tarefa a uma pesquisa por vir.


Giorgio Agamben, «Archeologia della Gloria: Soglia», Il Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell’economia e del governo (Homo sacer, I̶I̶,2̶ II, 4), Neri Pozza, Vicenza, 2007, pp. 277-284.

The problem of scale (Birth of electronic space #10)

Within this configuration I’m forced to admit I think we have reached a limit, a threshold of cinematic space, for which I can’t recognize a continuation in the present form it takes outside the canonical screen dispositive.

The major reason for this concerns the serious problem of scale. How can cinema limit itself to the human scale, when so much of what’s important in contemporary life is happening in dimensions — not only physical dimensions, but let’s concentrate on those — that human form cannot accompany? And how to cinematically account for those dimensions? As they produced a profound reflection on electronic and, afterwards, digital space, one wonders if by their own means the Vasulkas weren’t forcefully trying to focus precisely on this problem of scale; i.e., the congruence of macro and micro scale that humans were not accustomed to deal with and that an expanded cinema would eventually force humans to confront.
The most didactic of films — Ray & Charles Eames’ POWERS OF TEN (1977) —, as its very precedent COSMIC ZOOM (1968) by Eva Szasz (mentioned by de Loppinot) showed precisely this problem, even if in a decreasing continuity from the galaxies to the imaginable tiniest element known by then. The Vasulkas were not preoccupied with this continuity, since they had positioned their work already in another scale, discontinuous with the human.

[to be continued]

Nem é preciso chorar



Um “documentário dramatizado” — como MARIA DO MAR (1930) de Leitão de Barros — é aquele filme em que todos os retratados parecem forçados a expor a sua condição preferencial — neste caso, a de pescadores da Nazaré — e isso torna-se notório em si mesmo — no uso compulsivo do barrete típico; também para que depois todos o possam retirar em sinal de respeito pelo luto, que era frequente.
Mas é também aquele filme que — perante um naufrágio e consequentes mortes — permite aos rostos dos retratados falarem por si, de todas as mortes ocorridas e das outras tantas mortes em vida, como que já evidenciando todas as agruras, mas sem a necessidade adicional de as dramatizar. Assim, ao rosto da “velha cega, essa Galiana”, não seria preciso acrescentar mais nada, nem é sequer preciso que chore.

Inner expansion (Birth of electronic space #9)

A recently published book solely devoted to Michael Snow‘s La Région centrale by Stéfani de Loppinot particularly underlines the context of spatial expansion — the concrete expansion to the Moon — as a very powerful motive of Snow’s work, which she also mentions was reacting, in that specific film, to the multiplication of screens. The lunar and spatial expansion of the 60’s, with its corresponding iconic image production constitutes then a backdrop to Snow’s exploration of that deserted — before and beyond human presence — region through the overreaching camera.
But one might take this historical and cultural contextualization further and state that indeed Snow’s film, while seismographically capturing the signs of those times, is — as the “birth of electronic space” it expresses — a “response” in advance to the failure that exterior expansion would amount to. What the then created electronic space represents is a so different inner expansion, one of technological features that incarnated in the so-called “virtual space” we all more or less live in. So, the profusion of movement in that no-man landscape was in fact the admittance of a failure, as Snow well stated in interviews, the failure of the human in grasping a space to its dimensions.

[to be continued]

Ao pé da letra #113 (António Guerreiro)

Sobre as nossas instituições de ensino e as normas de segurança que as tornam instituições carcerárias

