Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #223 (António Guerreiro): O paradigma criminológico

Uma personagem de uma peça de Jules Romain, o doutor Knock, tinha uma tese com a qual anunciava o triunfo da medicina: "As pessoas saudáveis são doentes que se ignoram enquanto tal." Ele achava que era só por falta de controle que os doentes podiam passar por gente saudável. E esta lógica estendeu-se a todos os domínios: o contribuinte é um indivíduo fraudulento que não ousa dizer o seu nome, o professor é um inepto dissimulado no lugar do saber, o intelectual é, por definição, um pseudointelectual, o médico é um indivíduo que está ausente do hospital, o lugar onde é pago para exercer, etc. Estamos assim em pleno paradigma criminológico, através do qual se fabricam doentes, suspeitos, ignorantes e párias. Para a proliferação destas espécies indesejáveis muito contribuiu a atual ideologia da avaliação, que dispõe hoje de instrumentos afinadíssimos e de uso universal. As maiores vítimas deste processo são aqueles que, no exercício da sua profissão, tinham aquilo a que podemos chamar autonomia intelectual. Um professor do secundário (ou, recuando, do liceu) tinha-a em razoável medida; um professor universitário tinha-a totalmente. O preço a pagar era a impunidade dos medíocres e e dos loucos. Mas, em compensação, não se aniquilava o espaço de pensamento crítico.  

A normalização a todos os níveis que o avaliacionismo promove com obstinação serve não tanto para perseguir a incompetência e o mal mas para rasurar o que de bom existe e não cabe nas grelhas da avaliação. Aparentemente, toda a gente, hoje, perdeu a autonomia - que foi uma palavra mágica, tal como outra da sua família, 'emancipação'. Mas se ninguém tem autonomia (parece que nem os chefes, os diretores, os gestores, os patrões), o que é feito dela? Não existe em nenhum lado. Porque somos governados pelas coisas e só existe uma política das coisas. E, para a políticca das coisas, todo o indivíduo é um alvo.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 22.12.2012.

Ao pé da letra #222 (António Guerreiro): A miserável riqueza

Aqui ao lado há um texto sobre a pobreza. Acrescentemos-lhe como complemento necessário algumas considerações sobre a riqueza. Só a partir do momento em que a pobreza se tornou uma noção exclusivamente económica é que se passou a opor, sem qualquer desvio, à riqueza. O conceito de pobreza teve uma amplitude metafísica, hoje perdida, que encontramos nos grandes místicos (por exemplo, no mestre Eckhart) e em Espinosa, que nos fala da potentia da pobreza. Nesta aceção, vinda das ordens religiosas, os pobres viviam da sua própria riqueza, da sua perfeição intrínseca. E que riqueza era essa? A autonomia total, a força imensa de quem não tem nada e não quer nada e, por isso, escapa à apropriação e à lógica da propriedade. Assim entendida, a pobreza não se opõe à riqueza, mas à miséria. Quando, porém, a pobreza se tornou uma noção económica, passou a designar apenas o polo negativo da riqueza. E esta ficou exclusivamente associada à vida burguesa que simula uma falsa plenitude. Porquê?  

A pobreza era dona do tempo (ele era a única coisa de que as ordens monásticas se apropriavam), mas os ricos burgueses são hoje, por definição, consumidores de tempo que falta. Consomem dinheiro, muito dinheiro, e como é sabido a regra a que obedecem é exatamente oposta à das regras monásticas. É a regra que diz: “Tempo é dinheiro.” Nesta condição, não há tempo que chegue, porque o dinheiro só é vivo se não parar a sua circulação e acumulação. E, na medida em que só conhece o valor de troca, a forma moderna de riqueza eliminou o valor de uso. Os ricos de hoje não possuem uma riqueza, mas são possuídos por ela. Nada ilustra melhor esta situação do que o capitalista que é um assalariado da sua própria empresa, com horário de trabalho e gabinete de trabalho com vista para a miséria do mundo que é o microcosmos empresarial.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 15.12.2012.

