Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Os animais #1



Defronte a certos filmes ocorre-nos perguntar: como "pensam" as sociedades contemporâneas? Quer dizer, como trabalham elas os problemas que as atravessam, como os enunciam, sob que formas discursivas eles aparecem, qual a natureza dos objectos que essa reflexão investe, etc.? E como se processa esse trabalho árduo, provavelmente apenas parcialmente consciente, de fazer com que estas difíceis abordagens, por vezes profundos paradoxos da existência contemporânea, sejam eles económicos, políticos ou outros, habitem o interior de objectos de entretenimento, dramáticos ou cómicos? Se aceitarmos a ligeira mas importante salvaguarda de que nada disto tem que ver com a chamada "ideologia", podemos talvez observar um filme como exemplo de compreensão.
Tomemos portanto um "inocente" desenho animado, devo confessar profundamente sintomático, e, além do mais, divertidíssimo – Madagáscar da Dreamworks –, que, aliás, até as crianças adoram. Será que devemos ler a temática subjacente apenas como um contexto narrativo como outro qualquer, sem implicações que extrapolem do filme, ou seja, como uma camada de sentido humorística apenas, em filmes que são conhecidos por terem várias?
Resumamos o enredo: alguns animais (mais precisamente, uma zebra, um leão, um hipopótamo e uma girafa, bem como um grupo de pinguins) de um zoo nova-iorquino, nascidos em cativeiro, acabam por ser devolvidos à natureza [the wild], uns contrariados e outros satisfeitos, devido aos protestos de grupos de amigos dos animais [reparai em seguida na deliciosa ironia!]; na selva de Madagáscar descobrem algumas das difíceis inconveniências da dita natureza, entre as quais, para o único animal carnívoro do grupo – o leão –, a de que é necessário caçar para comer, ser selvagem para caçar, e que “ser selvagem” o faz não distinguir entre amigos e não-amigos; a generalidade dos animais bondosos do filme, inclusive os nativos simpáticos da ilha – os lemures – são vegetarianos, salvo erro, se exceptuarmos os pinguins [veremos que peixe, neste filme, não é carne! nem os peixes “vivem”, no sentido de terem emoções ou serem providos de fala!]; logo, estes animais vegetarianos não podem deixar de expressar o seu horror perante a selvajaria daquele leão, aparentemente tão amigável, que não consegue seguir apenas um nutritivo dietético regime de algas, motivado pela súbita deslocalização; é ver o espanto da zebra perante os sonhos do seu amigo leão, que envolvem, acordado ou a dormir, dentadas no seu monocromático rabo; para mais, há o contraponto das fossas, espécie de horrorosas hienas que cumprem o papel de bad guys, que vivem para comer os lemures bon vivants, visivelmente socialmente organizados; todo o filme se enreda à volta deste paradoxo carnívoro e da luta, impregnada de má-consciência, do leão com a sua instintiva fome; a resolução da narrativa, depois de uma conversão à prioridade da amizade sobre a fome, é uma escapatória gritante, pois ao leão é dado a provar sushi, ou seja, peixe “trabalhado” (mesmo que cru), e ele aprova, garantido que não haverá mais confusões, pelo menos durante a viagem de regresso ao zoo, para onde voltam por o mais importante ser mesmo “estarem juntos”.

Bom, deixemos de lado, porque não aqui estritamente necessário, o questionar da própria antropomorfização dos animais. Limitamo-nos somente a constatar a sua, muito útil para a construção do filme, parcialidade, já que deixa de fora, na atribuição de capacidades na aparência exclusivamente humanas, como a linguagem, os – também simpáticos, porque não? – peixinhos [então e O pequeno Nemo, etc.?]. Mas é evidente que toda a articulação da oposição entre natureza e sociedade, perante a qual até os próprios animais são agora confrontados, é feita na assunção desta dimensão problemática da visibilidade da alimentação. Na natureza, segundo o filme, não existem as facilidades da abstracção do carácter vivo e expressivo da comida, e é na sociedade que as invisibilidades do processamento da comida nos permitem manter uma boa consciência. Estes animais superiores, no caso mamíferos, estão agora aparentemente tão próximos de nós humanos [será que se comem correntemente macacos em certas culturas? e porque não?] que caem objectivamente na alçada, quiçá inesgotável, da nossa responsabilidade política. É hoje literalmente impossível que a extinção de uma espécie ou um desastre natural não recaia sobre essa mesma responsabilidade humana, embora sempre tenham existido extinções e desastres naturais. A confusão sobre a amplitude dos efeitos da acção humana no ambiente do planeta faz com que tudo aí recaia. Focas-bebés não podem morrer de fome na Antáctica devido a causas naturais como fenómenos climatéricos anormais, simplesmente porque estes são agora indiscerníveis da acção humana. O mundo em toda a sua extensão, em breve o universo, torna-se responsabilidade humana. Assumimos as funções de um Deus omnipotente, talvez levados no entusiasmo de uma ciência quase omnisciente. Nem um minúsculo mineral se deixará extinguir, por outro lado, inúmeras novas "formas de vida" serão criadas.
Creio ser simplesmente cegueira não associar estes fenómenos culturais, políticos e económicos, ambientais, ao enorme sintoma que é o crescimento das alimentações alternativas – macrobiótica, vegetariana, etc. –, que se massificam, dispensando precisamente e prioritariamente a carne, movidas por uma mal explicada má-consciência perante o sacrifício da vida animal. As mesmas mãos que foram dispensadas de sacrificar os animais para comer, recusam agora sequer colhê-los das embalagens de plástico nos supermercados, enquanto se atarefam a afagá-los como animais de estimação. Eis outro elemento a juntar a esta festa biopolítica: a crescente emocionalidade com que são estabelecidas as relações quase familiares com os animais de estimação, em particular desse conjunto de animais privilegiados pela história da civilização humana – cães, gatos – cuja existência seria hoje simplesmente inconcebível sem a presença e acção humana, tal como a maior parte dos animais sujeitos da pecuária. Paradoxos fascinantes para os quais, creio, não há hoje soluções, nem será talvez de soluções que precisaremos, mas que parecem depender de um profundo repensar de uma concepção da “natureza”, que se encontra totalmente desadequada.
O curioso, e talvez ao mesmo tempo saudável, é que seja perante um desenho animado industrial que, provavelmente mais até do que em filmes sérios que nos mostrem o verdadeiro espectáculo do processamento industrial da carne, nos vem a certeza de que esta coisa de sermos carnívoros não pode durar muito tempo. É simplesmente um paradoxo gritante que se tornará insuportável. Mundo novo dos vegetais e afins macrobióticos que nos espera! Talvez então tenhamos o cultivo e comércio clandestino de vacas como o da papoila ou da folha de coca nos paises pobres com climas adequados, como a League of gentleman – uma série humorística da BBC – antecipava num episódio, motivado certamente pela crise das vacas loucas, em que os elementos mais nobres de uma povoação se dedicavam ao tráfico altamente secreto e lucrativo de carne de vaca, iguaria tornada rara!

TPC: (Re)ler o texto de Serge Daney sobre Bazin e os animais - «L'écran du fantasme», La rampe. Cahier critique 1970-1982, Cahiers du cinéma/Gallimard, Paris, 1996, p. 36-47.

Antonioni / Pavese



Que filme tão triste, de uma tristeza tão melancólica, de uma melancolia não propriamente angustiada mas seca, melancolia à falta de melhor palavra para a sensação do que se encontra irremediavelmente quebrado, para essa melancolia irreparável de Pavese, de uma dor “deste mundo!” quebrado em cada pessoa (como grita Clelia – a belíssima Eleonora Rossi Drago – neste último frame) e, em particular, nas mulheres, não propriamente uma dor incomunicável mas inconsolável, neste pouco conhecido e nada menor Antonioni.



Le amiche (1955) de Michelangelo Antonioni, adaptação de «Tre donne» de Cesare Pavese, cópia VHS disponível no Instituto Italiano de Cultura, Lisboa

Radicalidades

« O assunto principal do seminário [A poesia civil], revela [Nicole Brenez], "é o de mostrar a necessidade de abandonar, definitivamente, a distinção entre a vanguarda política e a vanguarda estética: cada uma das obras escolhidas demonstra como se articula a radicalidade política com a radicalidade formal".» (Óscar Faria, Público)

Se quisermos conservar as difíceis (necessárias?) noções de “vanguarda” e “radicalidade”, teremos de afirmar, ao contrário de Nicole Brenez, que não existe nenhuma relação ou, se existe, se trata mesmo de uma relação inversamente proporcional, entre vanguarda ou radicalidade política e estetico-formal. Talvez fosse necessária uma enumeração de exemplos. Pensarei neles. Como não estive presente nas sessões do seminário, não posso averiguar dos escolhidos, mas suspeito que o cinema estará completamente cheio de incompatibilidades entre as radicalidades políticas expressas pelas formas do discurso e as expressas pela materialidade própria do cinema. O que, quando se manifesta de forma demasiado marcante, acaba por destruir os filmes. Lembro, assim de repente, a maioria gritante do cinema “de esquerda” dos anos 60 e 70 ou, talvez de forma menos evidente mas mais produtiva, os filmes que procuram abordar o genocídio ou o extermínio. Talvez a radicalidade política se dê no cinema de uma maneira tão imanente à sua composição que, na distância criada, seja quase impossível discernir os enunciados de uma qualquer radicalidade política discursiva, como se o cinema criasse a sua própria política (tipo de relação entre corpos, hierarquia de matérias, etc., e, se calhar, mesmo o seu direito) e esta fosse quase incompreensível à letra da política comum ou ultrapassasse a intepretação expressa pelo realizador (vide as leituras humanistas em e sobre S-21, la machine de mort Khmère rouge de Rithy Panh).
Vice-versa, inúmeras expressões discursivas evidentes dentro dos filmes não encontrariam nos próprios manifestações materiais da sua radicalidade. É certo que haverá excepções gritantes que confirmarão esta regra em forma de problema, mas estas, no entanto, certamente não se darão de modo totalmente evidente como políticas e estetico-formais. Isto não devido a uma qualquer incompatibilidade ou diferença irredutível, mas sim devido a uma distância tal – uma extensão – dentro da expressão propriamente material das duas radicalidades que torna quase incomportável a sua conjunção compreensível. A essa extensão incomportável tem de se chamar ambiguidade. Creio que a afirmação de Nicole Brenez vai no sentido preciso da inversão disto, quer dizer, no sentido de uma desambiguação. Optando por outra direcção, seria interessante pensar (o que terá talvez já sido feito), entre outras coisas, a complexa figura e tipologia dos (excelentes) secundários do clássico americano, como exemplo de uma manifestação complexa dessa política que o cinema constitui. É verdade que a natureza destas relações é um problema particularmente pantanoso, não apenas e sobretudo para um cinema chamado de político, ou para as preocupações cinematográficas de expressão de uma política, mas também para as demais expressões do cinema, em particular, as ficcionais. Mas é um problema que vale a pena pensar, em especial, sob o signo dessa distância que é a quebra da evidência dos gestos políticos do cinema.

