Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #17 (António Guerreiro)

«A cotação do humanismo no mercado das ideias

Baudrillard, que nos seus tempos de glória deu nome a um modo de pensamento, gostava de usar uma palavra que transformou num conceito: “hipertelia”. Segundo ele, hipertélico – aquilo que vai para além dos seus próprios fins e se anula na sua funcionalidade – é o regime actual de manifestação dos acontecimentos e dos objectos, na sua “estratégia fatal”. O que está bem patente neste “fait-divers” que ele relatava: uma empresa americana, tendo de apresentar provas de uma contabilidade regular, entupiu a secção de finanças local com uma montanha de papéis que transportou em dois camiões.
Agora, que a crise dos mercados financeiros começou a suscitar um discurso de ordem moral (por todo o lado ouvimos falar de ganância, avidez, falta de escrúpulos), seria útil recuperar o poder analítico e interpretativo desse quase-conceito, em vez de continuarmos a procurar uma “face humana”: depois da “face humana do comunismo”, chegou a vez de reclamar a “face humana do capitalismo financeiro”. Com a noção de hipertelia, Baudrillard quis-nos libertar deste humanismo inerte que, no mercado das ideias, é o produto especulativo mais tóxico que existe.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 27.9.2008.

A mão na boca #1: Definição da censura

Um velho de barbas, sentado numa mesa de café com outros dois homens de um kolkhoze vizinho, procura vagarosamente contar como se deu o reencontro com a sua mulher, depois de passados muitos anos prisioneiro num campo, para onde tinha sido enviado “por nada” na União Soviética do pós-Guerra. No momento que se segue ao mencionar dos campos, mas sem qualquer precipitação, uma criança loura, que já conhecíamos doutras cenas anteriores, entra veloz pelo quadro adentro e pousa a mão na boca do velho, lançando um olhar sorridente para trás, para os que o escutavam, quase que para nós, ligeiramente embaraçada. Depois sai do quadro como entrou, e o velho continua a contar a sua lenta estória...
Trata-se de uma cena estranha e perturbadora do filme ISTORIYA ASI KLYACHINOY, KOTORAYA LYUBILA, DA NE VYSHLA ZAMUZH / A FELICIDADE DE ASSIA (1967) de Andrei Konchalovsky, incluído no agora findo ciclo da Cinemateca Eram os Anos 60. É possível que se trate mesmo de uma das cenas que motivaram cortes da censura soviética, e que só em 1987 o realizador pôde recuperar, segundo descreve a sinopse do programa. Por não saber definir esta cena, tentei primeiro descrevê-la. Não é fácil, pois o elemento que me chama a atenção é tão sintético, ao passo que a restante estória, mesmo que dela me recordasse, não ajudaria propriamente à sua compreensão.

O mais difícil de fazer passar na descrição é a simplicidade da entrada da criança em cena, o seu carácter não-denunciado, contra todas as probabilidades, e quase lúdico, perante a gravidade do que é contado. Mesmo o olhar que depois nos lança não é sem ambiguidade, mas não se descola da situação, e parece ainda algo que uma criança irrequieta poderia fazer. No entanto, a esta simplicidade e leveza do gesto não corresponde de todo um impacto inofensivo. Pelo contrário, o carácter infantil do gesto da criança, no sentido de aquém da linguagem, dá-lhe uma força tremenda. Trata-se de calar alguém sem conhecimento do que está a ser dito, da sua importância e eventuais efeitos nefastos, que podem apenas porventura ser intuídos pela criança na atmosfera do momento. Por uns segundos, ficamos suspensos nesse gesto, como que aprisionados por aquela imagem da censura mais inocente, mais terrível. Só depois podemos de novo voltar com calma ao relato do velho, que conta a sua dura vida, e que, apesar de numa ficção, nada nos diz não ser verdadeira. Depois daquela mão de criança na boca...

