Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Agamben sobre a pornografia II

«(...) no sistema da religião espectacular, o meio puro, suspenso e exibido na esfera mediática, expõe o seu vazio, exprime apenas a sua nulidade, como se nenhum novo uso fosse possível, como se nenhuma outra experiência da palavra fosse agora possível.



Esta anulação dos meios puros é evidente no dispositivo que mais do que qualquer outro parece ter realizado o sonho capitalista da produção de um Improfanável. Trata-se da pornografia. Quem tenha alguma familiaridade com a história da fotografia erótica sabe que, no seu início, as modelos ostentavam uma expressão romântica e quase sonhadora, como se a objectiva as tivesse surpreendido, não visto, na intimidade do seu boudoir. Por vezes, indolentemente estendidas sobre um canapé, fingem dormir ou até ler, como em certos nus de Braquehais e de Camille d’Olivier; noutras, o fotógrafo indiscreto apanhou-as precisamente quando, sozinhas consigo mesmas, se observam ao espelho (é a encenação preferida de Auguste Belloc). Rapidamente, no entanto, em paralelo com a absolutização capitalista da mercadoria e do valor de troca, a sua expressão se transforma e torna-se descarada, as poses complicam-se e movimentam-se, como se as modelos lhes exagerassem intencionalmente a indecência, exibindo, deste modo, a sua consciência de estarem expostas à objectiva. Mas é apenas no nosso tempo que este processo atinge o seu estado extremo. Os historiadores do cinema registam como uma novidade desconcertante a sequência de Monika (1952), na qual a protagonista Harriet Andersson coloca subitamente o olhar fixo na objectiva por alguns segundos (“aqui, pela primeira vez na história do cinema”, comentará retrospectivamente o realizador, Ingmar Bergman, “estabelece-se um contacto despudorado e directo com o espectador”). Desde então, a pornografia tornou seguramente banal o procedimento: as pornostars, no próprio acto de desempenharem as suas carícias mais íntimas, olham agora decididamente a objectiva, mostrando interessar-se mais no espectador do que nos seus partners.



Deste modo realiza-se plenamente o princípio que Benjamin tinha já enunciado em 1936, quando escrevia o ensaio sobre Fuchs e, isto é, que “o que nestas imagens funciona como estimulo sexual, não é tanto a visão da nudez, quanto a ideia da exibição do corpo defronte à objectiva”. Um ano antes, para caracterizar a transformação da obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, Benjamin tinha criado o conceito de “valor de exposição” (Ausstellungswert). Nada melhor do que este conceito poderia caracterizar as novas condições dos objectos e mesmo do corpo humano na era do capitalismo realizado. Na oposição marxista entre valor de uso e valor de troca, o valor de exposição insinua um terceiro termo, que não se deixa reduzir aos dois primeiros. Não é valor de uso, porque o que está exposto está, enquanto tal, subtraído à esfera do uso; não é valor de troca, porque não mede de modo algum uma força-de-trabalho.
Mas é talvez apenas na esfera do rosto humano que o mecanismo do valor de exposição encontra o seu lugar próprio. É uma experiência comum que o rosto de uma mulher que se sinta observada se torne inexpressivo. A consciência de estar exposta ao olhar faz, nomeadamente, o vazio na consciência e age como um potente desagregador dos processos expressivos que animam normalmente o rosto. É a impudente indiferença que as mannequins, as pornostars e os outros profissionais da exposição devem em primeiro lugar começar por adquirir: não dar a ver nada de outro senão um dar a ver (ou seja, a sua absoluta medialidade). Deste modo o rosto carrega-se até rebentar de valor de exposição. Mas, precisamente através desta anulação do valor de exposição, o erotismo penetra aí onde não poderia ter lugar: no rosto humano, que não conhece nudez, porque está sempre já nu. Exibido como puro meio para lá de qualquer expressividade concreta, torna-se disponível para um novo uso, para uma nova forma de comunicação erótica.
Uma pornostar, que passa as suas prestações por performances artísticas, levou recentemente ao extremo este procedimento. Ela faz-se fotografar no acto de executar ou suportar os actos mais obscenos, mas sempre de modo a que o seu rosto esteja bem visível em primeiro plano. E em vez de simular, segundo a convenção comum ao género, o prazer, ela ostenta e exibe – como as mannequins – a mais absoluta indiferença, a mais estóica ataraxia. A quem é indiferente Chloë des Lysses? Ao seu partner, claro. Mas também aos espectadores, que se dão conta com surpresa que a star, para mais sabendo perfeitamente estar exposta ao olhar, não tem com eles a mínima cumplicidade. A sua face impassível quebra assim qualquer relação entre o vivido e a esfera expressiva, já não exprime nada, mas dá-se a ver como lugar intacto da expressão, como puro meio.
É este potencial profanatório que o dispositivo da pornografia pretende neutralizar. O que está aí capturado é a capacidade humana de fazer rodar sobre si mesmos os comportamentos eróticos, de profaná-los, destacando-os dos seus fins imediatos. Mas, enquanto estes se abriam, deste modo, a um diferente uso possível, que dizia respeito não tanto ao prazer do partner, mas a um novo uso colectivo da sexualidade, a pornografia intervém neste ponto bloqueando e desviando as intenções profanatórias. O consumo solitário e desesperado de imagens pornográficas substitui-se, assim, à promessa de um novo uso.
Qualquer dispositivo de poder é sempre duplo: isso resulta, em parte, de um comportamento individual de subjectivação e, por outra, da sua captura numa esfera separada. O comportamento individual em si não tem muitas vezes nada de reprovável e pode exprimir até um intento liberatório; reprovável é eventualmente – quando não foi constrangida pelas circunstâncias ou pela força – apenas o seu ter-se deixado capturar no dispositivo. Nem o gesto impudente da pornostar, nem o rosto impassível da mannequin são, como tais, de culpar: infames são, ao invés, política e moralmente – o dispositivo pornografia, o dispositivo desfile de moda, que as desviaram do seu possível uso.
O Improfanável da pornografia – qualquer improfanável – funda-se sobre a paragem e sobre a distracção de uma intenção autenticamente profanatória. Por isto é sempre necessário despedaçar nos dispositivos – a quaisquer dispositivos – a possibilidade de uso que têm capturada. A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem.»

(Giorgio Agamben, «Elogio della profanazione» [trad. minha], Profanazioni, nottetempo, Roma, 2005, pp. 102-106)

Sem comentários:


Arquivo / Archive