Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Os animais #1



Defronte a certos filmes ocorre-nos perguntar: como "pensam" as sociedades contemporâneas? Quer dizer, como trabalham elas os problemas que as atravessam, como os enunciam, sob que formas discursivas eles aparecem, qual a natureza dos objectos que essa reflexão investe, etc.? E como se processa esse trabalho árduo, provavelmente apenas parcialmente consciente, de fazer com que estas difíceis abordagens, por vezes profundos paradoxos da existência contemporânea, sejam eles económicos, políticos ou outros, habitem o interior de objectos de entretenimento, dramáticos ou cómicos? Se aceitarmos a ligeira mas importante salvaguarda de que nada disto tem que ver com a chamada "ideologia", podemos talvez observar um filme como exemplo de compreensão.
Tomemos portanto um "inocente" desenho animado, devo confessar profundamente sintomático, e, além do mais, divertidíssimo – Madagáscar da Dreamworks –, que, aliás, até as crianças adoram. Será que devemos ler a temática subjacente apenas como um contexto narrativo como outro qualquer, sem implicações que extrapolem do filme, ou seja, como uma camada de sentido humorística apenas, em filmes que são conhecidos por terem várias?
Resumamos o enredo: alguns animais (mais precisamente, uma zebra, um leão, um hipopótamo e uma girafa, bem como um grupo de pinguins) de um zoo nova-iorquino, nascidos em cativeiro, acabam por ser devolvidos à natureza [the wild], uns contrariados e outros satisfeitos, devido aos protestos de grupos de amigos dos animais [reparai em seguida na deliciosa ironia!]; na selva de Madagáscar descobrem algumas das difíceis inconveniências da dita natureza, entre as quais, para o único animal carnívoro do grupo – o leão –, a de que é necessário caçar para comer, ser selvagem para caçar, e que “ser selvagem” o faz não distinguir entre amigos e não-amigos; a generalidade dos animais bondosos do filme, inclusive os nativos simpáticos da ilha – os lemures – são vegetarianos, salvo erro, se exceptuarmos os pinguins [veremos que peixe, neste filme, não é carne! nem os peixes “vivem”, no sentido de terem emoções ou serem providos de fala!]; logo, estes animais vegetarianos não podem deixar de expressar o seu horror perante a selvajaria daquele leão, aparentemente tão amigável, que não consegue seguir apenas um nutritivo dietético regime de algas, motivado pela súbita deslocalização; é ver o espanto da zebra perante os sonhos do seu amigo leão, que envolvem, acordado ou a dormir, dentadas no seu monocromático rabo; para mais, há o contraponto das fossas, espécie de horrorosas hienas que cumprem o papel de bad guys, que vivem para comer os lemures bon vivants, visivelmente socialmente organizados; todo o filme se enreda à volta deste paradoxo carnívoro e da luta, impregnada de má-consciência, do leão com a sua instintiva fome; a resolução da narrativa, depois de uma conversão à prioridade da amizade sobre a fome, é uma escapatória gritante, pois ao leão é dado a provar sushi, ou seja, peixe “trabalhado” (mesmo que cru), e ele aprova, garantido que não haverá mais confusões, pelo menos durante a viagem de regresso ao zoo, para onde voltam por o mais importante ser mesmo “estarem juntos”.

Bom, deixemos de lado, porque não aqui estritamente necessário, o questionar da própria antropomorfização dos animais. Limitamo-nos somente a constatar a sua, muito útil para a construção do filme, parcialidade, já que deixa de fora, na atribuição de capacidades na aparência exclusivamente humanas, como a linguagem, os – também simpáticos, porque não? – peixinhos [então e O pequeno Nemo, etc.?]. Mas é evidente que toda a articulação da oposição entre natureza e sociedade, perante a qual até os próprios animais são agora confrontados, é feita na assunção desta dimensão problemática da visibilidade da alimentação. Na natureza, segundo o filme, não existem as facilidades da abstracção do carácter vivo e expressivo da comida, e é na sociedade que as invisibilidades do processamento da comida nos permitem manter uma boa consciência. Estes animais superiores, no caso mamíferos, estão agora aparentemente tão próximos de nós humanos [será que se comem correntemente macacos em certas culturas? e porque não?] que caem objectivamente na alçada, quiçá inesgotável, da nossa responsabilidade política. É hoje literalmente impossível que a extinção de uma espécie ou um desastre natural não recaia sobre essa mesma responsabilidade humana, embora sempre tenham existido extinções e desastres naturais. A confusão sobre a amplitude dos efeitos da acção humana no ambiente do planeta faz com que tudo aí recaia. Focas-bebés não podem morrer de fome na Antáctica devido a causas naturais como fenómenos climatéricos anormais, simplesmente porque estes são agora indiscerníveis da acção humana. O mundo em toda a sua extensão, em breve o universo, torna-se responsabilidade humana. Assumimos as funções de um Deus omnipotente, talvez levados no entusiasmo de uma ciência quase omnisciente. Nem um minúsculo mineral se deixará extinguir, por outro lado, inúmeras novas "formas de vida" serão criadas.
Creio ser simplesmente cegueira não associar estes fenómenos culturais, políticos e económicos, ambientais, ao enorme sintoma que é o crescimento das alimentações alternativas – macrobiótica, vegetariana, etc. –, que se massificam, dispensando precisamente e prioritariamente a carne, movidas por uma mal explicada má-consciência perante o sacrifício da vida animal. As mesmas mãos que foram dispensadas de sacrificar os animais para comer, recusam agora sequer colhê-los das embalagens de plástico nos supermercados, enquanto se atarefam a afagá-los como animais de estimação. Eis outro elemento a juntar a esta festa biopolítica: a crescente emocionalidade com que são estabelecidas as relações quase familiares com os animais de estimação, em particular desse conjunto de animais privilegiados pela história da civilização humana – cães, gatos – cuja existência seria hoje simplesmente inconcebível sem a presença e acção humana, tal como a maior parte dos animais sujeitos da pecuária. Paradoxos fascinantes para os quais, creio, não há hoje soluções, nem será talvez de soluções que precisaremos, mas que parecem depender de um profundo repensar de uma concepção da “natureza”, que se encontra totalmente desadequada.
O curioso, e talvez ao mesmo tempo saudável, é que seja perante um desenho animado industrial que, provavelmente mais até do que em filmes sérios que nos mostrem o verdadeiro espectáculo do processamento industrial da carne, nos vem a certeza de que esta coisa de sermos carnívoros não pode durar muito tempo. É simplesmente um paradoxo gritante que se tornará insuportável. Mundo novo dos vegetais e afins macrobióticos que nos espera! Talvez então tenhamos o cultivo e comércio clandestino de vacas como o da papoila ou da folha de coca nos paises pobres com climas adequados, como a League of gentleman – uma série humorística da BBC – antecipava num episódio, motivado certamente pela crise das vacas loucas, em que os elementos mais nobres de uma povoação se dedicavam ao tráfico altamente secreto e lucrativo de carne de vaca, iguaria tornada rara!

TPC: (Re)ler o texto de Serge Daney sobre Bazin e os animais - «L'écran du fantasme», La rampe. Cahier critique 1970-1982, Cahiers du cinéma/Gallimard, Paris, 1996, p. 36-47.

1 comentário:

André Dias disse...

Ainda sobre o animal, um pequeno silogismo, conscientemente mal construído e falacioso: os animais pecuários nascem para ser comidos; se não o forem, certamente deixarão de nascer; logo, os defensores dos animais estarão simplesmente a impedi-los de ser. A lógica é deveras arrepiante.


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