O espectador ocioso #9: Só na Cinemateca


1. Existem porventura várias escolas de pensamento sobre o projeccionismo. No entanto, um único critério permite talvez, do ponto de vista do espectador, destrinçar entre duas grandes tendências. Mais do que saber se os projeccionistas deixam o filme rolar desfocado por bastante tempo, o que acontece com frequência, quer-me parecer que a divisão reside hoje entre aqueles que defendem e executam a abertura das luzes na sala de cinema assim que se apaga a imagem e aparece o genérico final, que são a quase totalidade, certamente que motivados pela pressa dos espectadores em sair, e os restantes, que as acedem somente quando o filme todo se acaba. Creio que já só na Cinemateca se encontram exemplares destes últimos resistentes.
JE, TU, IL, ELLE (1974) de Chantal Akerman, um belíssimo filme que por ali passou a 8 de Setembro, contém apenas três grandes sequências, cada uma mais embaraçosa que a outra. Na primeira, a jovem Akerman, que dá o corpo aqui também como actriz, destila vagarosamente um desgosto amoroso num quarto que vai esvaziando, comendo açúcar de um saco até ao enjoo; na segunda, conversa e envolve-se sexualmente com um camionista que lhe confessa o quanto a sua própria filha infante lhe provoca desejo (Que filme hoje teria coragem de “mostrar” algo semelhante, sem diabolização? Conheço um, grego, mas o júri do IndieLisboa 2008 deixou-o passar...); na terceira sequência, a que termina o filme, Akerman envolve-se numa sessão de luta greco-romana de cariz sexual com outra mulher (Luís Miguel Oliveira dizia acertadamente, na folha, que aquilo mais fazia lembrar um documentário sobre a vida selvagem).



O final do filme, depois desta cena sexual embaraçosa, ou pelo menos incómoda, chega com um cartão cinzento (o filme é a preto e branco) silencioso e ainda demorado. As luzes não se acedem e nenhum dos espectadores se levanta. Depois chega finalmente o genérico final. Luzes apagadas, ainda ninguém esboça qualquer gesto de sair. Continua o cinzento, expectativa pelo fim da película ou pelo aceder das luzes. Mas não. Começa uma canção infantil em off no filme, cujo refrão reza assim – Chantez, dansez, embrassez qui vous voulez... O espectador ocioso sente que acaba de assistir a um momento especial, não só no filme mas na própria sala. O particular poder do filme, a sua emoção, tinha-se acumulado naquela canção, os espectadores, que esgotavam a sala pequena da Cinemateca, não se tinham levantado porque estavam tolhidos, tocados no seu âmago, nos seus sentimentos, com a sua vida exposta àquela que Akerman lhes tinha dado de presente, já há tantos anos. Finda a canção, findo mesmo o restante cinzento da película, ninguém se tinha levantado. Só quando, feito escuro completo na sala, se acedem as luzes, a custo os espectadores se levantam e saem da sala. Só na Cinemateca.
Certamente que os mais cínicos, vulgo sociólogos, verão nesta situação, e com a sua razão, antes um exemplo de uma espécie de coacção inter-pares exercida num espaço comum. A atmosfera não era propícia a incomodar os outros. O constrangimento que causaria levantar-se naquele momento teria coarctado o impulso de certos espectadores em abandonar a sala. A emoção estética não era para ali chamada. Talvez.

Mas, na sala da Cinemateca, os espectadores parecem ter pelo menos a consciência de que algo, senão neles, se pode passar noutros, que levantar-se precipitadamente, revelando a pressa que têm em voltar a casa, ao seu casulo, poderia interferir nessa emoção alheia. É, aliás, a meu ver, para que serve ficar na sala acompanhando o genérico final até ao fim, para deixar pousar o filme em nós. Muitas vezes não chega e ficamos alienados ainda uns bons minutos, incapazes já na rua de qualquer diálogo social sofisticado. Pelo menos na Cinemateca podemos manter a ilusão, ainda que infelizmente alimentada pela autoridade, de que a emoção estética dada por um filme ainda suspende a normal precipitação das pessoas.