Ao pé da letra #221 (António Guerreiro): A missão histórica

Uma frase de Passos Coelho, aparentemente anódina, numa recente entrevista, abre um mundo vasto de significação: foi quando o primeiro-ministro disse que “o Governo está a cumprir uma missão histórica”. O imperativo das missões históricas marcou a política ocidental na época moderna, e quando essa missão histórica foi assumida em nome de um povo ou de uma nação correspondeu muitas vezes a uma missão metafísica (como é o caso do nazismo). A “missão histórica” é a política dos que se imaginaram grandes heróis e deixaram o caminho juncado de cadáveres. Mais perto de nós, tornou-se evidente que já não existem missões históricas a cumprir. Corolário desta ausência de uma vocação histórica (missão tem o sentido de vocação, de chamamento) foi a tese de que tínhamos chegado ao fim da história. Não se trata de ver nas palavras de Passos Coelho o sentido sinistro que elas tiveram noutro contexto histórico; devemos no entanto observar que elas trazem um progressismo escondido que supõe a marcha em direção a uma nova época e a uma nova felicidade.  

O nosso primeiro-ministro faz-nos uma promessa progressista que nós, no sítio desolado em que nos encontramos, desencantados, temos dificuldade em reconhecer como mobilizadora. Pelo contrário, a noção de “missão histórica” tem hoje para nós o aspeto dos objetos farfalhudos e inúteis, com alguma aura de antiguidade, exibidos nas lojas de velharias. Servem como peças decorativas, mas se tentarmos utilizá-los eles revelam-se não funcionais e nós mostramo-nos inábeis. Só por determinação de uma máquina linguística que funciona estendendo uma trama de lugares-comuns e frases feitas é que nos dispomos a trair a época com missões históricas, porque o que queremos mesmo, com urgência, é que o nosso próprio tempo, de que fomos expropriados, nos seja devolvido. Esta, é uma tarefa política; aquela é a tarefa de uma máquina mitológica.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 8.12.2012.

Ao pé da letra #220 (António Guerreiro): Era uma vez os intelectuais

Numa das suas últimas crónica, no “Público”, fazendo uma crítica feroz deste Governo, J. Pacheco Pereira evocava “os intelectuais” e a tarefa que Emerson lhes atribuía: anular o destino, pelo pensamento. Pacheco Pereira é suficientemente lúcido, culto e conhecedor da história para não cair na nostalgia pelos intelectuais universais do tempo das visões do mundo, a que muita gente se abandona ciclicamente. Ele sabe muito bem que esse intelectual universal, que desempenhou um papel tão importante no final do século XIX e princípio do século XX, deu lugar a uma outra figura a que Foucault chamou o “intelectual específico”, com outro significado político. Mas o facto de evocar a obrigação do antigo intelectual – recordando também os erros e os crimes de que este foi autor ou cúmplice – mostra que se tornou inevitável, em certas circunstâncias, revisitar esta figura depositada nas caves da história, quando as circunstâncias reclamam mais do que escritores, artistas e filósofos que se limitam a gerir as regras autónomas do seu próprio campo.  

Como mostra Bauman num livro sobre a “decadência dos intelectuais”, estes passaram de legisladores modernos a intérpretes pós-modernos, e a elite intelectual é hoje um grupo social que se ocupa preferencialmente de si ou, na melhor das hipóteses, do sector específico a que pertence. Assim, a cultura já não pode ter uma função crítica relativamente à sociedade, pondo em confronto valores e modos de vida, na medida em que se tornou um mero sector ‘produtivo’, rendido às argúcias teológicas da mercadoria como fetiche. Sob administração de burocratas e comissários políticos que só pensam em termos de consenso, este território inofensivo luta apenas para se manter e reproduzir. A sua tarefa é fazer a síntese total, onde tudo é compatível com tudo, e não a cesura crítica que “anula o destino”.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 1.12.2012.

