Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O académico recalcitrante: Peixes fascistas!


Mesmo um académico novato, daqueles ainda não habituados às altas andanças da sapiência internacional, compreende rapidamente que, numa conferência que dura alguns dias, o momento alto é, sem dúvida, o beberete oferecido por uma qualquer editora de livros especializados. E não tanto pelos livros. Aqueles copinhos de vinho tinto ou branco, ou mesmo rosé nos casos mais extremos de míngua, contribuem sobremaneira para desanuviar o ambiente, tantas vezes demasiado solene entre pessoas que têm como defeito profissional, dificilmente evitável, é verdade, tomarem-se em grande conta. Nestas condições, um académico que deseje desabrochar, levado pelo doce embalo dos néctares engarrafados, pode sentir-se tentado a gracejar, conquistando a atenção alheia por uns breves segundos ou a promessa de simpatia de uma qualquer conferencista mais tímida. Ou mesmo, se for audaz, a explorar todas as cambiantes dos mal-entendidos em contexto internacional. Que, fica aqui a nota, não são assim tão poucos, em tempos de politicamente correcto anglo-saxónico. Este, surpreendentemente para um nativo dos países latinos, não só ainda sobrevive, como se tornou a norma implícita, a auto-censura mais insidiosa, e é sabido que mantém uma relação, no mínimo complicada, com o sentido de humor, a mais selvagem das extensões da inteligência.
Se por acaso este novato, trespassado pelo álcool ou apenas pelo desespero quotidiano, vulgo solidão, ouvir outros académicos, que estejam suficientemente perto para quem se possa intrometer sem se notado, começar a discutir, vá-se lá perceber porquê, o maravilhoso, horrível caso de Leni Riefenstahl, aquele, já um pouco tocado por não terem tomado em consideração todo o alcance das suas minúsculas objecções num anterior debate obscuro, poderá ser levado a afirmar:
Com a Leni Riefenstahl até os peixes eram fascistas!
Nada é mais triste que alguém que ri sozinho das suas próprias piadas. O encanto tétrico dos palhaços é somente o correspondente reverso disto. Ah, o riso e a morte, que ligações secretas! Claro que uma piada tem que possuir um contexto compreensivo. Peixes fascistas, mas que merda é essa? Nestas alturas, convém ter um parceiro, diferente em compleição, seja física ou intelectual, que dê, por contraste, saliência ao que acaba de ser dito, impedindo o vazio de devorar o novato. Um académico ancião, já gasto de anos e anos de arrastamento em alcatifas académicas por esse mundo fora, bondoso e tolerante com a ganância dos jovens lobos, à qual sorri com complacência e sobretudo pena, poderá ajudar, apesar do humor suportar muito mal, ou não suportar de todo, as notas de rodapé.


Poderá dizer, por exemplo, que o jovem inábil está somente a explorar à exaustão o que dizia Susan Sontag sobre as fotografias das tribos africanas por Leni Riefenstahl, que estas eram uma continuação da sua estética fascista. No documentário THE WONDERFUL, HORRIBLE LIFE OF LENI RIEFENSTAHL de Ray Müller (cujo título alemão é curiosamente «O poder das imagens: Leni Riefenstahl»), vemos como a pobre senhora, tão acossada por tanta gente que não queria esquecer, acabou os seus dias a fotografar peixinhos no fundo do mar, talvez por neles encontrar finalmente algo que não se prestasse à sua visão. Assim explicada, valha a verdade, a piada ainda tem menos piada.
Mas, como o pior pode sempre piorar, já dizia o Shakespeare, ao jantar, na continuação da alcoolização geral, a conversa pode rondar o mesmo assunto, com doutas opiniões sobre outros casos de cineastas nazis ainda piores. O académico novato poderá ser tentado, fazendo render o seu parco peixe, a repetir a sua piada, se necessário for várias vezes, até que alguém faça aquele assentimento gentil do “já chega que já ouvi”. Mas, se numa dessas mesas de jantar cheia de gente académica de nacionalidades e línguas diferentes, que se expressam num inglês nem sempre muito elaborado e se divertem a adivinhar de onde vêm as outras pelo seu sotaque, portanto, no domínio do cliché identitário mais penoso, estiver também uma compatriota da querida Leni, a coisa pode certamente azedar.