Ler cinema

Programação
Ler cinema... em voz alta
Videoteca Municipal de Lisboa
Largo do Cálvario, 2


«(...) a leitura surge como exposição de uma relação. A programação irá relacionar imagens distantes à partida, como uma enorme montagem de que os filmes são a unidade básica. O objectivo final será levar os espectadores a construir as suas próprias leituras, as suas próprias programações e aproximações de filmes aparentemente distantes (...). Para iniciar o novo ciclo propõe-se uma obra que talvez torne mais claro este conceito de programação: O NOSSO CASO de Regina Guimarães e Saguenail. É uma série de 6 episódios onde se usam, (des)montam, estudam, relacionam imagens do cinema português apresentando uma proposta de leitura do chamado CINEMA NOVO. (...) Durante uma semana por mês, de Janeiro a Junho de 2006, serão exibidos os filmes que Regina Guimarães e Saguenail trabalham em cada episódio, e no sábado que fecha a semana será exibido e discutido o episódio correspondente aos filmes vistos durante a semana, numa leitura partilhada e feita em voz alta. (...)

Quinta 19
(15h00) A Divina Comédia (Manoel de Oliveira) 140'
(18h00) O dia do desespero (Manoel de Oliveira) 75'
(21h30) Non ou a vã glória de mandar (Manoel de Oliveira) 108'

Sexta 20
(15h00) Viagem ao Princípio do Mundo (Manoel de Oliveira) 91'
(18h00) Inquietude (Manoel de Oliveira) 112'
(21h30) Vale Abraão (Manoel de Oliveira) 187'

Sábado 21
(16h00) O NOSSO CASO Episódio I: a Génese 63'
Conversa com Regina Guimarães, Saguenail, Manoel de Oliveira e José Mattos-Cruz.

Para saber como apresentar uma LEITURA e obter mais informações consulte a página http://www.videotecalisboa.org/ ou escreva para lercinema@videotecalisboa.org »

Deleuze: a arte entre crítica e clínica




Deleuze: a arte entre crítica e clínica
Terça, 24 de Janeiro
Colóquio no Instituto Franco-Português, Lisboa

Programa
Deleuze: d'un concept à l'autre - David Lapoujade (10h)

"Partir, evadir-se, traçar uma linha... "... - Sousa Dias (10h45)
O Cinema entre Crítica e Clínica - Edmundo Cordeiro (11h30)
Lógos y Diferencia: el Modelo Artístico - José Luís Pardo (12h15)
Literatura e Loucura... - Peter Pál Pelbart (15h)
A Literatura Impossível: Bene, Melville e Beckett - Catarina Pombo (15h45)
A Realidade Política da Expressão... - Eduardo Pellejero (16h30)
Kant avec Masoch - François Zourabichvili (17h15)

19h Projecção de L'abécédaire de Gilles Deleuze (extractos s/ arte)
22h Diogo Dória lê Deleuze, acompanhado pela manipulação sonora de Bejamin Brejon (Mécanosphère) e Miguel Cardoso (Soopa)

Primeira afirmação


« PRIMEIRA AFIRMAÇÃO. Ainda não vimos os filmes mais importantes do século XX. Os filmes alemães dos campos de concentração, os filmes soviéticos dos gulags (Soljenitsine não achava que tivessem algumas vez sido feitos, mas isso parece pouco provável), os filmes científicos da divisão do átomo, os filmes dos trabalhadores que, precisamente no final do século XIX em Chicago, nunca chegaram a sair da fábrica onde trabalhavam, para serem cortados aos pedaços, como animais num matadouro. (...)»

Nicole Brenez, «The Vogel Call», Rouge, n.º 3, 2004

A poesia civil



Programação
A Poesia Civil
Sobre algumas formas contemporâneas do cinema político

Convite a Nicole Brenez
Inserido na programação de cinema/vídeo de Em contra-mão
de Ricardo Matos Cabo
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto

Sábado – 21 de Janeiro
Sessões comentadas por Nicole Brenez, docente em Paris I – Sorbonne, Programadora de Cinema Experimental, Cinema Político e Militante na Cinemateca Francesa

17:30
O Debate Visual
Embargo
de Mounir Fatmi, Marrocos, vídeo, 7’30’’
“Como vive um corpo sem alimento? Embargo é um vídeo de uma autópsia, uma fibroscopia que atravessa o corpo desde o cérebro até ao ânus, mostrando que o embargo é uma verdadeira impressão digital, que o embargo é um serial killer. De facto a comunidade internacional não vê o desgaste que um embargo pode causar numa população. Vinte países sofreram ou sofrem ainda diferentes tipos de embargo: de Angola a Cuba, do Chipre ao Sudão, do Vietname ao Iémen, etc… Hoje no Iraque uma criança com menos de cinco anos morre a cada oito minutos de uma doença ou de mal-nutrição devido à falta de alimento e de medicamentos. Depois de tantos anos os povos suportam esta “fatwa” internacional imposta em nome da condenação de regimes que nem sequer escolheram. Uma medida que não fez mais do que reforçar o poder dos ditadores que controlam a distribuição dos víveres.” (Mounir Fatmi)

Untitled Part 3b: (as if) beauty never ends…
de Jayce Salloum, Líbano – Canadá, 2002, vídeo, 11’22’’
“Abdel Majid Fadl Ali Hassam, refugiado desde 1948 no campo libanês de Bourg El Barajneh, leva às ruínas da sua casa na Palestina, um eco elegíaco, franco, visceral e metafórico sobre a desapossessão dos Palestinianos”. (Jayce Salloum)

Chic Point
de Sharif Waked, Israel – Palestina, 2003, vídeo, 2004, 7’
A elegância suprema: assegurarmo-nos dos recursos do espírito humano.

Border
de Laura Waddington, França – Reino Unido, vídeo, 2004, 30’
Para não esquecer Sangatte, e ao mesmo tempo todos os campos, os refugiados, os clandestinos, os emigrados económicos e políticos.

Ça será beau. Fom Beyrouth with Love
de Waël Noureddine, França – Líbano, 2005, Super 16 / video, 30’
À propôs de Nice 2006, mas na Beirute de hoje, logo 75 vezes mais violenta que a calma Nice da luta de classes de 1930.

21:30
Robert Fenz e o materialismo histórico
Aluno de Peter Hutton, operador de câmara de Chantal Akerman, Robert Fenz reinventa o ensaio sob a forma do poema descritivo inspirado pelo free-jazz e pela arquitectura de Óscar Niemeyer. Na tradição brilhante de James Agee, Rudy Burckhardt e Peter Hutton, Fenz documenta o real, privilegiando o que releva do vestígio histórico, no seio de um presente tornado epifania através do seu trabalho sobre as texturas da imagem.

Vertical Air
de Robert Fenz, EUA, 1996, 16mm, 28’
Uma colaboração fílmica e musical que cria um testemunho sensorial sobre o ideal democrático através da exploração das relações distintas entre o som e a imagem, recorrendo a imagens icónicas Americanas, à abstracção gráfica e a uma peça poderosa composta por Wadada Leo Smith.

Meditations on Revolution, Part V: Foreign City
de Robert Fenz, USA, USA, 2003, 16mm, 32’
“Foreign City estuda Nova Iorque como local de imigração e deslocação. É uma meditação sobre a revolução do espaço urbano. As suas imagens abstractas e sons reais, entram e saem de sincronização, criando uma paisagem mágica e estrangeira. A reconstrução de Nova Iorque através de um mapa imaginário da cidade construído a partir da sensação. O filme tem uma qualidade anónima, intemporal que nos é dada pela voz do artista e músico de jazz Marion Brown.”

O diferimento que salva

Um homem atravessa um pátio quando é atingido pelas costas por um disparo. Cai para a frente, sobre os joelhos, impelido pelos disparos que se seguem, sem hesitações, de um atirador descarado. Acaba deitado de barriga sobre o cimento daquele pátio esconso. Trata-se apenas do terceiro homem assassinado. Estamos, portanto, bem no início do filme.



Mas logo à primeira visão, um detalhe subitamente me distrai, desperta a minha atenção por assim dizer para fora, para dentro, não sei, da brutalidade repetida do filme, tão enigmática na sua secura serial, se bem que cheia de humor. Talvez que este homem, tal como os outros, reduzido que foi a esta súbita e desastrosa aparição, não quisesse mesmo morrer. A câmara, bem próxima, como que para captar o seu adeus, rodeia-o, antecipando os passos do assassino que completa, inutilmente, a sua acção. Enquanto recebe mais balas, inúmeras, pelas costas, que dilaceram o seu bonito kispo cinzento azulado, e se encaminha assim irremediavelmente para a morte, convulsiona-se com o impacto brutal daquelas. Se olharmos com atenção, trata-se sem dúvida de um gesto bonito, talvez não apenas de um gesto, mas de um agregado de pequenos gestos, estas convulsões daquele homem moribundo. Mas desde logo, algo de provavelmente inábil se introduz e quebra aquela sincronia esperada, apesar de tudo, meramente material. Um braço a destempo, demorou a mexer-se, a sacudir-se, e vai, apenas alguns frames mais tarde, pousar na fixidez do sem alma, mas com a verosimilhança desde logo estragada.



De referir que toda a representação das convulsões ou repelões causados pelos violentos impactos é extremamente conseguida, em particular, pelo carácter rápido e consolidado, se bem que variado, das sacudidelas. Os impactos seguintes já manifestarão uma sincronia progressivamente mais exacta entre matérias agora mais chegadas, porque ambas destituídas de vida, o inorgânico do metal da bala e o orgânico daquele corpo doravante inanimado.



