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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Agamben sobre a pornografia I

«Ideia do comunismo

Na pornografia, a utopia de uma sociedade sem classes manifesta-se através do exagero caricatural dos traços que distinguem essas classes e da sua transfiguração na relação sexual. Em nenhum outro contexto, nem sequer nas máscaras de carnaval, se insiste com tanta obstinação nas marcas de classe da indumentária, no próprio momento em que a situação leva à sua transgressão e anulação, da forma mais despropositada. As toucas e os aventais das criadas de quarto, o fato-macaco dos operários, as luvas brancas e os galões do mordomo, e mesmo, mais recentemente, as batas e as máscaras das enfermeiras, celebram a sua apoteose no instante em que, estendidos como estranhos amuletos sobre corpos nus indestrinçavelmente enroscados uns nos outros, parecem anunciar, com um toque estridente de trombeta, aquele último dia em que eles terão de apresentar-se como sinais de uma comunidade ainda não anunciada.
Só no mundo antigo se encontra qualquer coisa de semelhante a isto, na representação das relações amorosas entre deuses e homens, que constituem uma fonte inesgotável de inspiração para a arte clássica na sua fase final. Na união sexual com um deus, o mortal, vencido e feliz, anulava de um golpe a infinita distância que o separava dos imortais; mas, ao mesmo tempo, esta distância restabelecia-se, ainda que invertida, nas metamorfoses da divindade em animais. O meigo focinho do touro que rapta Europa, o bico sagaz do cisne inclinado sobre o rosto de Leda, são sinais de uma promiscuidade tão íntima e tão heróica que se nos torna, pelo menos durante algum tempo, insuportável.

Se procurarmos o conteúdo de verdade da pornografia, imediatamente ela nos mete diante dos olhos a sua ingénua e simplista pretensão de felicidade. A característica essencial desta última é a de ser exigível a qualquer momento e em qualquer ocasião: qualquer que seja a situação de despedida, ela tem infalivelmente de acabar com a relação sexual. Um filme pornográfico no qual, por um qualquer contratempo, isto não acontecesse, seria uma obra-prima, mas não seria um filme pornográfico. O strip-tease é, neste sentido, o modelo de toda a intriga pornográfica: no início temos sempre e apenas pessoas vestidas numa determinada situação, e o único espaço deixado ao imprevisto é o do modo como, no fim, elas têm de reencontrar-se, agora sem roupa. (Nisto, a pornografia recupera o gesto rigoroso da grande literatura clássica: não pode haver espaço para surpresas, e o talento manifesta-se nas imperceptíveis variações sobre o mesmo tema mítico). E com isto pusemos a nu também a segunda característica essencial da pornografia: a felicidade que ela exibe é sempre circunstancial, é sempre uma história e uma ocasião que se aproveitam, mas nunca uma condição natural, nunca qualquer coisa de já dado. O naturismo, que leva a tirar a roupa, é desde sempre o adversário mais aguerrido da pornografia; e do mesmo modo que um filme pornográfico sem acontecimento sexual não teria sentido, também dificilmente se poderia qualificar de pornográfica a exibição pura e simples do sexo no ser humano.
Mostrar o potencial de felicidade presente na mais insignificante situação quotidiana e em qualquer forma de socialidade humana: essa é a eterna razão política da pornografia. Mas o seu conteúdo de verdade, que a coloca nos antípodas dos corpos nus que enchem a arte monumental do Fim-de-século, é que ela não eleva o quotidiano ao nível do céu eterno do prazer, mas exibe antes o irremediável carácter episódico de todo o prazer, a íntima digressão de todo o universal. Por isso, só na representação do prazer feminino, cuja expressão é visível apenas no rosto, ela esgota a sua intenção.

Que diriam os personagens do filme pornográfico que estamos vendo se pudessem, por seu turno, ser espectadores da nossa vida? Os nossos sonhos não podem ver-nos – e esta é a tragédia da utopia. A confusão entre personagem e leitor boa regra de toda a leitura – deveria funcionar também aqui. Acontece, porém, que o importante não é tanto aprender a viver os nossos sonhos, mas sim que eles aprendam a ler a nossa vida.

“Um dia se mostrará que o mundo já há muito tempo que possui o sonho de uma coisa, da qual apenas precisa de ter consciência para a possuir verdadeiramente”. Certamente que sim – mas, como se possuem os sonhos, onde é que estão guardados? Porque aqui não se trata, naturalmente, de realizar alguma coisa. Nada é mais entediante do que um homem que tenha realizado os seus sonhos: é o zelo social-democrático e sem gosto da pornografia. Mas tão pouco se trata de guardar em câmaras de alabastro, intocáveis e coroados de rosas e jasmim, ideais que, ao tornar-se coisas, se quebrariam: esse é o secreto cinismo do sonhador.
Roberto Bazlen dizia: aquilo que sonhámos é qualquer coisa que já tivemos. Há tanto tempo, que já não nos recordamos disso. Não num passado, portanto – já lhe perdemos os registos. Os sonhos e os desejos não realizados da humanidade são antes os membros pacientes da ressurreição, sempre a ponto de despertar no dia final. E não dormem fechados em preciosos mausoléus, mas estão pregados, como astros vivos, ao céu remotíssimo da linguagem, cujas constelações mal conseguimos decifrar. E isso – pelo menos isso – não o sonhámos. Ser capaz de apanhar as estrelas que, como lágrimas, caem do firmamento jamais sonhado da humanidade – essa é a tarefa do comunismo.»

(Giorgio Agamben, Ideia da prosa (1985), trad. João Barrento, Cotovia, Lisboa, 1999, pp. 65-68)

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