Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O diferimento que salva

Um homem atravessa um pátio quando é atingido pelas costas por um disparo. Cai para a frente, sobre os joelhos, impelido pelos disparos que se seguem, sem hesitações, de um atirador descarado. Acaba deitado de barriga sobre o cimento daquele pátio esconso. Trata-se apenas do terceiro homem assassinado. Estamos, portanto, bem no início do filme.



Mas logo à primeira visão, um detalhe subitamente me distrai, desperta a minha atenção por assim dizer para fora, para dentro, não sei, da brutalidade repetida do filme, tão enigmática na sua secura serial, se bem que cheia de humor. Talvez que este homem, tal como os outros, reduzido que foi a esta súbita e desastrosa aparição, não quisesse mesmo morrer. A câmara, bem próxima, como que para captar o seu adeus, rodeia-o, antecipando os passos do assassino que completa, inutilmente, a sua acção. Enquanto recebe mais balas, inúmeras, pelas costas, que dilaceram o seu bonito kispo cinzento azulado, e se encaminha assim irremediavelmente para a morte, convulsiona-se com o impacto brutal daquelas. Se olharmos com atenção, trata-se sem dúvida de um gesto bonito, talvez não apenas de um gesto, mas de um agregado de pequenos gestos, estas convulsões daquele homem moribundo. Mas desde logo, algo de provavelmente inábil se introduz e quebra aquela sincronia esperada, apesar de tudo, meramente material. Um braço a destempo, demorou a mexer-se, a sacudir-se, e vai, apenas alguns frames mais tarde, pousar na fixidez do sem alma, mas com a verosimilhança desde logo estragada.



De referir que toda a representação das convulsões ou repelões causados pelos violentos impactos é extremamente conseguida, em particular, pelo carácter rápido e consolidado, se bem que variado, das sacudidelas. Os impactos seguintes já manifestarão uma sincronia progressivamente mais exacta entre matérias agora mais chegadas, porque ambas destituídas de vida, o inorgânico do metal da bala e o orgânico daquele corpo doravante inanimado.



Pensamos: que difícil deve ser representar uma cena semelhante, aquele encontro. Morrer, de cara virada para o chão, manifestando completamente o impacto das balas, tendo apenas como material um corpo progressivamente sem vida, sem outras possibilidades de expressão que não as dos rombos repelões de torso e ancas. Aquele actor, porventura na sua tão bela inabilidade, deu-nos a esplêndida imagem de uma vida que se esvai, não apenas enquanto “saco de batatas” que se convulsiona, mas também, e sobretudo, no diferimento que introduziu sucessivamente entre o receber a bala nas costas, o repelão do corpo e o mexer do braço. Aqui sim, sente-se a vida esvair, enquanto que, na perfeita adequação entre corpo seco e impacto, havia uma morte demasiado certa, já dada, em suma, inacreditável de abstracta. Talvez a própria ficção precise cada vez menos das verosimilhanças de uma suposta realidade, e mais destes pequenos gestos inacreditáveis, verdadeiros de tão falsos. Dirão que é um detalhe, que o resto do filme é porventura um exemplo de esquematismo sem falha, mas um detalhe sempre alegra, num cinema que se permite falhar, que faz entrar a luz, mesmo na série das mortes. Talvez não seja de somenos, talvez seja preciso, encontrar, a cada momento, em todos os passos, mesmo que subliminar, mesmo que inconsciente, sempre que necessário, este detalhe, diferimento que salva. Em cada uma das cenas essa falha mínima, invisível, onde se manifesta uma vida que teima, e a grandeza de um filme seria tão só a soma dessas falhas, das vidas que teimam, como esta em Elephant (1989) de Alan Clarke.

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