Pensamos: que difícil deve ser representar uma cena semelhante, aquele encontro. Morrer, de cara virada para o chão, manifestando completamente o impacto das balas, tendo apenas como material um corpo progressivamente sem vida, sem outras possibilidades de expressão que não as dos rombos repelões de torso e ancas. Aquele actor, porventura na sua tão bela inabilidade, deu-nos a esplêndida imagem de uma vida que se esvai, não apenas enquanto “saco de batatas” que se convulsiona, mas também, e sobretudo, no diferimento que introduziu sucessivamente entre o receber a bala nas costas, o repelão do corpo e o mexer do braço. Aqui sim, sente-se a vida esvair, enquanto que, na perfeita adequação entre corpo seco e impacto, havia uma morte demasiado certa, já dada, em suma, inacreditável de abstracta. Talvez a própria ficção precise cada vez menos das verosimilhanças de uma suposta realidade, e mais destes pequenos gestos inacreditáveis, verdadeiros de tão falsos. Dirão que é um detalhe, que o resto do filme é porventura um exemplo de esquematismo sem falha, mas um detalhe sempre alegra, num cinema que se permite falhar, que faz entrar a luz, mesmo na série das mortes. Talvez não seja de somenos, talvez seja preciso, encontrar, a cada momento, em todos os passos, mesmo que subliminar, mesmo que inconsciente, sempre que necessário, este detalhe, diferimento que salva. Em cada uma das cenas essa falha mínima, invisível, onde se manifesta uma vida que teima, e a grandeza de um filme seria tão só a soma dessas falhas, das vidas que teimam, como esta em Elephant (1989) de Alan Clarke.

Por outro lado...

« Os historiadores do cinema registam como uma novidade desconcertante a sequência de Monika (1952), na qual a protagonista Harriet Andersson coloca subitamente o olhar fixo na objectiva por alguns segundos (“que pela primeira vez na história do cinema”, comentará retrospectivamente o realizador, Ingmar Bergman, “se estabelece um contacto despudorado e directo com o espectador”). Desde então, a pornografia tornou seguramente banal o procedimento: as pornostars, no próprio acto de desempenharem as suas carícias mais íntimas, olham agora decididamente a objectiva, mostrando interessar-se mais no espectador do que nos seus partners. » (cf. Agamben sobre a pornografia II)

No final do mesmo filme, também a maltratada personagem masculina, o parceiro de Monika, parece, de criança nos braços, visar igualmente o espectador, ou talvez, o infinito através do espectador, do outro lado do espelho. O procedimento de realização das duas cenas é, aliás, rigorosamente igual: reenquadramento, excluindo outras personagens do quadro (o amante de Monika e, aqui, o bebé), aproximando-se progressivamente (de forma mais demorada no caso de Monika) até ao grande plano, que escurece absolutamente em redor da face. Sem outras ocorrências no filme, este procedimento difere, na verdade, apenas devido à presença do espelho, que medeia o olhar e o estende ao infinito, e também, em especial, com a mistura de imagens das memórias do verão com Monika.
Tendo em conta o destino grandioso daquele outro, feminino, “contacto despudorado e directo com o espectador”, que destino poderíamos conceber para estoutro olhar masculino, tão magoado, que fita um infinito nublado de memórias através de um espelho?

[reparo agora, passado precisamente um ano, que os dias felizes (cf. Segunda e Terça-feira, Janeiro 10 e 11 ), pela mão de C., tinham já escrito sobre e publicado um frame do olhar de Monika, bem como citado Godard e o próprio Bergman sobre esse estranho olhar, em três bonitos posts.]

Aborrecido


« Acho que a vida dos dois jovens que foram os assassinos é também apresentada de uma forma mundana [mundane]. Tentámos mostrar a violência de uma forma mundana porque acho que... sempre que pensávamos em violência, sempre que pensávamos em tiros e pessoas a ser atingidas, pensámos nisso como sendo algo... aborrecido [boring]... e não excitante. Não como num filme, mas como o que pensámos que talvez tenha sido. Que foi algo de... mais feio que num filme. »

Gus Van Sant, «Entrevista com Gus Van Sant», in Elephant (DVD), Atalanta Filmes, 2004

A propósito de Mozart: um filme de, precisamente, 1965


A minha vontade era recuperar um artigo de João Bénard da Costa, publicado no Independente em meados dos anos 90 (se não me engana a memória), que sempre exemplificou para mim uma espécie de transmissão feliz. Trata-se de um texto, sobre o filme Le Bonheur de Agnès Varda, que li muito antes de ver o próprio filme. Entretanto, não sou grande arquivista, a Hemeroteca está fechada para obras e o Centro de Documentação da Cinemateca não possui este artigo, por isso tive de encontrar alternativa: a Folha da Cinemateca do filme, igualmente escrita por João Bénard da Costa, aborda as mesmas sensações que perduraram na minha memória:

« Le Bonheur (A Felicidade) / 1965: Agnès Varda

(...) Sobre o Quinteto para Clarinete (K. 581) que se ouve durante quase todo o filme, até à morte (ou à desaparição) de Thérèse, escreveu Jean-Victor Hocquard: “É uma obra em que não há dualismo entre o instrumento solista e o acompanhamento. Apenas uma rivalidade [...]. A perfeição desta obra é a de um aboutissement, de um parachévement. Tudo o que até aí, na música de Mozart, era apelo nostálgico, pura intensidade do canto, é levado ao cúmulo. Quão terrível deve ter sido, nos anos futuros, a queda de Mozart na noite mais escura, para que tudo isto se tivesse perdido”.

No final do filme, não ouvimos mais esse Quinteto, mas outro (K. 614 {ou o Adágio e Fuga em Dó menor, K. 546?}) em que o que surge é a “tensão trágica que implica a luta contra o tempo nascido da oposição entre uma matéria musical, que só existe no presente, e a forma dela que só pode ser uma para além do tempo, no seio de um juízo imóvel e silêncio”.

Na história do cinema, não conheço muitos exemplos de uma tão singular adequação da música ao filme, como o é a da música de Mozart a Le Bonheur (por isso mesmo, em tempos, escolhi Le Bonheur para um ciclo dedicado ao cinema musical).

Porque ao contrário do que supõe muito imbecil que continua a associar Mozart e alegria, Mozart não é aqui chamado para reforçar o lado cliché da fotografia bilhete-postal, dos girassóis, das margaridas, das rosas, das maçãs ou dos pic-nics. O que essa música nos diz – duzentos anos antes de Varda – é que a felicidade, ao contrário do que pensavam os protagonistas, não é natural nem é provavelmente deste mundo e que o apelo a ela é o apelo mais terrível. Por isso Bruno Walter dizia aos músicos que era preciso que Mozart soasse tão alegre, tão alegre, que desse vontade de chorar. Entre os dois quintetos – entre 1789 e 1791 – Mozart descobriu quase tudo o que está por trás deste filme.

Aparentemente, François tem toda a razão e a sua moral ou amoral – inocente, terrivelmente inocente –, tem toda a razão lógica. Não roubou nada a ninguém. Porque não acrescentar uma felicidade a outra felicidade para uma felicidade ainda maior? Nem Émilie, nem Thérèse o contradizem. Ambas parecem vencidas, nas reservas que põem, pela felicidade, pela alegria dele. Só que há uma boca de incêndio ao pé dessa naturalidade. O que provavelmente Thérèse realizou, na prodigiosa elipse da sua última sesta, é que tudo era música, mais nada seria igual. E não aguentou tanta felicidade e tanta infelicidade. Por isso se matou. Talvez, nesse momento, ela tenha ouvido Mozart (Resnais dizia sentir a morte todo o tempo, porque todo o tempo ouvia Mozart).

E se o Quinteto para Clarinete se consegue casar com as duas felicidades de François, não há música possível para a felicidade a três. E se a felicidade do final, outonal e sem flores. Só não é a felicidade da aliança fraterna entre instrumentos solistas e os instrumentos que o acompanham, mas a felicidade de quem quer persistir nela, sabendo-a já irrealizável. Depois de comerem a maçã proibida, Adão e Eva descobriram que estavam nus e tiveram medo. Perderam o paraíso. Em Le Bonheur, François e Émilie recusam-se à nudez, ao medo e à ideia de um paraíso perdido. Mas o pic-nic final é o negativo do pic-nic inicial. E a felicidade surge, então, como a solução mais artificial. O círculo da harmonia rompeu-se. E nenhum dele, mortos ou vivos, saberá jamais explicar porquê. E o que mais perturba neste filme não é a sua falada imoralidade.

É exactamente a implacável demonstração que a moral da imoralidade é mais terrível do que a moral da moralidade. E que não devia ser assim. E que é assim.

Contra tudo o que vemos, tudo o que ouvimos (Mozart). Contra tudo o que vemos, tudo o que não vemos (a elipse da morte de Thérèse). E Mozart e esse buraco negro (a morte) são mais forte. Muito mais fortes.

Em 1965, como em 1996, Agnès Varda fez-me perceber, menos e mais, o que era le Malheur.

Com este filme, chamado Le Bonheur. »

(João Bénard da Costa, «Le bonheur», Folhas da Cinemateca, Pasta 54, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1996, pp. 453-454)

Le Bonheur (A Felicidade) Realizado por Agnès Varda; França 1964, 35mm, cor, 82'; com Jean-Claude Drouot, Claire Drouot, Marie-France Boyer

Uma pequena entrevista a Varda – «Bonheur féroce» – aquando da recente reposição em sala em Paris deste filme.

Museu


«(...) O uso é sempre relação como um inapropriável, refere-se às coisas na medida em que estas não podem tornar-se objecto de posse. Mas, deste modo, o uso põe igualmente a nu a verdadeira natureza da propriedade, que não é senão o dispositivo que desloca o livre uso dos homens para uma esfera separada na qual é convertido em direito. Se hoje os consumidores na sociedade de massas são infelizes, não é apenas porque consomem objectos que incorporaram em si a sua desusabilidade, mas também e sobretudo porque crêem exercer sobre eles o seu direito de propriedade, porque tornaram-se incapazes de os profanar.

