Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

 

Ao pé da letra #180 (António Guerreiro): Modernos e pós-modernos

A palavra “pós-moderno” – e seus derivados – teve a sua década de glória no final do século passado, mas definhou e, na bolsa das ideias e dos produtos intelectuais, tem hoje um valor negativo. Já só é utilizada para designar qualquer coisa pouco respeitável. Pode ser que ela tenha culpas por tal sorte, mas em sua defesa importa dizer que muitos dos ataques de que é vítima são equivocados. Ainda há pouco tempo, um cronista deste jornal referia-se a W. G. Sebald como se os seus livros, pretensamente do lado da “ilegibilidade” e da “morte do romance”, se identificassem com características da pós-modernidade. Ora, tais características (admitindo que a “ilegibilidade” caracteriza alguma coisa) são eminentemente modernas. Verifique-se então o seguinte: sempre que alguém utiliza a palavra “pós-moderno” para desdenhar, para criticar ou pura e simplesmente para usar um epíteto de sentido negativo, na verdade está, na maior parte dos casos, a referir-se involuntariamente ao modernismo. Sobretudo quando estão em causa objetos artísticos e literários.  
Porque é que tal acontece? Porque é de bom tom pôr o pós-modernismo à distância (isto é, aquilo com que ele está conotado), mas ninguém ousa declarar-se antimoderno. Seria um ultraje, uma anacronia. E, no entanto, há hoje, em muitos domínios (e o da literatura é um deles, talvez o mais evidente no campo das artes), o regresso a valores estéticos e a formas de pensar que, se não são pré-modernos, são pelo menos antimodernos. E isto não pode deixar de nos fazer pensar que as experiências no domínio do pensamento e das artes nas primeiras décadas do século passado continuam a oferecer tanta resistência como na sua época. São, de certo modo, inassimiláveis, escapam à homogeneização, nunca foram integradas nos hábitos. Em suma: Joyce nunca existiu.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 25.2.2012.

Ao pé da letra #179 (António Guerreiro): A ideologia meteorológica

Há algo de anedótico nas palavras de uma ministra da Agricultura que, confrontada com a situação de seca, profere: “Esperemos que chova”. Neste desejo de conforto meteorológico reconhecemos não a consciência do desastre, mas a expressão típica do indivíduo urbano que vai passar o fim de semana fora e diz: “Esperemos que não chova”; ou daquele que, rumo a uma estância de inverno, traduz toda a sua expectativa hedonista num “esperemos que neve”. Nas palavras da ministra, subentende-se ainda uma proximidade com a linguagem dos boletins meteorológicos, os quais, tal como são difundidos nos media, abdicaram de toda a neutralidade e são enunciados exclusivamente do ponto de vista dos interesses e cálculos da vida urbana e dos lazeres burgueses: um “belo dia” é sempre o dia de sol (mesmo num inverno em que não houve um dia de chuva) e um “dia feio”, a requerer mil precauções e muitos apelos da “proteção civil”, é invariavelmente um dia de chuva.  
A ciência meteorológica é assim traduzida em pura ideologia. Para um homem do campo e um agricultor, que se estão nas tintas para os avisos da “proteção civil” e que já perceberam que a catástrofe se anuncia, pelo contrário, nas sorridentes confirmações diárias de “bom tempo”, o “esperemos que chova” é uma prova de ignorância: a chuva é antecedida de sinais que eles sabem decifrar e, além disso, é inadiável, não admite espera. Na ausência desses sinais, ninguém espera que se dê o milagre da chuva. Esta ideologia meteorológica ao serviço do lazer do homem urbano é também uma manifestação da racionalidade técnica, que Spengler caricaturava nestes termos: “o homem moderno não pode ver o curso de um rio sem o transformar logo mentalmente em produtor de energia elétrica”. A distância que se criou em relação aos fenómenos naturais, como está patente no analfabetismo urbano em relação à chuva, é uma tragédia.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 18.2.2012.

