Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #68 (António Guerreiro)
«Sobre as virtudes do analfabetismo primário
Num texto intitulado “A Morte da Literatura”, M. S. Lourenço refere-se a uma distinção entre analfabetismo primário e secundário, feita por Hans Magnus Enzensberger. Foi num texto de 1985 que o poeta e ensaísta alemão estabeleceu a distinção entre as duas categorias de analfabetos, definindo o analfabeto secundário como o produto de uma nova fase da industrialização. Este tipo de analfabeto sabe ler e escrever e, diz Enzensberger, é ele o alvo privilegiado dos “meios de produção de imbecilidade” (meios impressos e audiovisuais).

Verificando que se deu, no nosso tempo, o triunfo do analfabetismo secundário e que os meios de comunicação estão maioritariamente programados à sua medida, Enzensberger faz o elogio do analfabetismo primário e acaba o texto atribuindo-lhe um papel essencial na sobrevivência da literatura, já que esta exige obstinação e memória, isto é, “as qualidades do verdadeiro analfabeto: talvez seja ele a ter a última palavra, já que não tem necessidade de outros ‘media’ que não sejam a boca e o ouvido”.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 31.10.2009.

Ditos de esquerda (Pedro Costa)

«Decorria também uma revolução política em Portugal na mesma altura, pela qual acabou a ditadura fascista, e as ruas estavam cheias de anarquistas, comunistas e socialistas, por isso dos treze aos vinte e dois anos eu tive tudo, a música, o cinema, a política, tudo ao mesmo tempo. O que isto me fez perceber foi que John Ford era cem vezes mais progressista e comunista do que os documentários ditos de esquerda, que diziam coisas como “o cinema é uma arma” e “mudar o mundo”. Eram Ozu, Mizoguchi e Ford que estavam na verdade a dizer isso, tínhamos era de ter a paciência para o ver.»
«There was also a political revolution in Portugal at the same time, where the fascist dictatorship ended and the streets were full of anarchists, communists, and socialists, so from the ages of 13 to 22 I had everything, the music, the cinema, the politics, all at the same time. What this made me see was that John Ford was a hundred thousand times more progressive and communist than so-called left wing documentaries saying things like “film is a gun”, and “change the world”. It was Ozu, Mizoguchi and Ford that were saying that really, you just had to be patient to see it.»

Pedro Costa, citado por Bruno Andrade n'O signo do dragão, entrevistado por James Mansfield em Little White Lies.

[Conferir «O 25 de Abril, segundo Pedro Costa», «Outro final para o 25 de Abril», e «Sobre o involutarismo de esquerda».]

Ao pé da letra #67 (António Guerreiro)

«Sobre uma nova categoria mediática: a dos politólogos

Quem lê os jornais e vê os debates políticos na televisão já deve ter dado pelo aparecimento de uma nova categoria que, até há pouco, estava confinada aos departamentos de ciências políticas e sociais: os politólogos. Um politólogo, quando passa para os media, tem de renunciar à sua ciência e funcionar como um simples comentador que vai dizer o que ‘acha’. Por exemplo: o que acha das relações entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. E assim as televisões e os jornais desviaram uma ciência para uso interno e efeitos de autolegitimação, desfigurando-a completamente, fazendo-nos acreditar que a tarefa dos politólogos é emitirem oráculos ou produzirem um discurso sobre o lado mais contingente da vida política.

É certo que os próprios – quase todos com obra científica respeitável –, cedendo ao pragmatismo, se têm prestado ao jogo. Mas o efeito é perverso, por uma espécie de lei da reversibilidade: os politólogos ocupam o lugar dos comentadores e opinadores, mas estes, por sua vez, adquirem um estatuto de politólogos. Se a ciência é opinião, então a opinião também é ciência. Neste jogo, quem perde sempre é a ciência.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 24.10.2009.

Ao pé da letra #66 (António Guerreiro)

«Sobre a condição de não-ganhador do Nobel

Todos os anos, algumas semanas antes da decisão da Academia Sueca, surgem listas de potenciais vencedores do Prémio Nobel da Literatura e fazem-se vaticínios e apostas. Surgiu assim uma nova categoria de escritores, que são os que não-ganharam o Nobel. Quem consegue manter-se durante alguns anos nessa condição de não-ganhador acumula um capital simbólico superior aos que ganham. Não-ganhar o Nobel torna-se uma distinção, um silêncio carregado de sinais canonizadores ou até uma prova de superioridade. Os não-ganhadores do Prémio Nobel servem de arma de arremesso contra os que ganham, reserva de grandiosidade que não cabe num prémio.

No fundo, a figura do Grande Escritor, tal como Musil a concebeu, é a do que não-ganhou e ficou a pairar nese limbo glorioso, mais alto do que todas as honrarias formais. Os que ganham têm um ano de vigência, findo o qual são subtituídos e remetidos novamente para o mundo profano; os que não-ganham governam durante anos e anos e adquirem uma soberania quase imperial. No reino das letras, são vistos como a verdadeira aristocracia, neste admirável sistema de classes que introduz um suplemento de glamour na sóbria república das letras.»
António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 17.10.2009.