A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no Museu. A museificação do mundo é hoje um facto realizado. Uma a seguir à outra, progressivamente, as potências espirituais que definiam a vida dos homens – a arte, a religião, a filosofia, a ideia de natureza, e até a política – retiraram-se uma a uma docilmente para o Museu. Museu não designa aqui um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere aquilo que em tempos foi sentido como verdadeiro e decisivo, e agora já não. O Museu pode coincidir, neste sentido, com uma cidade inteira (Évora, Veneza, declaradas por isso património da humanidade), com uma região (declarada parque ou oásis natural) e até com um grupo de indivíduos (enquanto representando uma forma de vida desaparecida). Mas, mais em geral, hoje tudo se pode tornar Museu, porque este termo nomeia simplesmente a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de experienciar.
Por isto, com o Museu, a analogia entre capitalismo e religião torna-se evidente. O Museu ocupa exactamente o mesmo espaço e função que eram em tempos reservados ao Templo enquanto lugar do sacrifício. Aos fiéis no Templo – ou aos peregrinos que percorriam a terra de Templo em Templo, de santuário em santuário – correspondem hoje os turistas, que viajam sem paz num mundo alienado em Museu. Mas enquanto os fiéis e os peregrinos participavam afinal num sacrifício que, separando a vítima na esfera sagrada, restabelecia as justas relações entre o divino e o humano, os turistas celebram na sua pessoa um ato sacrificial que consiste na angustiante experiência da destruição de todo o uso possível. Se os cristãos eram “peregrinos”, isto é, estrangeiros sobre a terra, porque sabiam ter no céu a sua pátria, os adeptos do novo culto capitalista não têm pátria alguma, porque moram na pura forma da separação. Onde quer que vão, reencontram multiplicada e levada ao extremo a mesma impossibilidade de habitar que tinham conhecido nas suas casas e nas suas cidades, a mesma incapacidade de usar que tinham experimentado nos supermercados, nos Shoppings e nos espectáculos televisivos. Por isto, como o que representa o culto e altar da religião capitalista, o turismo é hoje a primeira indústria do mundo, que movimenta cada ano mais de 650 milhões de homens. E nada é tão espantoso quanto o facto de que milhões de homens normais consigam levar a cabo na própria carne a experiência talvez mais desesperada que é dada a cada um ter: a da perda irrevogável de todo o uso, da absoluta impossibilidade de profanar. (...)»

Giorgio Agamben, «Elogio della profanazione» [trad. minha], Profanazioni, nottetempo, Roma, 2005, pp. 95-97.

As imagens são literais

« – Escreveu em frente ao ecrã, no escuro?
G. D. – Não escrevo durante a projecção, parece-me bizarra essa ideia. Mas depois, tomo notas assim que possível. Sou um espectador naif. Acima de tudo, não acredito na existência de graus: não há um primeiro grau, um segundo, um terceiro grau. Aquilo que é bom no segundo grau, é-o também no primeiro, aquilo que é nulo no primeiro mantém-se assim no segundo ou no milésimo. Todas as imagens são literais, e devem ser tomadas literalmente. Quando uma imagem é plana, é sobretudo preciso não lhe atribuir, mesmo em espírito, uma profundidade que a desfiguraria: é isto que é difícil, captar as imagens enquanto dado imediato. E quando um cineasta indica «atenção que é apenas cinema», trata-se ainda de uma dimensão da imagem que é preciso tomar à letra. Há muitas vidas distintas, como dizia Vertov, uma vida para o filme, uma vida no filme, uma vida do próprio filme, que devem ser captadas conjuntamente. De qualquer forma, uma imagem não representa uma realidade suposta, é para si própria toda a sua realidade. »

(Gilles Deleuze, «Portrait du philosophe en spectateur» (1983), entrevista por Hervé Guibert, [trad. minha], Deux régimes de fous, Minuit, Paris, 2003, pp. 199-200)

Chora no cinema?

« – Chora no cinema?
G. D. – Chorar, ou antes, fazer chorar, fazer rir também, são funções de tal ou tal imagem. Podemos chorar porque é demasiado belo, ou demasiado intenso. Há apenas uma coisa lamentável, o famoso riso cinefílico nas cinematecas, aqueles que riem, como eles dizem, em segundo grau. Preferia uma sala inteira em lágrimas. N’O lírio quebrado de Griffith é normal e necessário chorar. »



(Gilles Deleuze, «Portrait du philosophe en spectateur» (1983), entrevista por Hervé Guibert, [trad. minha], Deux régimes de fous, Minuit, Paris, 2003, p. 199)

Humor involuntário

[Gilles Deleuze é o autor do texto «Post-scriptum sobre as sociedades de controlo»]

« Sobre o Fim do Deleuze Monument

O Deleuze Monument foi demolido por um grupo de moradores das torres de apartamentos Champfleury entre o dia 25 de Julho e o dia 28 de Julho de 2000. De facto reparei, durante uma visita que fiz a Avignon a 11 de Julho, que a experiência Deleuze Monument estava a chegar ao fim, ou seja, que os televisores e gravadores de vídeo já não se encontravam na “Biblioteca”, a qual não era limpa havia vários dias. Na verdade, o que aconteceu foi que, na primeira semana de Julho, um gravador de vídeo foi roubado por pessoas que não eram do bairro. A equipa de Champfleury decidiu retirar o material remanescente (quatro televisores e três gravadores de vídeo) e arrumá-lo na nossa sala especial. Sem os vídeos, a parte de biblioteca do Deleuze Monument perdeu, como é óbvio, o seu significado e não tardou a ser abandonada. (Não havia nada para guardar lá dentro.) A electricidade também já não era necessária na “Biblioteca”, que de noite, às escuras, ficava sem vida e pouco segura. Reparei nisso tarde de mais e a culpa foi minha, porque não fiquei em Avignon. Há certas coisas que eu gostava de dizer claramente tanto as pessoas mal informadas como às bem-intencionadas, ou àquelas que se interessam pelo êxito e pelo fracasso: a duração de uma experiência como o Deleuze Monument depende de diversos factores mas sobretudo faz parte da realidade da obra de arte. Dependendo, por conseguinte, das opções de uma ou varias pessoas, eis a razão pela qual a obra é tão precária! Os factores são a vida do bairro, o envolvimento da população e a sua aceitação do projecto, a preparação e o acompanhamento pelo artista e os meios postos à disposição deste. Acredito que é a soma desses factores que determina a longevidade de um projecto como o Deleuze Monument, além da decisão do artista de pôr fim ao projecto. No que me diz respeito, devo dizer que a preparação, apesar das dificuldades encontradas pela missão em Avignon em 2000, correu bem. Os encontros com os habitantes foram autênticos. Organizar o Deleuze Monument foi uma experiência densa, forte, e creio que uma experiência artística extremamente intensa, no limite daquilo de que sou capaz. Trouxe-me perguntas, dúvidas, mas também confiança e combatividade. E tudo isso se viu durante os três primeiros dias do Deleuze Monument. O que eu subestimei, porém, desde o início, foi a fase de acompanhamento (afinal a mais importante) da exposição do Deleuze Monument. Não ia lá com a frequência necessária (uma visita por semana não é de facto suficiente). Também subestimei o cansaço, a quantidade de trabalho e a importância da “permanência”, “vigilância” ou “protecção” que este tipo de proposta exige. No próximo monumento não posso deixar de considerar essas coisas no início, incluindo-as desde logo no orçamento. Não lhes dei a devida (ou suficiente) atenção no Deleuze Monument. Por falta de dinheiro, tive de inventar um “sistema de presenças” no monumento ou em seu redor, o que era uma incoerência, para a tarefa, que teve de ser executada por um grupo de habitantes. Eles foram mais lúcidos nesse aspecto desde o princípio e sempre me disseram que o dinheiro não ia chegar para aquilo a que chamavam “segurança”. Não gosto do termo, mas era adequado em Champfleury. Tentei, à última hora, arranjar dinheiro para prolongar o trabalho em que as pessoas começavam a estar cada vez mais interessadas, mas esse interesse não se traduziu em actos, o que significa que as verbas necessárias para pagar melhor aos “guardas”, que eram habitantes e não vigilantes, nunca foram libertadas. Terei de pensar mais seriamente nesse tipo de realidade desde o principio, num futuro projecto com as mesmas dimensões e o mesmo alcance. E finalmente eu, o artista, tenho de me preparar para estar sempre lá, enquanto a exposição durar.

Thomas Hirschhorn, finais de 2000

Tradução de Sofia Gomes a partir da versão inglesa de Emmelene Landon do original francês »

[Thomas Hirschhorn é o autor da exposição «Anschool II» de Serralves, de cuja "brochura gratuita parte integrante da exposição" se retirou este texto]

Cruzamentos genéticos



Uma amigável polémica com Leonor Areal do
Doc Log sobre Fora! de Pedro Costa e Rui Chafes, em particular sobre as instalações do primeiro, a partir do texto original dela, com a minha resposta e a sua contra-resposta:

« Não, não digo que [Pedro Costa] fomenta a violência, digo apenas que ele afirma que existe. Mas afirma no local onde ela não é ouvida. Mas onde é absorvida, digerida e esquecida. Talvez o PC ache suficientemente violento o seu gesto – como eu o reconheço – mas, por enquanto, duvido que fosse o gesto que ele escolheu, porque sei que foi um convite. E porque se percebe nas declarações que fez nos jornais que isso não é para ele pacífico nem fácil nem satisfatório. Compraram-lhe a revolta. Ele encontrou uma solução, uma saída honrosa. Mas terá encontrado um caminho? » (Leonor Areal)

Entretanto, a Leonor Areal fez uma interessante segunda visita, não menos pessimista:

« A violência do representado ultrapassa a demonstração teórica. São situações limite – desesperadas – para as quais não há saída. As personagens estão encurraladas. Esta visão niilista é atirada como um insulto ao visitante. Um dedo acusador culpabiliza o visitante burguês que vem ao locus da cultura e é conduzido às cavernas dos excluídos. Pretende o cineasta gerar má-consciência? Ou libertar-se dela? » (Leonor Areal)

Depois de alguma confusão terminológica nos comentários, a Leonor Areal discute o sexo dos anjos cinematográficos a partir de algumas perguntas.
Mas, só para baralhar... creio não há questões, apenas problemas.

Entrevista a Pedro Costa e Rui Chafes (versão completa)

«“Estamos a tentar dar a melhor prenda possível às pessoas que a saibam receber”

Óscar Faria

No Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, foi ontem inaugurada a exposição “Fora!”, que reúne trabalhos de um escultor, Rui Chafes (n. 1966), e de um cineasta, Pedro Costa (n. 1959). A conversa, registada durante o processo de montagem, é atravessada por questões relacionadas quer com os conteúdos da mostra, co-comissariada pelo director da instituição, João Fernandes e pela francesa Catherine David, responsável pela Documenta X (1997, Kassel, Alemanha), quer por algumas preocupações político-sociais dos artistas. Uma prenda para os espectadores, no dia em que o realizador recomeçou a fumar.