2. Mas só na Cinemateca também, no dia da Festa de Encerramento da comemoração dos seus 50 anos, a 29 de Setembro, não poderão a Vanda e o Ventura entrar (a não ser como convidados; ter-se-ão lembrado deles?). Doutro modo poderão apenas, como qualquer outra pessoa, espera-se, e é o mais importante, assistir à única sessão desse dia, a das 23h, «Uma noite de filmes» programada por Pedro Costa, realizador dado a interessantes gestos de programador, que (juntamente com BILLIE HOLIDAY SINGS FINE AND MELLOW e SO DARK THE NIGHT, este de Joseph H. Lewis) inclui por sinal o belíssimo THE EXILES de Kent MacKenzie, que Pedro Costa terá provavelmente descoberto ao ver LOS ANGELES PLAYS ITSELF de Thom Andersen (ambos programados anteriormente por Ricardo Matos Cabo).


Haverá igualmente uma sessão solene privada e mesmo uma festa propriamente dita, também ela privada, por convites, na Cinemateca pública, que se realizarão no mesmo dia, antes da sessão de cinema. Quem terá sido convidado? Talvez os que assinaram a petição ad hominem. Não terão sido as pessoas interessadas pelo cinema, dentro ou fora da Cinemateca, inclusive programadores, nem sequer os Amigos da Cinemateca, que eram quem verdadeiramente lá podia e devia estar. E não as ditas elites, essa corja, como diz uma amiga, que, seja por proximidade com o poder político ou pelas postas de pescada que vomitam nos jornais, sem que, no entanto, se dignem a lá ir ver cinema, podem aceder às doutas considerações sobre o que a Cinemateca deve e pode ser nos festejos dos seus 50 anos. Ou talvez se prepare a passagem de testemunho, e que esta seja privada não é todo inocente. Tudo demasiado controlado, demasiado sustentado, pois as ameaças rondam; um espírito de perseguição. Como se Bénard da Costa fosse anunciar a sua retirada despeitosa, ofendida, depois de cumprida a grandiosa obra.
E há igualmente um lado de classe, de aristocracia cultural, e mesmo de exclusão de classe, nesta festa secreta, privada, de que não se sabe rigorosamente nada a três dias de se realizar, que é repugnante. A bilheteira terá até um horário especial (14-19h e 22-23h) para evitar possíveis misturadas. Dá vontade de fazer como num Buñuel, de ir com o povão e entrar por ali adentro, escandalizando os burgueses no seu ambiente fechado, incomodando as elites, comendo os acepipes com fome e não por displicência, bebendo o vinho com sede, nessa festa de que, como eu e outros, a Vanda e o Ventura quaisquer também não podem participar.

O académico recalcitrante: Peixes fascistas!


