Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O 25 de Abril, segundo Pedro Costa


«Enquanto preparávamos as cenas do passado na barraca de madeira, um dia o Ventura disse-me: “Eu morri aqui muitas noites.” Percebi nessa altura a prisão que esse lugar foi. A memória pode ser a melhor ou a pior das prisões. O Ventura foi ao mesmo tempo guarda e prisioneiro, só com esta carta por consolo, que, de repente, me pareceu que era só isso, ou seja, era só repeti-la.
– Ela tornou-se um refrão...
A repetição da carta acalma a sua dor, mas, por outro lado, anuncia os maiores horrores.
– A carta serve para não esquecer...
Posso dizer que nessa carta de Desnos, do Ventura e, de certa maneira, também minha há um desejo de vingança, uma sede de sangue. Está para além da carta de amor: é um testamento, um manifesto político e uma declaração de guerra.
– Contra o capital, contra a barbárie?
Pela memória, pela justiça e pelo amor.
– É contra o país?
Não se podem fazer filmes contra. Só consigo fazer filmes por. Pelos que não sabem escrever as cartas, pelos que não têm as palavras. Um filme, se não for feito com estas convicções, não existe.
Ventura lembra um dos prisioneiros de Auschwitz, com aquela camisa listada...
Nunca tinha pensado nisso. A camisa que arranjámos parecia-nos dos anos 70, mas lembro que, em Casa de lava, filmei o nosso próprio campo de concentração, o Tarrafal. Por vezes, sinto que não é assim tão diferente a tortura, o castigo, a sentença de morte numa barraca da Damaia ou em Auschwitz.»

«E perguntei-me: será que eu não me cruzei com este homem [Ventura] na rua, no metro, nalguma tasca do Bairro Alto? Afinal, estávamos muito mais próximos do que eu julgava. Neste encontro inesperado entre o seu passado e o meu, surgiu a identificação. E isso lançou outras ideias para o filme.
– Em que momento?
Por exemplo, quando percebi que o 25 de Abril, que para mim foi um entusiasmo, tinha sido para Ventura um pesadelo. Ele chega a Portugal em 1972, encontra trabalho bem pago, dão-lhe um contrato. Julga que se vai safar. Depois vem a Revolução e ele conta-me a história secreta dos imigrantes cabo-verdianos na Lisboa do pós-25 de Abril, a história que ninguém ainda contou. Eles tiveram muito medo de serem expulsos ou de acabarem na prisão. Barricaram-se. Nessa altura eu estava na rua, era adolescente. Durante a rodagem, fui procurar um álbum de fotos das manifestações do 1º de maio com aqueles milhares de pessoas em festa, e é incrível: não se vê um único preto. Onde estava eles? Ventura contou-me que estavam todos juntos, aterrados de medo, escondidos no Jardim da Estrela, a temer pelo futuro. Contou-me como a polícia militar, em plena euforia, partia à noite para os bairros de lata para “caçar pretos”. Parece que os amarravam às árvores para se divertirem. Juventude em marcha é também um filme sobre o fracasso do 25 de Abril, porque se a Revolução tivesse vencido, nem o Ventura nem os outros continuavam no mesmo abandono e na mesma infelicidade de há 30 anos. Não quero carregar de ironia o título deste filme, mas não posso nem quero esquecer que todos os “filhos” do Ventura são filhos do 25 de Abril. É por filmar estas coisas da maneira como o faço que não acredito na democracia. Pessoas como o Ventura construíram os museus, os teatros, os condomínios da burguesia. Os bancos e as escolas. Como ainda acontece. E o que eles ajudaram a construir foi o que os derrotou. Há duas partes neste filme, um passado e um presente das Fontaínhas, que coincidem também com o antes e o depois do 25 de Abril. O passado é fraterno, utópico, romântico. Neste tempo está a história da carta de amor que Ventura repete. O presente é resignado, infeliz, medíocre.»

«Quelle a été la réception du film au Portugal ?
Très difficile. Il y a une raison à cela. Un jour,Ventura me raconte l’histoire de la Révolution du 25 avril 1974, quand lui et les siens se sont cachés. « On ne comprenait pas, on voyait des soldats, tout le monde était dehors et criait. » Ils pensent alors qu’ils vont être expulsés, mis en prison. Ils se cachent, organisent des pique-niques clandestins dans les jardins pour échanger des informations. Une sorte de résistance à l’envers, très passive. Ventura m’a raconté des choses que j’ignorais. Ils ont subi des jeux semblables à ceux qui ont été pratiqués en Irak. La nuit, par exemple, les soldats passaient dans les bidonvilles pour s’amuser, ils prenaient des types qui jouaient aux cartes, les emmenaient à Sintra dans la montagne, les déshabillaient, les attachaient à un arbre et les abandonnaient là. Pour Ventura, ce fut un moment de maladie, de confusion, d’enfermement.
Or je crois qu’on ne peut pas raconter le 25 avril de cette façon négative, à travers les Cap-Verdiens. C’est très documentaire, très direct, cette chute dans un abyme historique. Il y a par ailleurs cette histoire de passé-présent que personne ne veut voir. Quelque chose, dans le film, raconte le Portugal d’aujourd’hui : la banlieue souffre d’une douleur enfouie. C’est un truc qui fait un peu peur, un côté malade, qui détruit les jeunes, qui détruit tout ce qui est positif. C’est un film très chargé d’informations, il faut le voir deux fois.»

Pedro Costa,
in «Recordações das casas dos mortos», entrevista de Oscar Faria, Público-Y, 24.11.2006;
«Guarda a minha fala para sempre», entrevista de Francisco Ferreira, Expresso-Actual, 25.11.2006
;
e in «Repliques», entrevista de Emmanuel Burdeau Thierry Lounas, [Cahiers du Cinéma], 4.12.2006




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