Radicalidades
« O assunto principal do seminário [A poesia civil], revela [Nicole Brenez], "é o de mostrar a necessidade de abandonar, definitivamente, a distinção entre a vanguarda política e a vanguarda estética: cada uma das obras escolhidas demonstra como se articula a radicalidade política com a radicalidade formal".» (Óscar Faria, Público)
Se quisermos conservar as difíceis (necessárias?) noções de “vanguarda” e “radicalidade”, teremos de afirmar, ao contrário de Nicole Brenez, que não existe nenhuma relação ou, se existe, se trata mesmo de uma relação inversamente proporcional, entre vanguarda ou radicalidade política e estetico-formal. Talvez fosse necessária uma enumeração de exemplos. Pensarei neles. Como não estive presente nas sessões do seminário, não posso averiguar dos escolhidos, mas suspeito que o cinema estará completamente cheio de incompatibilidades entre as radicalidades políticas expressas pelas formas do discurso e as expressas pela materialidade própria do cinema. O que, quando se manifesta de forma demasiado marcante, acaba por destruir os filmes. Lembro, assim de repente, a maioria gritante do cinema “de esquerda” dos anos 60 e 70 ou, talvez de forma menos evidente mas mais produtiva, os filmes que procuram abordar o genocídio ou o extermínio. Talvez a radicalidade política se dê no cinema de uma maneira tão imanente à sua composição que, na distância criada, seja quase impossível discernir os enunciados de uma qualquer radicalidade política discursiva, como se o cinema criasse a sua própria política (tipo de relação entre corpos, hierarquia de matérias, etc., e, se calhar, mesmo o seu direito) e esta fosse quase incompreensível à letra da política comum ou ultrapassasse a intepretação expressa pelo realizador (vide as leituras humanistas em e sobre S-21, la machine de mort Khmère rouge de Rithy Panh).
Vice-versa, inúmeras expressões discursivas evidentes dentro dos filmes não encontrariam nos próprios manifestações materiais da sua radicalidade. É certo que haverá excepções gritantes que confirmarão esta regra em forma de problema, mas estas, no entanto, certamente não se darão de modo totalmente evidente como políticas e estetico-formais. Isto não devido a uma qualquer incompatibilidade ou diferença irredutível, mas sim devido a uma distância tal – uma extensão – dentro da expressão propriamente material das duas radicalidades que torna quase incomportável a sua conjunção compreensível. A essa extensão incomportável tem de se chamar ambiguidade. Creio que a afirmação de Nicole Brenez vai no sentido preciso da inversão disto, quer dizer, no sentido de uma desambiguação. Optando por outra direcção, seria interessante pensar (o que terá talvez já sido feito), entre outras coisas, a complexa figura e tipologia dos (excelentes) secundários do clássico americano, como exemplo de uma manifestação complexa dessa política que o cinema constitui. É verdade que a natureza destas relações é um problema particularmente pantanoso, não apenas e sobretudo para um cinema chamado de político, ou para as preocupações cinematográficas de expressão de uma política, mas também para as demais expressões do cinema, em particular, as ficcionais. Mas é um problema que vale a pena pensar, em especial, sob o signo dessa distância que é a quebra da evidência dos gestos políticos do cinema.
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