Mesmo um académico novato, daqueles ainda não habituados às altas andanças da sapiência internacional, compreende rapidamente que, numa conferência que dura alguns dias, o momento alto é, sem dúvida, o beberete oferecido por uma qualquer editora de livros especializados. E não tanto pelos livros. Aqueles copinhos de vinho tinto ou branco, ou mesmo rosé nos casos mais extremos de míngua, contribuem sobremaneira para desanuviar o ambiente, tantas vezes demasiado solene entre pessoas que têm como defeito profissional, dificilmente evitável, é verdade, tomarem-se em grande conta. Nestas condições, um académico que deseje desabrochar, levado pelo doce embalo dos néctares engarrafados, pode sentir-se tentado a gracejar, conquistando a atenção alheia por uns breves segundos ou a promessa de simpatia de uma qualquer conferencista mais tímida. Ou mesmo, se for audaz, a explorar todas as cambiantes dos mal-entendidos em contexto internacional. Que, fica aqui a nota, não são assim tão poucos, em tempos de politicamente correcto anglo-saxónico. Este, surpreendentemente para um nativo dos países latinos, não só ainda sobrevive, como se tornou a norma implícita, a auto-censura mais insidiosa, e é sabido que mantém uma relação, no mínimo complicada, com o sentido de humor, a mais selvagem das extensões da inteligência.
Se por acaso este novato, trespassado pelo álcool ou apenas pelo desespero quotidiano, vulgo solidão, ouvir outros académicos, que estejam suficientemente perto para quem se possa intrometer sem se notado, começar a discutir, vá-se lá perceber porquê, o maravilhoso, horrível caso de Leni Riefenstahl, aquele, já um pouco tocado por não terem tomado em consideração todo o alcance das suas minúsculas objecções num anterior debate obscuro, poderá ser levado a afirmar:
Com a Leni Riefenstahl até os peixes eram fascistas!
Nada é mais triste que alguém que ri sozinho das suas próprias piadas. O encanto tétrico dos palhaços é somente o correspondente reverso disto. Ah, o riso e a morte, que ligações secretas! Claro que uma piada tem que possuir um contexto compreensivo. Peixes fascistas, mas que merda é essa? Nestas alturas, convém ter um parceiro, diferente em compleição, seja física ou intelectual, que dê, por contraste, saliência ao que acaba de ser dito, impedindo o vazio de devorar o novato. Um académico ancião, já gasto de anos e anos de arrastamento em alcatifas académicas por esse mundo fora, bondoso e tolerante com a ganância dos jovens lobos, à qual sorri com complacência e sobretudo pena, poderá ajudar, apesar do humor suportar muito mal, ou não suportar de todo, as notas de rodapé.


Poderá dizer, por exemplo, que o jovem inábil está somente a explorar à exaustão o que dizia Susan Sontag sobre as fotografias das tribos africanas por Leni Riefenstahl, que estas eram uma continuação da sua estética fascista. No documentário THE WONDERFUL, HORRIBLE LIFE OF LENI RIEFENSTAHL de Ray Müller (cujo título alemão é curiosamente «O poder das imagens: Leni Riefenstahl»), vemos como a pobre senhora, tão acossada por tanta gente que não queria esquecer, acabou os seus dias a fotografar peixinhos no fundo do mar, talvez por neles encontrar finalmente algo que não se prestasse à sua visão. Assim explicada, valha a verdade, a piada ainda tem menos piada.
Mas, como o pior pode sempre piorar, já dizia o Shakespeare, ao jantar, na continuação da alcoolização geral, a conversa pode rondar o mesmo assunto, com doutas opiniões sobre outros casos de cineastas nazis ainda piores. O académico novato poderá ser tentado, fazendo render o seu parco peixe, a repetir a sua piada, se necessário for várias vezes, até que alguém faça aquele assentimento gentil do “já chega que já ouvi”. Mas, se numa dessas mesas de jantar cheia de gente académica de nacionalidades e línguas diferentes, que se expressam num inglês nem sempre muito elaborado e se divertem a adivinhar de onde vêm as outras pelo seu sotaque, portanto, no domínio do cliché identitário mais penoso, estiver também uma compatriota da querida Leni, a coisa pode certamente azedar.