«Essa instituição de que tanto se fala — a escola — é hoje determinada por um discurso piedoso, segundo o qual ela repete, como microcosmos, o macrocosmos social. Tal discurso tem o seu reverso na maneira como a sociedade é concebida enquanto máquina educativa que não dispensa a palavra que autoriza todos os pactos sociais: pedagogia. Como observou um filósofo francês (Jean-Claude Milner), o facto social total de Mauss renasceu no nosso tempo transformado em ato educativo global. A mensagem gravada que a ministra da Educação, no papel misto de mestre-escola e grande educadora, dirigiu esta semana às criancinhas (na verdade, alunos, pais e professores) mostra bem que para a máquina educativa quando se fala em alunos pensa-se em crianças. Por conseguinte, tudo o que diz respeito à escola diz respeito à infância. Uma ministra que se dirige a toda a comunidade educativa será então maternal e próxima do infantil.
De resto, esta ministra da Educação chegou ao lugar com uma vasta obra literária de sucesso que, do ponto de vista dos princípios pedagógicos fundamentais que lhe estão subjacentes, remete para o lugar feliz em que a infância romanesca se encontra com a educação romanceada, a lembrar-nos que sobre a escola não há apenas o discurso piedoso; há também o romance edificante. E há, no seu funcionamento e gestão, a obediência estrita, quase paranoica, aos princípios da segurança e vigilância. Assim, ao mesmo tempo que a escola e a educação no seu todo nos transportam para um jardim de infância, a primeira é depois sujeita a cautelas e vigilâncias a que estão sujeitos os locais que alojam criminosos. Em larga medida, as normas, os procedimentos e até algumas características arquitectónicas das instituições carcerárias tomaram conta das nossas instituições de ensino.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 18.9.2010.

The Vasulkas (Birth of electronic space #8)




If we take a brief glimpse of what was happening around the same years, video technology was starting to fascinate artists by late 60’s, and Steina and Woody Vasulka, American video art pioneers from European origin, produced in 1970 a fascinating series, not unexpectedly called SKETCHES, in which they played loosely with the medium formal qualities. In these small sketches, such as the KISS, CHARLES STORY and ALFONS, there were still human figures represented, but the artists were already slowly starting to disfigure them. If these works still fascinate us today and maintain an impressive pedagogic potential, it’s perhaps because they express a precise moment, a kind of “freeze frame” on the emergence of the creative technology of video, and show us its raw unexplored formal capabilities, before they were domesticated by the artist’s will.
These first essays soon open into an electronic primitivism, the first and most revealing experiences of didactic composition and deciphering of the then emergent technology. More interested in video technology per se, they soon abandoned the destruction of the figurative to adopt an almost completely abstract approach that had lost any relation to human measure, and, in a quest for a language of the machine, privileged the expressive potentialities of the machine code itself, using video synthesizers.
In the following years, they’ve produced works that testify for a primitivism of the machine, like VOCABULARY (1973) and NOISE FIELDS (1974), attempts to work inside the machines that generate the image and the sound. The emergence of electronic space would soon turn out to be relatively unfruitful, since it is essentially dependent on violence to the perception in order to become expressive (as maybe experimental cinema itself), as if an art of the machine would only touch us through the violence of electronic noise, a kind of machine generated sublime.

[to be continued]

Ao pé da letra #112 (António Guerreiro)

Sobre o conceito ideológico de sobrepopulação e a necessidade que o sistema capitalista tem de população excedente

«A grande questão política do nosso tempo — como confirmam as controversas decisões do Governo francês e a polémica na Alemanha por causa das declarações de Sarrazin — é de natureza eminentemente biopolítica e diz respeito aos emigrantes e à demografia. Não há nada mais ideológico do que o modo como o declínio demográfico é entendido. Do ponto de vista ecológico, a diminuição da população devia ser vista como um dado positivo, sendo negativos apenas os desequilíbrios na sua distribuição. Mas um sistema baseado no crescimento imparável, como é o sistema capitalista, não é compatível com o emagrecimento demográfico. Se a vida de todos nós se alimenta de um endividamento que vai sendo transportado para o futuro (de modo que cada vez é maior a fatia de futuro hipotecado), se não houver no futuro mais gente para pagar a dívida, o sistema colapsa.
Marx, que desprezava abertamente Malthus, mostrou como a questão da sobrepopulação emergiu “de um modo que não encontramos em nenhum outro período anterior da humanidade”, isto é, de um modo coerente com “o grande papel histórico do capital”. A que papel histórico se refere Marx? Digamos, em síntese: o de criar trabalho excedente. Trabalho excedente e população excedente estão numa relação de dependência e ambos são um produto necessário da acumulação capitalista. Mais do que isso: são a sua própria condição de existência. Atualmente, esta condição entrou numa fase que engendrou o metatrabalho, bem conhecido de muitos “precários” (o precariado, esse novo sujeito da História...). Trata-se do trabalho não remunerado a que muitos se sujeitam, na esperança de arranjar trabalho, as formas de trabalho para arranjar trabalho. É, em suma, uma forma de contrair uma dívida cuja única garantia de pagamento é o próprio tempo de vida do indivíduo.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 11.9.2010.


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