Ao pé da letra #219 (António Guerreiro): Precioso, isto é, sem preço

Nos últimos tempos, temos sido informados do preço de tudo: quanto custa um aluno do ensino básico, do secundário, da universidade; quanto custa oferecer na escola X a disciplina de opção Y; quanto custa um doente que depende da hemodiálise; quanto custam os funerais daqueles que não deixaram dinheiro — nem família — para o seu próprio funeral. Esta ostentação do preço é um exercício de má-fé com consequências perigosas, na medida em que quebra uma regra de universalidade e de anonimato e instaura uma espécie de guerra civil que já começa a emergir num confronto intergeracional. Um aluno de qualquer nível do ensino sempre teve um preço, o que é novo é o facto de essa quantificação ser ostentada publicamente, se ter tornado objecto de um cálculo e instrumento ideológico. Devemos ver aqui uma regressão que quebra a lógica da reciprocidade e do dom que funda a sociedade. Afixar um preço a tudo significa considerar intolerável o que faz parte de uma economia não produtiva, da perda sem contrapartida e do gasto gratuito: aquilo a que Bataille chamou dépense, inspirado no princípio do potlach, de Marcel Mauss.  

A teoria do dom, de Mauss, mostra bem como não é possível uma sociedade sem o elemento heterogéneo, o gasto improdutivo, que transgride a homogeneidade da lógica da produção. A heterogeneidade da dépense é a festa, a arte, o sexo, as atividades rituais. Em suma, tudo aquilo que implica o gasto que é um fim em si. Ora, no domínio político, o discurso que estamos mergulhados é o da exclusão pura e simples de todo o elemento heterogéneo. Pode a política suprimi-lo? Não. E é por isso que, mais inteligente do que todos os políticos europeus, Obama terminou o seu discurso de vitória dizendo que “o melhor está para vir”. Não é uma promessa eleitoral: é uma alusão à festa, ao potlach, que constitui a própria condição de possibilidade da política.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 24.11.2012.

Ao pé da letra #218 (António Guerreiro): Os jovens e os novíssimos

Quando hoje nos confrontamos com “Rumor Branco”, de Almeida Faria, publicado em 1962, tinha o autor 19 anos, temos de pensar que se trata de um livro de juventude; e que isso não é apenas uma circunstância da identidade civil do escritor mas algo que marca o romance e a que poderíamos chamar, com palavras alheias, “metafísica da juventude”. Grandes obras literárias, artísticas e filosóficas do início do século XX muito devem a esta metafísica da juventude. No nosso tempo, a juventude tornou-se um padrão comportamental e de consumo, mas desapareceu como categoria do espírito: não tem pretensões históricas (não interrompe nem desvia o curso do mundo) nem metafísicas (tornou-se mero objeto sociológico). No lugar da juventude está agora a novidade; em lugar dos escritores impregnados dessa força utópica, com um forte alcance político, que é a metafísica da juventude, temos agora “os novos”, que na versão superlativa são “os novíssimos”.  

Ainda há poucos dias ficámos a saber que o grupo editorial Leya tinha enviado ao Brasil uma delegação de “novíssimos autores”, com o apoio do Instituto Camões, que, pelos vistos, se sentiu mobilizado por uma operação comercial. A reportagem que Alexandra Lucas Coelho faz do acontecimento, no “Público”, é muito cruel: a imagem que dá dos “novíssimos” é a de que estão num tour de tagarelice pelo Brasil. “Novíssimos”, não emerge neles uma réstia de juventude, apenas de infantilidade. Lendo a reportagem, parece que regressaram à fase do chichi e do cocó. A ideia de uma metafísica da juventude está ligada a uma geração trágica delapidada pela guerra: os “novíssimos”, sem juventude nem metafísica, são também soldados de uma guerra em curso, sem grandeza nem tragédia, mobilizados para a batalha da novidade, com a linguagem que os velhos lhes forneceram, sem nenhuma conceção da História.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 17.11.2012.