Diga-se de passagem, seja ou não relevante, que esta realizadora alemã, não a Leni mas a sua compatriota, teve um filme projectado no dia anterior que tinha expulso o académico novato da sala, numa cena em que duas adolescentes rebeldes alemãs lutam e uma delas pontapeia repetidamente a barriga da outra que estava no chão, ouvindo-se também repetidamente os sons abafados e uniformes, de timbres unívocos absolutamente falsos, mas não suficientemente falsos, lá está, dos pontapés da bruitage. Seja porque não bebeu o suficiente ou por qualquer outra ocorrência biográfica infeliz, esta realizadora alemã pode de repente, por causa da piada, começar a bufar para cima do académico novato, perdendo completamente as estribeiras no seu inglês carregado de fonética alemã, quase que o atingindo com os gafanhotos que lança do outro lado da mesa, ainda grande. Depois de brutalmente o interrogar se estava a querer ser irónico (é impressionante a quantidade de pessoas que confundem a ironia e o humor), grita:
A Leni era uma artista em busca do seu sonho!
Bem, o académico novato, apesar de novato e contra as expectativas legítimas do millieu onde se move, pode ter pêlo na venta e não gostar de se ficar perante tamanha coisa. Defender as suas piadas, mais do que os seus princípios, parece-lhe bom critério para uma política da convivência suficientemente saudável.
Pode sentir de repente, como nunca sentiu na vida, o nível do álcool descer de um momento para o outro no seu sangue. O afrontamento daquela mulher, também físico, a violência desencadeada por uma simples piada sobre a possibilidade de peixes fascistas, revelou-se um poderoso instrumento de desetilização. A irritação sobe em igual medida e os calores da retórica exaltada já fumegam por si acima. Do baixo da sua juventude e ignorância, o académico dá por si, já não a fazer humor mas a recalcitrar, a espigar-se de pêlo eriçado contra aquela mulherzona do outro lado da mesa. Credo! É isso que, pelo meio das suas bochechas avermelhadas, ela lhe chama, à Leni? Credo! “Em busca do seu sonho”? Àquela dança com os Nazis, àquele filme do Congresso de Nurenberga, àquela participação ansiosa e por demais zelosa, aquela cega e surda presunção de inocência posterior, chama esta de “sonho de artista”? Credo!
Já a violência descarrilada da discussão que se seguiu não tem muito que contar. Seria fastidioso e embaraçante descrever os pontos da confusão, as menções dos campos de concentração e extermínio, o inaudito dos mesmos, etc. Percebe-se assim como uma parte das novas gerações alemãs, incluindo realizadores, repele o peso do passado nacional alemão, que se recusam continuar a carregar. Mas não o fazem por ultrapassagem, porque o facto permanece inultrapassável, não é?, mas por rejeição, recalcamento, repulsa à simples menção do problema, que permanece actual e certamente não preocupação exclusiva dos alemães. No fim da conversa, que terminou quase aos gritos, num ambiente à volta de resto pacífico, ficou um silêncio de morte.


O académico recalcitrante não voltou a abrir a boca. O seu nível de alcoolemia tinha baixado tão drasticamente que ameaçava já as reservas duramente acumuladas ao longo dos anos. O seu embaraçoso silêncio não se estendeu naturalmente aos restantes convidas da mesa, que, por sugestão da realizadora, passados aqueles momentos desagradáveis, podiam agora deliciar-se com uma conversa decente sobre... trainspotting! Ao que parece, o dito transpotting é um hobby muito apreciado em Inglaterra (onde este triste episódio se desenrolou) e os ingleses fazem até, segundo a realizadora, excursões à Alemanha, onde os comboios são sempre rigorosamente pontuais. Ah, a alegria das nações, a sua saudável convivência! Nobres valores! Isso sim, dá que falar. Isso, pessoas que tiram nota dos horários dos comboios, comboios que chegam na hora precisa à estação determinada, comboios que independentemente do que levam não se atrasam, comboios que levam lá dentro pessoas, eventualmente algumas difíceis de acomodar, e mesmo assim não deixam ninguém insatisfeito por não chegarem a horas, comboios que podem até levar esses difíceis de acomodar em vagões de transporte de animais, para precisamente não perder tempo com arbítrios de locomoção individual e também para compressão de um maior número, tudo coisas que permitem que os comboios continuem a ser pontuais apesar do que se passa à sua volta, comboios que chegam a tempo, que divertidos que são, mesmo quando levam em vagões de animais pessoas e as entregam directamente ao poder evaporador dos fornos crematórios, milhões de pessoas, milhares de comboios que chegaram a tempo.