MIL FOLHAS – Robert Bresson nas suas “Notas Sobre o Cinematógrafo” afirma ser impossível “exprimir fortemente alguma coisa pelos meios conjugados de duas artes”. Sendo cada um proveniente de uma área diferente, a escultura e o cinema, até que ponto é compatível fazer uma exposição a dois?
RUI CHAFES – Acho que é incompatível, de facto, e a prova está nisto. O que é interessante não é saber se é compatível ou incompatível, nem sequer interessante saber se é possível. O meu ponto de partida é tentar chegar a algum ponto, não sabemos qual, partindo do princípio da impossibilidade, da incompatibilidade. Com essa consciência, a gente há-de chegar a algum ponto, não no sentido da ilusão que seja possível, mas sim da certeza que é impossível.
PEDRO COSTA – O que sinto é que eu trabalho e o Rui trabalha, já não é mau.

P. – Como é que vos foi apresentada a ideia desta exposição?
R. C. – A ideia foi uma proposta concreta do João Fernandes [director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves], que depois ficou cheio de medo do resultado. Foi uma proposta, penso, para testar como é que dois trabalhos com contornos tão definidos podiam, ou não, entrar em conflito. Aceitei pela admiração que tenho pelo trabalho do Pedro e pela crença de que era possível chegar a algum ponto, a alguma temperatura, que é o que me interessa conseguir.
P.C. – Agora o problema não é nosso. É apagar um bocado esta história de alguma provocação que reste. Se calhar, o princípio de ideia, isso não me interessa, mas se calhar existe, porque somos da mesma geração, de áreas diferentes, temos estatutos parecidos nas artes respectivas. Depois há uma ideia; agora é preciso que isso seja abolido com o que a gente fez.
R. C. – Seja negado com o que nós fizemos
P. C. – Não é abolido, pois, nem sequer é negado. O que a gente faz é o que gente faz. Eu, pelo menos, trabalho todos os dias e o Rui também, acho. Não ia trabalhar com alguém que não trabalhasse, portanto.
Depois a Catherine [David] entrou no barco, uma pessoa que nos conhecia aos dois. Faz um bocado a ponte.

P. – A partir da ideia inicial de juntar, os comissários tiveram em conta a vossa ideia de desfazer...
P. C. – Desfazer também não é um propósito, pelo menos falo por mim: trabalho, dia a dia, com imagens e sons. Não trabalho para desfazer nada, não trabalho nem para destruir nem para construir nada; nós juntámo-nos acho que com uma ideia, agora é preciso que aquilo se transforme noutra coisa que não só uma ideia.
R. C. – É aquilo que está a acontecer, agora, com a montagem.

P. – A ideia inicial veio de um terceiro exterior a vocês, disseram que sim para ver o que dava...
P. C. – Trabalho mais lá fora do que cá em coisas de museus, já fiz duas coisas com a Catherine, vou fazer outra em Viena. Se fizer uma coisa aqui, como é o caso, queria tentar apagar-me um bocadinho como autor. O Museu de Serralves é um sítio onde passa muita gente; pelo menos vou tentar que cheguem lá uns murmúrios, que com o Rui podem ter mais força ainda. Se calhar, o que faria lá, sozinho, podia ser mais uma espécie: “ Eis a instalação daquele que faz uns filmes”; assim, não sei se sobe, se desce, de nível, de tom. Pelo menos há um contrapeso, uma contradição, há um percurso, há salas, nem todas são minhas; há quase nada, há muita coisa, há muito som. Há ferro. Como Serralves é muita gente, se calhar mais do que [a que vai a] um cinema qualquer no Porto ou em Lisboa, acho que vale a pena, para mim.
R. C. – É curioso ver que, a maior parte das vezes, uma instituição, quando pensa ou programa uma obra ou um artista, sabe mais ou menos aquilo que vai ter, então se são artistas com uma carreira muito sólida... em termos de anos de prática.
P. C. – Só por causa dessa palavra [carreira] és testemunha e o PÚBLICO também...
R. C. – Vais fumar um cigarro...
P. C. – Não é um cigarro, é uma cigarrilha.
R. C. – O convite do João foi completamente laboratorial, ele não sabia, nem nós, até ao último momento, o que é que ia acontecer.
P. C. ­– Suspeitávamos...
R. C. – Suspeitávamos, mas, repara, partes de um ponto e, neste momento, já estás noutro, porque a força dos objectos, em si, é, às vezes, maior do que nós pensamos. No caso de um trabalho a dois, que é, e não é, um trabalho de equipa, são surpreendentes os conflitos e as coincidências que vão dos objectos. De repente, chegas à sala “x” e percebes que a tua ideia não é assim. Isto é um teste para todos e vai ser uma dificuldade para o público.
P. C. – Eu apelo ao público mais jovem. É sempre difícil uma coisa deste género, o cinema, como é que entra no museu? Normalmente monto o filme, misturo o filme e o som. Depois, há as bobinas que vão para os cinemas. Digo vagamente, o formato é tal. Aqui não, aqui há outras coisas. Até ao último segundo há uma espécie de montagem doutro género, que não estou habituado a fazer. Há cineastas hábeis nisso, o Godard, por exemplo, outros muito resistentes a isso, como o Straub; é um trabalho que não conheço e que sou obrigado a fazer, resisto, combato, tenho dúvidas, provoco... mas é muito engraçado e faz-me avançar, também. Se calhar também trago coisas com que o Rui se inquieta. Há uma espécie, como ele diz, de temperaturas, de arrefecimentos, de aquecimentos, de sujidades, de coisas que eu trago... acho sempre que um escultor, um pintor, são pesos pesados, assim como no boxe; são pessoas com grandes convicções. O cinema é sempre uma coisa de dúvidas, não há assim grandes artes ali, nunca houve... Funciona doutra maneira, mesmo a montagem, que é uma coisa muito séria... porque a rodagem de filmes, em geral, gerem muitas coisas diferentes, muito dinheiro, muitos temperamentos, muitas raparigas, rapazes, comidas... Não é que eu trabalhe assim, já consegui outras coisas.
R. C. – È importante frisar que a metodologia tem sido sempre, desde que começamos a preparar esta exposição, há dois anos, dizer não. É a metodologia do não. Em vez de dizer sim é dizer não, ou seja, instauras sempre a dúvida em cada passo, em cada decisão, em cada movimento de um ponto ao outro; é sempre o método do não. A lista de nãos é maior do que a lista de sins.
P. C. – Acho que, e sem grandes pretensões, que é coisa que não aguento... acho que há uma luz qualquer que pode iluminar as coisas do Rui doutra maneira.... Não sei como é que hei-de dizer... vou arriscar, de um certo social... estou a dizer coisas chatas, mas por outro lado ele também está a ser puxado e tem que ser puxado para este lado, porque o trabalho é o mesmo. Acho que há algumas coisas com som e imagem que o ajudam a ele e ele com o peso e a leveza, que são as coisas que ele trabalha... são ofertas, são prendas; acho que estamos a tentar dar a melhor prenda possível a pessoas que a saibam receber. Tento sempre dar o melhor presente às pessoas; o melhor, o mais bem feito que possa, agora são... É um bocadinho assustador o que se passa naquelas salas: isso é para mim, porque, se calhar, estou menos habituado ao museu, estou menos habituado ao público dos museus...
R. C. – Tu estás habituado à intimidade. Tu constróis durante anos um trabalho de intimidade...
P. C. – Trabalho o melhor que posso, com um esforço tremendo, com mãos, coração, cabeça e estômago, mas o que quero é continuar a trabalhar, arranjar maneira de, todos os dias, sair de cada às seis, sete, oito da manhã, ir para lá fazer... Acho que o Rui é a mesma coisa. Isto não engana, a gente não está aqui para enganar ninguém.

P. – Maurice Blanchot falava da “comunidade dos amantes” como um objectivo a atingir. O que se pressente é que a possibilidade de realizar esse desejo é cada vez menor, a realidade está cada vez mais asfixiada...
P. C. – Não sei... Na minha vida activa ou não activa, mesmo a dormir, tenho convivido sempre com coisas... por exemplo, os Straub ou o Hölderlin ou o Godard ou os Clash ou os Sex Pistols, tenho vivido sempre, sempre, sempre, numa espécie de... como é que hei de dizer...
R. C. – Nunca estás sozinho...

P. – Tudo está no sangue; essas pessoas, amigas reais ou modelos de vida, estão dentro de nós, formam uma comunidade interior que se transporta para todo o lado e se vai integrando noutras comunidades...
P. C. – Há coisas que valem, há valor nas coisas. Por exemplo, num filme há que saber o que é que aquilo vale, é a primeira pergunta. O que é que vale um filme? “Viste o último não sei quê?” “Iá, iá”. A crítica do PÚBLICO hoje resume-se um bocado ao “iá”; depois não há um valor nas coisas, parece que somos uns velhadas.

P . – Os Straub, Godard, The Clash formam uma determinada comunidade; as pessoas que habitam as imagens trazidas para dentro do museu constituem uma outra?
R. C. – Andamos muito perto e andamos a arrancar coisas ao mundo; aliás o método do Pedro e o meu é arrancar coisas ao mundo, arrancá-las e trabalhá-las. Depois também há maneiras de fazer isso; nalgumas coisas são métodos próximos; por exemplo, a gordura e a ferrugem: há muitos filmes gordurosos, filmes que escorrem gordura pelos cantos do ecrã. Detesto isso, os filmes do Pedro não têm gordura, não são filmes pegajosos, não têm sentimentalismo, não têm emoções baratas...

P. – São filmes enxutos...
R. C. – Não têm o ranço nem a gordura das emoções fáceis. As minhas esculturas não têm ferrugem, não gosto ferrugem, porque quando a ferrugem aparece numa obra é como a gordura no cinema, é já para convocar o sentimentalismo, para provocar a memória sentimental e emocional do tempo que já passou. A ferrugem quando é usada intencionalmente é uma atitude sentimental, emocional, para amolecer o coração do espectador. Há aspectos técnicos na maneira de fazer cinema do Pedro, ou na minha maneira de fazer a escultura que nos aproximam, ou seja, a repelência por alguns ingredientes doutros filmes ou doutras esculturas. Essa repelência, esse não, aproxima-nos. Isso, em si, cria uma comunidade ínfima, minúscula, uma comunidade sem importância nenhuma, a nossa comunidade

P. – O que se observa no museu, no caso das imagens, são planos fixos. Essa fixidez pode ser associada às esculturas, que, por seu lado também, em temos perceptivos, têm movimento. Este permanente reenvio entre esculturas e imagens é uma leitura que vos interessa?
R. C. – Gosto do movimento das esculturas. Tento, que a minha escultura traga a cidade inteira para dentro do museu ou do espaço onde é mostrada. Atrás da escultura há uma cidade inteira, com prédios, ruas, árvores, casas, túneis de metro... A escultura é apenas uma pequena hipótese; não acredito em objectos, não é um resultado final, é apenas um modo do pensamento.
P. C. – Essa história dos planos fixos ou da fixidez é como a história dos acordes no punk.

