Revolução
«[...] Ponho-me a perguntar o que entende o vosso questionário por “revolução”, e não entendo. A minha revolução nunca existiu: visitei apenas alguns lugares, e em nenhum me consegui converter ao encontro dos meus desencontros. Quanto aos lugares, nunca estavam lá. Eram a conta aberta da minha imaginação. Mas sofri um pouco da sua ausência. Por isso dizem que o mundo não perdoa. Eu perdoei ao mundo visto as suas probabilidades serem sempre excessivamente improváveis. Mas como tenho todo o tempo para perder, é-me lícito e proveitoso dedicar-me à aventura que não encontra o seu próprio fim. Penso que estou fazer o possível para dar uma resposta coerente, na minha perspectiva, à incoerência das vossas perguntas. Concedo-vos tanto que chego a empenhar certa conivência, pondo em funcionamento uma curiosidade lateral, mas ainda assim animada de alguma vivacidade: mas houve alguma revolução?, mas vai haver uma revolução? Não reparei e, no entanto, sou tão permissivo às trombetas apocalípticas, e aos selos que se abrem no livro, e às trevas e luzes! Andei realmente a percorrer umas pequenas algazarras, saraus privados, brincadeiras que se proibiam à infância. Mas não dei por que as montanhas tivessem mudado de sítio, nem vi nenhum homem andar sobre as águas. No respeitante a cadáveres, onde estavam as ressurreições? Os cadáveres que havia eram, como sempre, bastante discretos. O que me pareceu foi as pessoas cheirarem a cadáver. O comum. As surpresas do mundo continuavam inoperantes, e, não seria eu a exigir-me surpreender o mundo. Nem o mundo o consente. Tudo o que acontece por acréscimo à burocracia depressa se demove, e cada um fica só, e às vezes inocente bastante para surpreender-se com tanta falta de surpresas. Não sofro de inocência. E a liberdade? Que pergunta! Não vossa, a pergunta, mas minha. Que a minha liberdade sou eu, e custo-me a sustentar. Entretanto, chegam-me notícias de que é necessário sustentar a liberdade alheia. Mas que faz o alheio, que não faz pelo seu próprio sustento? [...] Esta revolução, módica, tem o preço da vida. E não há outras: nem revolução, nem vida. Nem outro preço. Nem outro teatro do merecimento.» Herberto Helder, «(resposta a um inquérito convencional sobre revoluções, liberdades e)», Photomaton & Vox, Assírio & Alvim, Lisboa, 1979, pp. 163-165. |
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