Ao pé da letra #178 (António Guerreiro): Crime e punição

Ficámos a saber, esta semana, que os clientes do Deutsche Bank podem apostar na morte de pessoas da terceira idade, de tal modo que a rentabilidade do investimento é tanto maior quanto mais prematura for a morte. Por outro lado, um estudo do Instituto de Ciências Sociais agora divulgado mostra que os jovens portugueses têm um baixo índice de solidariedade para com os mais pobres. Estas duas notícias mostram que está em curso um sistema de avaliação que identifica certos grupos de indivíduos com o desperdício, o puro gasto sem contrapartida. A categoria dos criminosos gastadores é cada vez mais vasta e já dificilmente alguém escapa de ser apontado, indiciado, através de diversos mecanismos, como um indivíduo que está a mais: um excedentário, um supranumerário. Por isso, a criminologia já não é só uma disciplina auxiliar do aparelho judicial: tornou-se uma figura da ordem social e os governos têm vindo a desenvolver mecanismos de controlo que se inscrevem neste paradigma criminológico.  
Ao populismo que consiste em explorar a ideia de que os políticos são todos uns criminosos, corresponde, noutro plano, a figura do indivíduo que é um gasto potencial a reduzir e, por isso, representado – também pela comunidade – como suspeito. Tal como a medicina moderna declarou que qualquer pessoa é um doente que se ignora enquanto tal, o poder político atual caminha para a declaração de que todo indivíduo, mesmo o mais honesto, é um criminoso gastador de tempo (roubado ao tempo de trabalho) e de dinheiro público. Nestas circunstâncias, as exigências dos serviços sociais de saúde, de todos os serviços públicos e do próprio sistema económico alargam-se fatalmente a domínios que não podem ser aferidos por uma contabilidade: aqueles que têm que ver com as liberdades públicas e políticas. Sabemos bem que o espaço de pensamento crítico é sempre o primeiro gasto inútil a suprimir.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 11.2.2012.

Ao pé da letra #177 (António Guerreiro): Sismografias e sintomas

Maria do Rosário Pedreira, sismógrafo apuradíssimo que deteta a grande distância os mínimos abalos tectónicos provocados pela erupção do jovem talento literário, escreveu esta semana no seu blogue (“Horas Extraordinárias”) um texto onde formula em voz alta e com o zelo profissional de uma editora à altura do seu tempo uma exigência que foi ganhando forma desde há muito, mas que por uma última reserva permanecia como um não-dito. Diz a editora, em registro franco, que, sendo hoje de sete semanas, nas livrarias, a longevidade de um livro (excetuando os raros sobreviventes), a crítica literária nos jornais é incapaz de acompanhar esta rotação veloz e, por isso, torna-se um esforço inútil, conversa de afásicos para surdos. A coisa pode mesmo ser tão anedótica como uma tartaruga a falar com uma lebre em corrida: “Já vi críticas que saíram um ano depois da publicação dos livros a que diziam respeito. Não serviram a quem as escreveu nem a quem publicou o livro. Talvez sejam iguais ao silêncio, enfim.”  
Nesta visão límpida, a crítica ou serve para vender livros ou não serve para nada; ou é um derivado da publicidade ou sucumbe no silêncio inócuo. E os críticos ou são agentes de difusão ou então não têm maneira de justificar o seu trabalho. Estas verdades nunca tinham sido pronunciadas com tanta clareza porque, apesar dos desvios e contingências, permanecia como princípio (e regra de pundonor) a necessidade de a crítica preservar idealmente a autonomia em relação ao mercado e responder a uma exigência de leitura dos textos e não aos modos e tempos de circulação de uma mercadoria. Este novo episteme crítico fundado espontaneamente por Maria do Rosário Pedreira baseado no critério da rotação das novidades, já não é obra de um apurado sismógrafo, mas manifestação de um eloquente sintoma.  

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 4.2.2012.


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