P. – O que se observa são planos fixos e a acção que decorre no interior desses planos. A câmara está imóvel...
P. C. – A câmara não anda, o que anda é a cabeça das pessoas. Só acredito no ser humano enquanto ele faz coisas, o sapateiro que a gente conhece, em Benfica. A gente gosta do sr. João, porque a cabeça dele se mexe, não se vai mexer mais porque vou lá andar a filmar a orelha, a cabeça ou a nuca, por trás, o sovaco... É preciso também não assustar as pessoas com essa história da fixidez. No cinema não é porque se mexe a câmara que a coisa se dá mais depressa.

P. – O caso do plano fixo de oito horas que lembra, por associação, alguns dos filmes de Andy Warhol...
P. C. – Não é um plano fixo, é um olhar.

P. – Qual é então a diferença entre Andy Warhol, que deixava a câmara...
P. C. – Para mim, nem o Warhol, nem o John Ford, nem o Straub, nem, às vezes, o Godard, fazem, planos fixos; o cinema não é uma linguagem. É uma língua, a gente fala a mesma língua, ou então não fala. Quero que venham pessoas para o nosso lado. É tão simples como isso; é outra vez uma coisa de oferenda. Só vejo uma maneira, nesta coisa horrível que a gente tem aqui à volta, que não tem nada a ver com a provocação, que é ser o mais concentrado, o mais delirante e lúcido, ao mesmo tempo, na maneira de olhar; porque não estou disposto a fazer, mais uma vez a tanga do costume. Não estou, não consigo. O Rui, acho que também não consegue; não é sequer não conseguimos: não temos estômago para isso. Se fizer um movimento de câmara, como faço às vezes, tem de haver uma razão, tem de ser diferente de tudo o resto que já foi feito, sempre, e estou a incluir o John Ford, o Ozu, todos. Se não conseguir vou para casa e vou dar com um pau na tola e tenho que fazer melhor para a próxima. Tem de haver qualquer coisa que nunca foi feita. Isto é um bocado pretensioso, mas... nunca foi feita, para mim.

P. – Um plano de oito horas nunca terá sido feito?
P. C. – Sim, é um olhar sobre uma coisa e ali propõe-se... Aquilo ali são várias salas, o museu; cada uma tem um sentimento, ou uma temperatura, ou uma cor. Vamos ver se uma contradiz a outra, se há uma narrativa, se há uma psicologia, se há uma economia, se há uma política... Era bonito que houvesse tudo, que fosse tudo confluente, ao mesmo tempo que contraditório, porque há palavras nas minhas imagens – realmente, há português, há crioulo –, há silêncios, há uma música, há um ruído, há ferro, há luz... há passos, há um caminho que as pessoas têm de fazer. Há aqui uma espécie de contradição. Fixidez? Não, acho que as pessoas vão ter que andar. No fundo, não há ali um plano fixo, a pessoa mexe-se em frente ao ecrã; mesmo no cinema a pessoa mexe-se, a cabeça da pessoa não pára. Ninguém está parado em frente a uma coisa que não se mexe. Ninguém está parado em frente a uma escultura do Rui, ou então, pronto, vamos para casa. Agora, falar-me em plano fixo, panorâmica, travelling, formalismo, construtivismo, é pouco interessante, preferia falar de uma maneira de fazer com que as pessoas olhem para algumas coisas, que nos interessam a nós, de uma certa maneira.

P. – É muito mais difícil chegar ao social e ao político a partir do olhar para uma escultura de Rui Chafes...
P. C. – O que quero é fazer com que duas coisas tenham um só valor. É uma espécie de sonho mútuo. As pessoas vão viver coisas delas... e que seja sensual; a gente não quer embrutecer mais as pessoas, apesar de tudo há uma sensualidade. Não tem a ver com planos fixos, com formalismos, com coisas desse género. Fiz um filme sobre a pior coisa que se pode imaginar, que é o Jean Marie-Straub e a Danièle Huillet. Custa muito dar valor a uma coisa que é gigantesca sendo atacado sem querer. Os Straubs são do mesmo valor que um castanheiro, que um belo amanhecer em Sintra, que molhar o pé num riacho, é a mesma sensação; agora trabalhar isto custa muito, custou-me muito... isto não tem a ver com arte, nem com vida. Devemos dar às pessoas o prazer de viver e dizer isto assim não dá. Se admiro alguém é porque ela diz: há qualquer coisa aqui que não dá, eu proponho outra. Essa coisa é tentar mudar qualquer coisa, já não tem a ver com a linguagem, é uma questão de sensibilidade, é não tentar embrutecer mais as pessoas ainda. O nosso esforço é esse. Mesmo que em casa eu seja sozinho, monstruoso, solitário. Só quero que me julguem pelo que vêem em imagem e som.

P. – O que vemos é a tentativa de dar a voz ao outro, a um terceiro que não tem voz social. Esse é um gesto político. Há um autor norte-americano, Craig Owens, que afirma não termos o direito de falar pelo outro [“’The Indignity of Speaking for Others’: An imaginary Interview’, in “Beyond Recognition” (University of California Press, 1992]... Até que ponto, seja no jornalismo, seja no cinema, seja na arte, temos o direito de falar pelo outro....
P. C. – Tu estás a puxar... tu vais-te queimar, isto era preciso ser escrito, tu vais-te queimar...

P. – Queimo-me...
P. C. – Porque é preciso saber donde é que a gente fala... tu não podes atirar para a mesa coisas deste género... Então aqui vamos falar de coisas sérias.

P. – Falemos...
P. C. – A sério...

P. – A sério...
P. C. – Já falei muito disto com os críticos esses decepcionam-me mesmo. Hoje já ouvi a palavra decepcionar... Não trabalho para isto; trabalho para uma espécie de responsabilização total. Não ando aqui a brincar ao cinema... Se já viste filmes que fiz...

P. – Vi.
P. C. – Só posso filmar aquilo que existe, não vou inventar um mundo que não existe. Não vou, não posso, não quero, não sei. O mundo que vejo está podre, é merdoso, está mal fabricado. Há pessoas que têm para mim um valor monumental, maior que outras, que vivem muito mal. Acho que as pessoas deviam estar mais ao nível umas das outras. Há pessoas que deviam estar presas. Por exemplo, Emídio Rangel, devia estar preso. Foram pessoas que destruíram Portugal, como o Salazar. Tive muito medo quando era pequeno; tive pessoas de família que morreram e não só porque estiveram na prisão, morreram na cabeça. Coisas dessas é preciso dizer. Não estamos aqui numa urgência, não é uma urgência. Estamos sempre. O sangue circula, a gente tem de acreditar que ele corre. Aquela frase bonita do Cézanne: “Acreditar na perpetuidade colorida do sangue”. Os rios correm, devem correr, quase não correm, e não é só pelas secas. É porque há uns cabrões numas fábricas... há gajos super ricos que são da treta, que são uns brutos do carago... é preciso dizer essas merdas e os críticos não fazem o seu trabalho. O crítico é uma palavra bonita, um gajo que pensa e ajuda a pensar e faz um texto ainda mais bonito que a mais bonita escultura do Rui. É preciso arriscar um bocadinho.

P. – O Hans-Jürgen Syberberg, no documentário The Ister afirma mesmo que os rios já não têm poesia...
P. C. – O meu amigo Jean Marie-Straub diz uma coisa lindíssima: cada filme que se faz, cada obra de arte que se faz, deve ter sempre uma coisa presente, é que hoje em dia já não se pode tomar banho num rio. Não se vai para a Escola de Cinema aprender isto. Fui para a Escola de Cinema para aprender umas coisas de química, para ver filmes, porque não tinha hipótese; O João Bénard da Costa mostrou-me muitos filmes, o João Miguel Fernandes Jorge mostrou-me muitos filmes, alguns professores assim. Depois cada um tem de fazer o seu trabalho.
R. C. – Há aqui um atordoamento. Se falamos em oferecer coisas às pessoas, é um bocado diferente da estética “vídeo-clip” com que as pessoas gostam de ser bombardeadas desde o pequeno-almoço até ao jantar. Aquilo que gostamos de chamar plano fixo, se calhar não é um plano, é um olhar, como lhe gosta da chamar o Pedro, é uma chamada de atenção para uma coisa muito diferente do embrutecimento colorido, “flashante” e rapidíssimo da estética “vídeo-clip” em que estamos a ser envolvidos pela televisão pelas notícias, por tudo. As notícias passam em rodapé em baixo e alguém fala por trás; há uma desatenção enorme e as pessoas gostam.
P. C. – Não acho que as pessoas gostam. As pessoas não sabem do que é que gostam. Há muitas pessoas que gostam seja do que for. As pessoas não sabem, as pessoas levam com o que Rangel lá põe, ou punha, o dono da outra lá põe, o patrão da Lusomundo lá põe. Talvez o mundo da arte escape um bocadinho, não sei. Acho que quase tudo participa do mesmo logro. O papel do artista, embora não goste da palavra, é outro. Sempre foi, sempre será, não há maneira de evitar a questão.

P. – Gostava também que o Rui falasse também acerca da possibilidade de se falar pelo outro através de um objecto escultórico...
P. C. – Acho que a gente não está a falar por mais ninguém...
R. C. – Nunca falo pelo outro. Nunca falo para um outro. O que vejo em cada dedada de uma escultura de Giacometti são milhões de pessoas, milhões de vozes. Senão aquilo não me interessa. Não me interessa o ego de Giacometti, nem me interessa o ego de nenhum artista no mundo. Interessa-me o que o Giacometti conseguiu só por ter amolgando um pouco de barro: fazer ouvir milhões de pessoas. Aliás, o Genet fala disso, das vozes... Isso interessa-me, essa imersão em cada obra de arte. È por isso é que há algumas obras de arte que me interessam mais do que outras. Interessam-me as obras de arte nas quais eu oiço a vibração, não é do outro, é de milhares de outros. Não me interessam egos, não me interessam vaidades, não me interessam indivíduos. Nesse sentido, interessa-me saber que o indivíduo tem de se defender do mundo e ao mesmo tempo tem que se abrir ao mundo. O sim e o não estão juntos, não estão separados; a morte e a vida não estão separadas, estão juntas. Interessam-me objectos que transportam em si um mundo inteiro, milhares de pessoas. Isso não é dar a voz ao outro, é dar a voz a milhares de outros.