Felizmente, não consta que a paixão dos ingleses pelo cumprimento dos horários dos comboios tenha ido, até agora pelo menos, tão longe. Mas convém estar atento. Ainda assim, o mais impressionante é que esta conversa sobre a paixão da exactidão dos comboios tenha ocorrido a seguir à que envolvia os campos de concentração. O académico novato, no seu espanto silencioso e horrorizado, seria capaz de jurar que a nenhuma daquelas pessoas sentadas na mesa de bem jantar ocorreu a ligação entre os dois factos. Perante isto, sentiu-se de repente muito velho. De um desespero surdo com a idade do mundo. E foi-se deitar imediatamente, após ter ingerido a sobremesa.


Ao pé da letra #16 (António Guerreiro)

«A oposição entre forma e conteúdo legitima o pior

Burckhardt, nas suas “Considerações sobre a História Universal”, mostrou a impertinência da oposição civilização/barbárie para a análise histórica. Mais de um século depois, o seu esforço revela-se sem sucesso, e esta dicotomia segue o seu curso triunfante. Outro par ainda mais perene (pilar de uma metafísica) é o famigerado forma/conteúdo. Sob a sua caução, desenvolveram-se as estéticas dos regimes totalitários (sempre activas na repressão de todos os “formalismos”, sempre zelosas do “conteudismo”); sob a sua autoridade, esvaziou-se o discurso político.
Um programa de saneamento consistiria em invalidar qualquer raciocínio que opere com essa falsa oposição. Um dos efeitos seria o desmantelamento da chamada “indústria de conteúdos”, resultado supremo da operação manhosa que consiste em pôr de um lado o conteúdo e do outro a forma. A praga dessa indústria, baseada numa separação produtora da falsidade e do dogmatismo, acabou por invadir todos os “media”, incluindo o universo da edição livreira. O que é afinal uma “indústria de conteúdos”? É a expressão mais acabada do fascismo do entretenimento.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 20.9.2008, p. 47.

[Cito aqui integralmente a coluna «Ao pé da letra» de António Guerreiro porque me parece a coisa mais inteligente que se encontra na imprensa escrita, para o que contribui a sua brevidade. Como conheço bastantes pessoas que não lhes passa sequer pela cabeça comprar aquele saco de bugigangas e folhetos publicitários disfarçado de jornal, parece-me útil, até que o autor me peça para deixar de o fazer (ou o jornal me o impeça).]


«Certa aranha faz todas as manhãs na natureza e em qualquer lugar que a isso se preste uma teia admiravelmente regular. Depois da ingestão de um extracto de cogumelo alucinogénico que por argúcia lhe fizeram tomar – começa uma teia na qual a pouco e pouco as espiras já não se seguem umas às outras mas avançam de esguelha, e ainda mais quando a quantidade absorvida é mais considerável: uma teia de louca. As partes abatem-se, enrolam-se, Zygiella notata, de seu nome, não pára antes de ter obtido a dimensão habitual, mas tornada incapaz de seguir o seu plano, um plano que contudo não data de ontem, mas de há dezenas ou centenas de séculos, passando intacto e perfeito de mãe para filha, comete erros, reduplicações, além deixa buracos, ela, tão cuidadosa, e não repara.


As últimas espiras são um balbuciamento, uma vertigem, é como se tivesse tido um desvanecimento. Obra em ruína, falhada, humana. Aranha tão próxima agora de ti. Nada sobre a droga exprimiu mais exactamente, mais directamente, a perturbação dos encavalitamentos. Como uma irmã, observa as suas ruínas em fio. Mas que viu ela então, Zygiella?»

Henri Michaux,
Poteaux d'angle, Gallimard, Paris, 1980, pp. 65-66.

para a Margarida
, tradutora


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