A propósito de Mozart: um filme de, precisamente, 1965
A minha vontade era recuperar um artigo de João Bénard da Costa, publicado no Independente em meados dos anos 90 (se não me engana a memória), que sempre exemplificou para mim uma espécie de transmissão feliz. Trata-se de um texto, sobre o filme Le Bonheur de Agnès Varda, que li muito antes de ver o próprio filme. Entretanto, não sou grande arquivista, a Hemeroteca está fechada para obras e o Centro de Documentação da Cinemateca não possui este artigo, por isso tive de encontrar alternativa: a Folha da Cinemateca do filme, igualmente escrita por João Bénard da Costa, aborda as mesmas sensações que perduraram na minha memória:
« Le Bonheur (A Felicidade) / 1965: Agnès Varda
(...) Sobre o Quinteto para Clarinete (K. 581) que se ouve durante quase todo o filme, até à morte (ou à desaparição) de Thérèse, escreveu Jean-Victor Hocquard: “É uma obra em que não há dualismo entre o instrumento solista e o acompanhamento. Apenas uma rivalidade [...]. A perfeição desta obra é a de um aboutissement, de um parachévement. Tudo o que até aí, na música de Mozart, era apelo nostálgico, pura intensidade do canto, é levado ao cúmulo. Quão terrível deve ter sido, nos anos futuros, a queda de Mozart na noite mais escura, para que tudo isto se tivesse perdido”.
No final do filme, não ouvimos mais esse Quinteto, mas outro (K. 614 {ou o Adágio e Fuga em Dó menor, K. 546?}) em que o que surge é a “tensão trágica que implica a luta contra o tempo nascido da oposição entre uma matéria musical, que só existe no presente, e a forma dela que só pode ser uma para além do tempo, no seio de um juízo imóvel e silêncio”.
Na história do cinema, não conheço muitos exemplos de uma tão singular adequação da música ao filme, como o é a da música de Mozart a Le Bonheur (por isso mesmo, em tempos, escolhi Le Bonheur para um ciclo dedicado ao cinema musical).
Porque ao contrário do que supõe muito imbecil que continua a associar Mozart e alegria, Mozart não é aqui chamado para reforçar o lado cliché da fotografia bilhete-postal, dos girassóis, das margaridas, das rosas, das maçãs ou dos pic-nics. O que essa música nos diz – duzentos anos antes de Varda – é que a felicidade, ao contrário do que pensavam os protagonistas, não é natural nem é provavelmente deste mundo e que o apelo a ela é o apelo mais terrível. Por isso Bruno Walter dizia aos músicos que era preciso que Mozart soasse tão alegre, tão alegre, que desse vontade de chorar. Entre os dois quintetos – entre 1789 e 1791 – Mozart descobriu quase tudo o que está por trás deste filme.
Aparentemente, François tem toda a razão e a sua moral ou amoral – inocente, terrivelmente inocente –, tem toda a razão lógica. Não roubou nada a ninguém. Porque não acrescentar uma felicidade a outra felicidade para uma felicidade ainda maior? Nem Émilie, nem Thérèse o contradizem. Ambas parecem vencidas, nas reservas que põem, pela felicidade, pela alegria dele. Só que há uma boca de incêndio ao pé dessa naturalidade. O que provavelmente Thérèse realizou, na prodigiosa elipse da sua última sesta, é que tudo era música, mais nada seria igual. E não aguentou tanta felicidade e tanta infelicidade. Por isso se matou. Talvez, nesse momento, ela tenha ouvido Mozart (Resnais dizia sentir a morte todo o tempo, porque todo o tempo ouvia Mozart).
E se o Quinteto para Clarinete se consegue casar com as duas felicidades de François, não há música possível para a felicidade a três. E se a felicidade do final, outonal e sem flores. Só não é a felicidade da aliança fraterna entre instrumentos solistas e os instrumentos que o acompanham, mas a felicidade de quem quer persistir nela, sabendo-a já irrealizável. Depois de comerem a maçã proibida, Adão e Eva descobriram que estavam nus e tiveram medo. Perderam o paraíso. Em Le Bonheur, François e Émilie recusam-se à nudez, ao medo e à ideia de um paraíso perdido. Mas o pic-nic final é o negativo do pic-nic inicial. E a felicidade surge, então, como a solução mais artificial. O círculo da harmonia rompeu-se. E nenhum dele, mortos ou vivos, saberá jamais explicar porquê. E o que mais perturba neste filme não é a sua falada imoralidade.
É exactamente a implacável demonstração que a moral da imoralidade é mais terrível do que a moral da moralidade. E que não devia ser assim. E que é assim.
Contra tudo o que vemos, tudo o que ouvimos (Mozart). Contra tudo o que vemos, tudo o que não vemos (a elipse da morte de Thérèse). E Mozart e esse buraco negro (a morte) são mais forte. Muito mais fortes.
Em 1965, como em 1996, Agnès Varda fez-me perceber, menos e mais, o que era le Malheur.
Com este filme, chamado Le Bonheur. »
(João Bénard da Costa, «Le bonheur», Folhas da Cinemateca, Pasta 54, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1996, pp. 453-454)
Le Bonheur (A Felicidade) Realizado por Agnès Varda; França 1964, 35mm, cor, 82'; com Jean-Claude Drouot, Claire Drouot, Marie-France Boyer
Uma pequena entrevista a Varda – «Bonheur féroce» – aquando da recente reposição em sala em Paris deste filme.
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