Diga-se de passagem, seja ou não relevante, que esta realizadora alemã, não a Leni mas a sua compatriota, teve um filme projectado no dia anterior que tinha expulso o académico novato da sala, numa cena em que duas adolescentes rebeldes alemãs lutam e uma delas pontapeia repetidamente a barriga da outra que estava no chão, ouvindo-se também repetidamente os sons abafados e uniformes, de timbres unívocos absolutamente falsos, mas não suficientemente falsos, lá está, dos pontapés da bruitage. Seja porque não bebeu o suficiente ou por qualquer outra ocorrência biográfica infeliz, esta realizadora alemã pode de repente, por causa da piada, começar a bufar para cima do académico novato, perdendo completamente as estribeiras no seu inglês carregado de fonética alemã, quase que o atingindo com os gafanhotos que lança do outro lado da mesa, ainda grande. Depois de brutalmente o interrogar se estava a querer ser irónico (é impressionante a quantidade de pessoas que confundem a ironia e o humor), grita:
A Leni era uma artista em busca do seu sonho!
Bem, o académico novato, apesar de novato e contra as expectativas legítimas do millieu onde se move, pode ter pêlo na venta e não gostar de se ficar perante tamanha coisa. Defender as suas piadas, mais do que os seus princípios, parece-lhe bom critério para uma política da convivência suficientemente saudável.
Pode sentir de repente, como nunca sentiu na vida, o nível do álcool descer de um momento para o outro no seu sangue. O afrontamento daquela mulher, também físico, a violência desencadeada por uma simples piada sobre a possibilidade de peixes fascistas, revelou-se um poderoso instrumento de desetilização. A irritação sobe em igual medida e os calores da retórica exaltada já fumegam por si acima. Do baixo da sua juventude e ignorância, o académico dá por si, já não a fazer humor mas a recalcitrar, a espigar-se de pêlo eriçado contra aquela mulherzona do outro lado da mesa. Credo! É isso que, pelo meio das suas bochechas avermelhadas, ela lhe chama, à Leni? Credo! “Em busca do seu sonho”? Àquela dança com os Nazis, àquele filme do Congresso de Nurenberga, àquela participação ansiosa e por demais zelosa, aquela cega e surda presunção de inocência posterior, chama esta de “sonho de artista”? Credo!
Já a violência descarrilada da discussão que se seguiu não tem muito que contar. Seria fastidioso e embaraçante descrever os pontos da confusão, as menções dos campos de concentração e extermínio, o inaudito dos mesmos, etc. Percebe-se assim como uma parte das novas gerações alemãs, incluindo realizadores, repele o peso do passado nacional alemão, que se recusam continuar a carregar. Mas não o fazem por ultrapassagem, porque o facto permanece inultrapassável, não é?, mas por rejeição, recalcamento, repulsa à simples menção do problema, que permanece actual e certamente não preocupação exclusiva dos alemães. No fim da conversa, que terminou quase aos gritos, num ambiente à volta de resto pacífico, ficou um silêncio de morte.


O académico recalcitrante não voltou a abrir a boca. O seu nível de alcoolemia tinha baixado tão drasticamente que ameaçava já as reservas duramente acumuladas ao longo dos anos. O seu embaraçoso silêncio não se estendeu naturalmente aos restantes convidas da mesa, que, por sugestão da realizadora, passados aqueles momentos desagradáveis, podiam agora deliciar-se com uma conversa decente sobre... trainspotting! Ao que parece, o dito transpotting é um hobby muito apreciado em Inglaterra (onde este triste episódio se desenrolou) e os ingleses fazem até, segundo a realizadora, excursões à Alemanha, onde os comboios são sempre rigorosamente pontuais. Ah, a alegria das nações, a sua saudável convivência! Nobres valores! Isso sim, dá que falar. Isso, pessoas que tiram nota dos horários dos comboios, comboios que chegam na hora precisa à estação determinada, comboios que independentemente do que levam não se atrasam, comboios que levam lá dentro pessoas, eventualmente algumas difíceis de acomodar, e mesmo assim não deixam ninguém insatisfeito por não chegarem a horas, comboios que podem até levar esses difíceis de acomodar em vagões de transporte de animais, para precisamente não perder tempo com arbítrios de locomoção individual e também para compressão de um maior número, tudo coisas que permitem que os comboios continuem a ser pontuais apesar do que se passa à sua volta, comboios que chegam a tempo, que divertidos que são, mesmo quando levam em vagões de animais pessoas e as entregam directamente ao poder evaporador dos fornos crematórios, milhões de pessoas, milhares de comboios que chegaram a tempo.


Felizmente, não consta que a paixão dos ingleses pelo cumprimento dos horários dos comboios tenha ido, até agora pelo menos, tão longe. Mas convém estar atento. Ainda assim, o mais impressionante é que esta conversa sobre a paixão da exactidão dos comboios tenha ocorrido a seguir à que envolvia os campos de concentração. O académico novato, no seu espanto silencioso e horrorizado, seria capaz de jurar que a nenhuma daquelas pessoas sentadas na mesa de bem jantar ocorreu a ligação entre os dois factos. Perante isto, sentiu-se de repente muito velho. De um desespero surdo com a idade do mundo. E foi-se deitar imediatamente, após ter ingerido a sobremesa.


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