Ao pé da letra #65 (António Guerreiro)

«Acerca das profecias que se auto-realizam

Agastado pelas abundantes citações que os jornais fizeram de uma nota no seu blogue sobre o silêncio do Presidente, Pacheco Pereira escreveu a seguir sobre a “operação Diário de Notícias”, terminado com uma predição: “Sempre quero ver se esta nota é citada.”. Cumpriu-se a profecia formulada de modo dubitativo, e a nota nunca foi citada. Pacheco Pereira tinha razão? Sim, na medida em que a sua profecia trazia, em si mesma, a razão que a confirma. Ela é necessariamente verdadeira porque tem o efeito de realizar o que enuncia. E alguém que viesse a citar a nota cairia fatalmente na armadilha que ela constrói: a sua citação teria sempre o sentido de um acto cometido para falsear o que é verdade desde o início, como aquelas cartas dos leitores que começam por dizer: “Estou seguro de que o jornal não terá a coragem de publicar esta minha carta.”

Trata-se, no enunciado profético de Pacheco Pereira, daquilo a que um sociólogo americano chamou “self-fulfilling prophecy”, da profecia que se auto-realiza. A estrutura deste tipo de profecia é comum a dois tipos de discurso: o discurso do paranóico e o discurso dos totalitarismos políticos.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 9.10.2009.

Ao pé da letra #64 (António Guerreiro)

«Os livros portugueses são feitos para a guerra

Uma fisiognomonia materialista dos livros produzidos actualmente em Portugal teria de proceder como quem faz a análise das manifestações superficiais de uma época para a tornar inteligível e verificar este detalhe: os livros portugueses são maiores – bem maiores – do que os livros ingleses, franceses, italianos, alemães... Têm menos espessura, mas ocupam uma maior superfície. O segredo desta particularidade (que abdicou das preocupações com a elegância) reside precisamente aí: na faculdade de conquistar espaço, de ter, por meio da pura e simples presença, uma estratégia de ocupação das livrarias e de expulsão dos seus rivais (porque a luta pelo espaço é desesperada e ganhou a feição de uma guerra civil).

O facto económico do fetichismo da mercadoria, que Lukács retraduziu em linguagem filosófica aplicando a categoria da reificação, encontra aqui matéria para uma revisão: Marx, na secção sobre o fetichismo, estava tão fascinado com a alma da mercadoria, com as suas “argúcias teológicas” e “subtilezas metafísicas”, que se esqueceu do que os nossos editores descobriram com júbilo guerreiro: o corpo da mercadoria.»

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Actual, 2.10.2009.

Raros filmes de Outubro


La région centrale
Michael Snow

1971, 180’
Contar o tempo*
(prog. Ricardo Matos Cabo)
4ª, dia 7, 22h
Cinemateca*, Lisboa
cf. Shooting down pictures*


Fat city
John Huston

1972, 100’
3ª, dia 13, 19h,
5ª, dia 15, 22h – Cinemateca


Tutuguri – Tarahumaras 79
Raymonde Carasco e
Régis Hébraud

1980, 25’, cor
Contar o tempo
3ª, dia 13, 19h30 – Cinemateca


Mon oncle d'Amérique
Alain Resnais
1980, 125’
6ª, dia 16, 15h30 – Cinemateca


Lost, lost, lost
Jonas Mekas
1976, 178’
Retrospectiva Jonas Mekas
DocLisboa 2009*

Sáb, dia 17, 11h
Culturgest, Lisboa
 

Programa Lumière
1895-1900, 85’
História permanente do cinema
(prog. Antonio Rodrigues)

Sáb, dia 17, 19h – Cinemateca
 

Trouble in Paradise
Ernst Lubitsch
1931, 80’
História permanente do cinema
Sáb, dia 17, 22h – Cinemateca


California Company Town
Lee Anne Schmitt
2008, 76’
Riscos 
(prog. Augusto M. Seabra)
DocLisboa 2009 

Sáb, dia 17, 22h30 – Culturgest
 

Cocorico! Monsieur Poulet
Jean Rouch
1974, 90’
Eram os anos 70
(prog. Antonio Rodrigues)
2ª, dia 19, 19h30 – Cinemateca


Poussières d'amour
Werner Schroeter
1996, 130’
DocLisboa 2009
3ª, dia 20, 19h
Sáb, dia 24, 21h
São Jorge 3, Lisboa


Die Nordkalotte / A calota polar
Peter Nestler
1991, 90’
Contar o tempo
3ª, dia 20, 19h30 – Cinemateca


Shirin
Abbas Kiarostami
2008, 92’
Riscos
DocLisboa 2009
3ª, dia 20, 20h30 – Londres 1, Lisboa


Sem nen kizami no hidokei:
Naginomura monogatari
/
A aldeia de Magino: um conto
Shinsuke Ogawa
1986, 222’
Contar o tempo
4ª, dia 21, 22h – Cinemateca


Material
Thomas Heise

1988-2009, 164’
DocLisboa 2009
6ª, dia 23, 16h15 – Culturgest


Les voitures d'eau
Pierre Perrault

1969, 110’
Contar o tempo
6ª, dia 23, 19h30 – Cinemateca


Les glaneurs et la glaneuse
Agnès Varda

2002, 62’
5ª, dia 29, 19h – Cinemateca


Les antiquités de Rome
Jean-Claude Rousseau

1989, 105’
Contar o tempo
6ª, dia 30, 22h – Cinemateca


Husbands
John Cassavetes

1970, 154’ (versão longa)
História permanente do cinema
Sáb, dia 31, 21h30 – Cinemateca


[apenas filmes vistos, sem repetições, em formatos originais]


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