Ao pé da letra #217 (António Guerreiro): O jornalismo e o homem médio

A ameaça de extinção que paira sobre os jornais convida-nos a um olhar retrospetivo, a recordar que o jornalismo e a universidade foram os dois grandes instrumentos da racionalidade iluminista, do seu projeto de socialização do saber e da cultura, criando uma sociedade para a cultura e desenvolvendo uma cultura para a sociedade. A crise dos jornais é apenas um dos aspetos do fim desse projeto, declarado com grande estrondo no final dos anos 70. No entanto, nunca faltaram membros destacados das elites para lançarem sobre os jornais a sua desconfiança ou até o seu radical desprezo. Se Hegel falava da leitura do jornal como a oração matinal do homem moderno, Balzac achava que, “se o jornalismo não existisse, seria sobretudo necessário não inventá-lo”. A crítica ao jornalismo teve quase sempre origem num pensamento reacionário (seja ele o de Balzac, o de Kierkegaard ou, numa dimensão militante, o de Karl Kraus). Mas ele também se tornou num alvo fácil quando passou a alienar a sua matriz crítica, quando a oração matinal foi substituída pelo entretenimento e quando passou a servir exclusivamente uma figura que ele próprio construiu: o homem médio.  

Em “La Ricotta”, de Pasolini, há uma sequência em que Orson Welles, sentado na cadeira de realizador, é entrevistado por um jornalista e acaba por ler um poema ao seu entrevistador. No final da leitura, pergunta ao jornalista: “Entendeu alguma coisa?” O jornalista começa a fazer uma paráfrase idiota e é interrompido: “Você não entendeu nada porque é um homem médio. Um homem médio é um monstro, um perigoso delinquente.” Estas palavras têm de ser compreendidas à luz da visão apocalíptica de Pasolini, da sua ideia da classe média como o fim do mundo, mas é certo que, ao estabelecerem o “homem médio” como o seu padrão, os jornais se dissolveram na mediania que não precisa deles para nada e os aniquila.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.11.2012.

Ao pé da letra #216 (António Guerreiro): Mais tempo, menos história

Devemos olhar com muita impaciência e pouca tolerância o modo como os políticos procuram legitimar a sua ação e justificar os seus erros regressando sempre ao passado imediato e aos seus antecessores. Não só porque há sempre aí uma razão fraudulenta que consiste em selecionar ad hoc a história que lhes interessa e nos limites cronológicos que servem para a justificação, mas sobretudo porque isso faz dos políticos profetas virados para o passado, incapazes de verdadeiramente apreender o seu tempo e de ter a coragem e a sabedoria de serem contemporâneos. Nesta errância que os leva a sacar do passado recente como quem saca da pistola, há um fator de esterilização do discurso e de impotência da ação. Esse impulso, que já há muito tempo ultrapassou os limites do razoável e arrastou o discurso político para as regiões ínferas do mesquinho (aí, onde o pântano cresce), é a manifestação dramática — às vezes, de um dramma giocoso — de que os políticos que assim agem (e não é fácil encontrar exceções) não estão à altura da exigência mais própria e mais urgente de toda a política: a de saber manter o olhar fixo no seu tempo, não para o apreender nos seus aspetos evidentes, luminosos, mas para perceber o que nele há de escuro.  

Apreender a ocasião contida no tempo, aquilo a que a sabedoria grega chamava o kairos (o tempo de agora e não o tempo de então), antes que ela seja mais uma vez traída por saltos no tempo (de pulgas e não de tigres), é a única tarefa política digna desse nome, capaz de nos salvar de exercícios mesquinhos amplificados na forma do espetáculo. Em tempos, o artista americano Robert Rauschenberg, numa entrevista, reclamou para os artistas “mais tempo, menos história”. Devemos reatualizar esta reivindicação, trazê-la para o campo da política e saber ver em cada segundo que passa a força de uma presença — e não de uma história — inaudita: um tempo messiânico.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 3.11.2012.