P. – No caso dos filmes apresentados em Serralves, vemos o outro a falar e a tocar-nos...
R. C. – Mas não há outro ali...

P. – É o outro que não sou eu, é o outro que vive com dificuldades, é o outro que já levou mais de vinte anestesias numa perna, é o outro que consome heroína, o outro que sofre...
P. C. – Não sei onde é que andas...
R. C. – Acho que somos nós todos que temos a perna partida e consumimos heroína; não vejo ali nenhum outro. Todos consumimos heroína, todos temos a perna partida... Aquilo está muito bem feito, já vi com muito cuidado, de facto, parece que há ali um outro. E o Pedro já faz aquilo há muitos anos, de facto não oiço ali a voz de um outro; oiço mais a nossa própria voz, ali. Quando digo a nossa falo dos espectadores.

P. – Há muitos anos, no Porto, numa conferência, Jacques Derrida afirmou a necessidade de se receber incondicionalmente o outro, mesmo correndo o risco de sermos expulsos da nossa própria casa...
P. C. – Vivemos num mundo em que os maus e a crítica dos maus é a mesma coisa. O Valentim Loureiro e o Prado Coelho, para mim é a mesma coisa, participam no mesmo embuste. É uma questão de sensibilidade, não é uma questão de cultura. Se a gente fala do Hölderlin não é cultural. Porque há valores nas coisas. Há pessoas que trabalharam para algumas coisas. Não trabalharam para elas. Acredito sinceramente nesse valor. Todas as pessoas que eu mais prezo são pessoas que trabalharam muito, são anónimos, é uma massa, são 90% deste muito, deste planeta. É a África toda, é a Ásia toda, falo dessas pessoas. Falar delas pessoas é falar deste planeta quase inteiro.
R. C. – Há uma grande diferença entre uma pessoa que diz, nunca te dês com um loser, um falhado, porque senão vais estar em maus lençóis, ou uma pessoa como o Beckett, que dizia que só lhe interessavam as histórias de fracasso. Há aqui uma clivagem enorme. O que é que está por detrás de uma história de um fracassado? Se calhar, os bandidos não são aqueles que nós pensamos que o são. »

[Esta é a versão completa da entrevista feita por Óscar Faria para o Mil Folhas do Público e que estará apenas disponível na versão online deste jornal]

O Homem da enxada | The Man of the hoe

O funcionamento da resistência particular do Idiota, enquanto personagem do pensamento, pode, em momentos revolucionários, ser confundida com a defesa de posições conservadoras. Mas tal é um equívoco nefasto. Porque, se bem que as posições afirmadas ou argumentadas se possam a elas confundir, o movimento expresso pela personagem não é exterior em si à revolução, é-lhe interior de um modo mais profundo. A sua resistência apresenta-se como uma amplitude crescente da própria revolução, se bem que igualmente dificilmente suportável. Na verdade, se é indecidível se as posições são conservadoras ou não, é-o porque o Idiota se apresenta num devir, que por vezes se pode tornar verdadeira traição. Estranha vanguarda que se apressa a assumir a luta infinitamente, sem permitir que um qualquer estado se sobreponha à revolução.
The functioning of the specific resistance of the Idiot — as a character of thought — may in some revolutionary moments be confused with the defense of conservative positions. This would be a serious incomprehension, since the movement expressed by the character — although avowing or arguing views that might be confused with those — is not in itself extrinsic to the revolution. His resistance presents the growing amplitude of the revolution, even if equally unbearable. In truth, it is indecisive if his views are conservative or not, but because the Idiot is in the process of becoming, which might turn into a true treason. Strange vanguard that takes the fight infinitely, not allowing any State whatsoever to surmount the revolution (life).



No filme TORRE BELA (1975) de Thomas Harlan, documentário que acompanha a ocupação de uma propriedade rural no período pós-25 de Abril, essa confusão aparece de forma extremamente evidente, de modo a formar uma precisa manifestação da personagem do Idiota – o Homem da enxada. Este homem questiona o porquê da colectivização da sua ferramenta em prol da cooperativa a formar pelo conjunto dos trabalhadores agricolas. Recusa-se a compreender tal necessidade perante o porta-voz do movimento e perante os outros companheiros de ocupação daquela propriedade. Mas o fundamental do episódio não é hoje, para nós, tanto a argumentação sobre as vantagens da propriedade colectiva versus as liberdades individuais. É antes a intuição suspeita que a personagem projecta com toda a sua força perante o movimento súbito de alteração das mentalidades e pensamentos reinantes, de substituição de evidências.
Se o Homem da enxada resiste ao processo revolucionário é por ser ele próprio portador de um devir revolucionário ainda maior e mais selvagem, mas que, no entanto, desencaminha aquela revolução assim como que pouco exigente. Essa recusa apresenta-se como momento particular da necessidade vital de recusar a politização de todas as dimensões da vida. Esta é a evidência não explícita desta personagem. A de que a liberdade humana, tendo como meio a política, não se confunde a ela totalmente. Daqui se deduz a violência inerente a todas as formas políticas que não abranjam e aceitem até a própria recusa de participação política. Para que a liberdade fosse um estado total adquirido, a participação política teria de se sobrepor à vida na sua totalidade. Difícil paradoxo a que o voluntarismo da esquerda nunca saberá responder.
Acompanhando esta negação, a intuição do cansaço (não admira assim que a montagem do filme coloque a seguir desta sequência, com intenções claras de leitura, a imagem do Homem da enxada adormecido) manifesta-se como verdadeira vanguarda, antecipação do falhanço, não da revolução em si, mas da sua estatização forçada, o tornar-se um Estado, reterritorialização tão nefasta como infelizmente inevitável.
In Thomas Harlan’s film TORRE BELA (1977), a documentary accompanying the occupation of a rural property in the period post-Portuguese revolution of 1974, the mentioned confusion appears in a extremely tangible way, so as to form a precise manifestation of the Idiot as character: the Man of the hoe. This man questions why his instrument of labor has to be collectivized in favor of the cooperative to be formed by the assembly of rural workers. He refuses to understand that necessity before the spokesman of the movement and other companions in the occupation of the property. But the fundamental of the episode remains today not so much on the argument about the advantages of collective property against private liberties. It lays rather in the suspicious intuition the character projects with all its force when facing the sudden movement of changing mentalities and of reigning thoughts, the substitution of convictions.
If the Man of the hoe resists the revolutionary process it’s because he himself is the bearer of an even wider and wilder revolutionary becoming that, nonetheless, overthrows such sort of revolution not demanding enough. That refusal appears as the specific moment of a vital necessity to refuse the politicization of all life’s dimensions. This is the non-explicit indication of the character. Human liberty — having politics as its mean — doesn’t confound completely with it. From here we can deduce an inherent violence to all political forms that do not comprehend and even accept the refusal of political participation. In order for liberty to be a total acquired state, political participation would have to overlap life in its entirety. Such a difficult paradox left-wing voluntarism will never know the answer to!
Accompanying this denial, the intuition of tiredness (it comes as no surprise that the clearly intended editing shows, following the discussion sequence, the Man of the hoe asleep) manifests as true vanguard, anticipation of the failure, not of revolution itself, but of its forced statization, its becoming State, a reterritorialization that seems as fatal as unfortunately inevitable.



Contra o voluntarismo, tão característico da formas de esquerda política, esta encarnação da personagem do Idiota faz finca-pé na negação. Antecipam-se, como na reacção também cansada do porta-voz, as tendências do voluntarismo pós-revolucionário que tende, independentemente das suas conquistas sociais e culturais, a tornar-se em massacre para os que apresentam uma ligeira resistência, essencialmente mental, ao processo. O Homem da enxada, penúltima encarnação da personagem do Idiota do pensamento, resiste para proteger a vida das estruturas políticas territoriais devindas loucas, que a sujeitam a acelerações e paragens demasiado bruscas.
Against voluntarism, so typical of left-wing political forms, this incarnation of the Idiot as character stands stubbornly in denial. One anticipates, as in the also tired reaction of the spokesman, the tendencies of post-revolutionary voluntarism that, independently of its social and cultural conquests, tends to become a massacre to those who present a slight resistance, essentially mental, to the process (Mandelstam, etc.). The Man of the hoe, penultimate incarnation of the Idiot as character of thought, resists in order to protect life from the territorial-political structures gone mad, that would subject it to far too sudden accelerations and stops.

Agamben sobre a pornografia II

«(...) no sistema da religião espectacular, o meio puro, suspenso e exibido na esfera mediática, expõe o seu vazio, exprime apenas a sua nulidade, como se nenhum novo uso fosse possível, como se nenhuma outra experiência da palavra fosse agora possível.



Esta anulação dos meios puros é evidente no dispositivo que mais do que qualquer outro parece ter realizado o sonho capitalista da produção de um Improfanável. Trata-se da pornografia. Quem tenha alguma familiaridade com a história da fotografia erótica sabe que, no seu início, as modelos ostentavam uma expressão romântica e quase sonhadora, como se a objectiva as tivesse surpreendido, não visto, na intimidade do seu boudoir. Por vezes, indolentemente estendidas sobre um canapé, fingem dormir ou até ler, como em certos nus de Braquehais e de Camille d’Olivier; noutras, o fotógrafo indiscreto apanhou-as precisamente quando, sozinhas consigo mesmas, se observam ao espelho (é a encenação preferida de Auguste Belloc). Rapidamente, no entanto, em paralelo com a absolutização capitalista da mercadoria e do valor de troca, a sua expressão se transforma e torna-se descarada, as poses complicam-se e movimentam-se, como se as modelos lhes exagerassem intencionalmente a indecência, exibindo, deste modo, a sua consciência de estarem expostas à objectiva. Mas é apenas no nosso tempo que este processo atinge o seu estado extremo. Os historiadores do cinema registam como uma novidade desconcertante a sequência de Monika (1952), na qual a protagonista Harriet Andersson coloca subitamente o olhar fixo na objectiva por alguns segundos (“aqui, pela primeira vez na história do cinema”, comentará retrospectivamente o realizador, Ingmar Bergman, “estabelece-se um contacto despudorado e directo com o espectador”). Desde então, a pornografia tornou seguramente banal o procedimento: as pornostars, no próprio acto de desempenharem as suas carícias mais íntimas, olham agora decididamente a objectiva, mostrando interessar-se mais no espectador do que nos seus partners.



Deste modo realiza-se plenamente o princípio que Benjamin tinha já enunciado em 1936, quando escrevia o ensaio sobre Fuchs e, isto é, que “o que nestas imagens funciona como estimulo sexual, não é tanto a visão da nudez, quanto a ideia da exibição do corpo defronte à objectiva”. Um ano antes, para caracterizar a transformação da obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, Benjamin tinha criado o conceito de “valor de exposição” (Ausstellungswert). Nada melhor do que este conceito poderia caracterizar as novas condições dos objectos e mesmo do corpo humano na era do capitalismo realizado. Na oposição marxista entre valor de uso e valor de troca, o valor de exposição insinua um terceiro termo, que não se deixa reduzir aos dois primeiros. Não é valor de uso, porque o que está exposto está, enquanto tal, subtraído à esfera do uso; não é valor de troca, porque não mede de modo algum uma força-de-trabalho.
Mas é talvez apenas na esfera do rosto humano que o mecanismo do valor de exposição encontra o seu lugar próprio. É uma experiência comum que o rosto de uma mulher que se sinta observada se torne inexpressivo. A consciência de estar exposta ao olhar faz, nomeadamente, o vazio na consciência e age como um potente desagregador dos processos expressivos que animam normalmente o rosto. É a impudente indiferença que as mannequins, as pornostars e os outros profissionais da exposição devem em primeiro lugar começar por adquirir: não dar a ver nada de outro senão um dar a ver (ou seja, a sua absoluta medialidade). Deste modo o rosto carrega-se até rebentar de valor de exposição. Mas, precisamente através desta anulação do valor de exposição, o erotismo penetra aí onde não poderia ter lugar: no rosto humano, que não conhece nudez, porque está sempre já nu. Exibido como puro meio para lá de qualquer expressividade concreta, torna-se disponível para um novo uso, para uma nova forma de comunicação erótica.
Uma pornostar, que passa as suas prestações por performances artísticas, levou recentemente ao extremo este procedimento. Ela faz-se fotografar no acto de executar ou suportar os actos mais obscenos, mas sempre de modo a que o seu rosto esteja bem visível em primeiro plano. E em vez de simular, segundo a convenção comum ao género, o prazer, ela ostenta e exibe – como as mannequins – a mais absoluta indiferença, a mais estóica ataraxia. A quem é indiferente Chloë des Lysses? Ao seu partner, claro. Mas também aos espectadores, que se dão conta com surpresa que a star, para mais sabendo perfeitamente estar exposta ao olhar, não tem com eles a mínima cumplicidade. A sua face impassível quebra assim qualquer relação entre o vivido e a esfera expressiva, já não exprime nada, mas dá-se a ver como lugar intacto da expressão, como puro meio.
É este potencial profanatório que o dispositivo da pornografia pretende neutralizar. O que está aí capturado é a capacidade humana de fazer rodar sobre si mesmos os comportamentos eróticos, de profaná-los, destacando-os dos seus fins imediatos. Mas, enquanto estes se abriam, deste modo, a um diferente uso possível, que dizia respeito não tanto ao prazer do partner, mas a um novo uso colectivo da sexualidade, a pornografia intervém neste ponto bloqueando e desviando as intenções profanatórias. O consumo solitário e desesperado de imagens pornográficas substitui-se, assim, à promessa de um novo uso.
Qualquer dispositivo de poder é sempre duplo: isso resulta, em parte, de um comportamento individual de subjectivação e, por outra, da sua captura numa esfera separada. O comportamento individual em si não tem muitas vezes nada de reprovável e pode exprimir até um intento liberatório; reprovável é eventualmente – quando não foi constrangida pelas circunstâncias ou pela força – apenas o seu ter-se deixado capturar no dispositivo. Nem o gesto impudente da pornostar, nem o rosto impassível da mannequin são, como tais, de culpar: infames são, ao invés, política e moralmente – o dispositivo pornografia, o dispositivo desfile de moda, que as desviaram do seu possível uso.
O Improfanável da pornografia – qualquer improfanável – funda-se sobre a paragem e sobre a distracção de uma intenção autenticamente profanatória. Por isto é sempre necessário despedaçar nos dispositivos – a quaisquer dispositivos – a possibilidade de uso que têm capturada. A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem.»

(Giorgio Agamben, «Elogio della profanazione» [trad. minha], Profanazioni, nottetempo, Roma, 2005, pp. 102-106)

Agamben sobre a pornografia I

«Ideia do comunismo

Na pornografia, a utopia de uma sociedade sem classes manifesta-se através do exagero caricatural dos traços que distinguem essas classes e da sua transfiguração na relação sexual. Em nenhum outro contexto, nem sequer nas máscaras de carnaval, se insiste com tanta obstinação nas marcas de classe da indumentária, no próprio momento em que a situação leva à sua transgressão e anulação, da forma mais despropositada. As toucas e os aventais das criadas de quarto, o fato-macaco dos operários, as luvas brancas e os galões do mordomo, e mesmo, mais recentemente, as batas e as máscaras das enfermeiras, celebram a sua apoteose no instante em que, estendidos como estranhos amuletos sobre corpos nus indestrinçavelmente enroscados uns nos outros, parecem anunciar, com um toque estridente de trombeta, aquele último dia em que eles terão de apresentar-se como sinais de uma comunidade ainda não anunciada.
Só no mundo antigo se encontra qualquer coisa de semelhante a isto, na representação das relações amorosas entre deuses e homens, que constituem uma fonte inesgotável de inspiração para a arte clássica na sua fase final. Na união sexual com um deus, o mortal, vencido e feliz, anulava de um golpe a infinita distância que o separava dos imortais; mas, ao mesmo tempo, esta distância restabelecia-se, ainda que invertida, nas metamorfoses da divindade em animais. O meigo focinho do touro que rapta Europa, o bico sagaz do cisne inclinado sobre o rosto de Leda, são sinais de uma promiscuidade tão íntima e tão heróica que se nos torna, pelo menos durante algum tempo, insuportável.

Se procurarmos o conteúdo de verdade da pornografia, imediatamente ela nos mete diante dos olhos a sua ingénua e simplista pretensão de felicidade. A característica essencial desta última é a de ser exigível a qualquer momento e em qualquer ocasião: qualquer que seja a situação de despedida, ela tem infalivelmente de acabar com a relação sexual. Um filme pornográfico no qual, por um qualquer contratempo, isto não acontecesse, seria uma obra-prima, mas não seria um filme pornográfico. O strip-tease é, neste sentido, o modelo de toda a intriga pornográfica: no início temos sempre e apenas pessoas vestidas numa determinada situação, e o único espaço deixado ao imprevisto é o do modo como, no fim, elas têm de reencontrar-se, agora sem roupa. (Nisto, a pornografia recupera o gesto rigoroso da grande literatura clássica: não pode haver espaço para surpresas, e o talento manifesta-se nas imperceptíveis variações sobre o mesmo tema mítico). E com isto pusemos a nu também a segunda característica essencial da pornografia: a felicidade que ela exibe é sempre circunstancial, é sempre uma história e uma ocasião que se aproveitam, mas nunca uma condição natural, nunca qualquer coisa de já dado. O naturismo, que leva a tirar a roupa, é desde sempre o adversário mais aguerrido da pornografia; e do mesmo modo que um filme pornográfico sem acontecimento sexual não teria sentido, também dificilmente se poderia qualificar de pornográfica a exibição pura e simples do sexo no ser humano.
Mostrar o potencial de felicidade presente na mais insignificante situação quotidiana e em qualquer forma de socialidade humana: essa é a eterna razão política da pornografia. Mas o seu conteúdo de verdade, que a coloca nos antípodas dos corpos nus que enchem a arte monumental do Fim-de-século, é que ela não eleva o quotidiano ao nível do céu eterno do prazer, mas exibe antes o irremediável carácter episódico de todo o prazer, a íntima digressão de todo o universal. Por isso, só na representação do prazer feminino, cuja expressão é visível apenas no rosto, ela esgota a sua intenção.

Que diriam os personagens do filme pornográfico que estamos vendo se pudessem, por seu turno, ser espectadores da nossa vida? Os nossos sonhos não podem ver-nos – e esta é a tragédia da utopia. A confusão entre personagem e leitor boa regra de toda a leitura – deveria funcionar também aqui. Acontece, porém, que o importante não é tanto aprender a viver os nossos sonhos, mas sim que eles aprendam a ler a nossa vida.

“Um dia se mostrará que o mundo já há muito tempo que possui o sonho de uma coisa, da qual apenas precisa de ter consciência para a possuir verdadeiramente”. Certamente que sim – mas, como se possuem os sonhos, onde é que estão guardados? Porque aqui não se trata, naturalmente, de realizar alguma coisa. Nada é mais entediante do que um homem que tenha realizado os seus sonhos: é o zelo social-democrático e sem gosto da pornografia. Mas tão pouco se trata de guardar em câmaras de alabastro, intocáveis e coroados de rosas e jasmim, ideais que, ao tornar-se coisas, se quebrariam: esse é o secreto cinismo do sonhador.
Roberto Bazlen dizia: aquilo que sonhámos é qualquer coisa que já tivemos. Há tanto tempo, que já não nos recordamos disso. Não num passado, portanto – já lhe perdemos os registos. Os sonhos e os desejos não realizados da humanidade são antes os membros pacientes da ressurreição, sempre a ponto de despertar no dia final. E não dormem fechados em preciosos mausoléus, mas estão pregados, como astros vivos, ao céu remotíssimo da linguagem, cujas constelações mal conseguimos decifrar. E isso – pelo menos isso – não o sonhámos. Ser capaz de apanhar as estrelas que, como lágrimas, caem do firmamento jamais sonhado da humanidade – essa é a tarefa do comunismo.»

(Giorgio Agamben, Ideia da prosa (1985), trad. João Barrento, Cotovia, Lisboa, 1999, pp. 65-68)


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