Se vamos falar de espectáculos por que não começar por falar de espectáculos (Ana Bigotte Vieira)




Se vamos falar de espectáculos por que não começar por falar de espectáculos?
Os espectáculos que vejo merecem ser acompanhados. Dão muito trabalho a fazer, a pensar, a imaginar, a ensaiar. Bem ou mal, interessem-me ou não me interessem, em cada um deles há uma visão de mundo, uma tentativa de criar mundos possíveis, um viver em colectivo que se experimenta praticando, várias questões que se levantam. Há também uma questão de olhar, de autoria, de linguagem estética, de enquadramento na história das formas das artes, formas estas igualmente enquadráveis socialmente. Acredito que há em muitos deles um corpo a corpo com possibilidades outras, possibilidades que se realizam habitando, com o corpo, um espaço de potência - potência de ser, de estar, de estar com; de representar ou presentificar possibilidades de existência, resistência, re-existência, e (por que não?) aceitação ou mesmo glorificação do existente. Interessa-me a sua relação discursiva com a sociedade, o modo como se inscrevem ou não inscrevem na ordem dos discursos, o modo como o que dizem se relaciona com o que fazem, e o que fazem a quem os vê. Interessa-me fazer essa relação visível tal como eu a vi, ajudando assim a faze-los visíveis, acusando que é de uma visão, a minha, que se trata.

Se vamos falar de espectáculos por que não começar por perguntar como vamos falar de espectáculos?
O discurso possível é possível porque os discursos o fazem possível. É contra o pano de fundo maior da questão da “participação” na sociedade portuguesa que uma iniciativa como a deste seminário se enquadra. Por que razão não há crítica de artes performativas nos jornais? Por que razão não há nenhuma iniciativa de crítica de artes performativas relevante na blogosfera portuguesa? Por que razão tiveram instituições como a Culturgest, o São Luiz Teatro Municipal, o Alkantara e o Maria Matos de dar o pontapé de saída? Por que o fazem nestes moldes? O que são as “formações” hoje em dia, que papel cumprem?
Quando me candidatei ao Mais Crítica não pensei a sério nestas questões. Parecia-me que fazia falta um espaço de discussão, estava farta de ver os espectáculos não terem críticas e achei que podia dar um contributo, mesmo não sendo grande adepta da crítica tal como ela é feita nos jornais ou na academia por via Estudos Literários, mas sim da reflexão dos Estudos de Performance nos seus cruzamentos com as Ciências Sociais. Estava sinceramente entusiasmada com o facto de a iniciativa ser em grupo, apetecia-me acompanhar espectáculos numa base regular e discuti-los com mais gente. Só que quando a coisa começou a questão do lugar colocou-se à frente de tudo: quem pode falar, onde, em que moldes, como é recebido o discurso tendo em conta de onde se fala. Era o modo como a nossa escrita se inscrevia ou não na ordem dos discursos - a nossa escrita vinda de uma “formação” e apoiada pelas instituições o que primeiro de tudo estava em causa. Não quero repetir aqui uma discussão que se fez pública aqui, antes remeto para ela. Menciono-a porque me fez repensar a minha participação no Mais Crítica.
À medida que a minha argumentação nessa discussão se ia desenvolvendo o meu entusiasmo inicial foi-se desvanecendo e fui tendo vontade de participar num projecto de crítica, sim, mas não nestes moldes. Interessa-me não a fomentada e acompanhada formação de seis vozes especializadas em Artes Performativas, mas a abertura de um espaço de discussão entre gente que faz, gente que vê e gente que escreve (e vice-versa, as posições não são fixas – é uma conversa). Interessa-me pensar em conjunto sobre como as coisas “agem” e nisso poder escrever sobre espectáculos, blogs, discursos, gestos, leis, manifestações, hierarquias, o que falta e o que está em potência, “agindo” com isso.
Não estou com isto, de todo, a desacreditar o projecto do Mais Crítica, antes pelo contrário, é por me parecer relevante e por a crítica fazer falta que me candidatei: Força Mais Crítica! Apenas cheguei à conclusão de que não me revejo nele e que por isso não consigo ter vontade de participar.

Ana Bigotte Vieira

Ao pé da letra #215 (António Guerreiro): “Sentido de Estado”

“Sentido de Estado” é uma qualidade tão reclamada e respeitada que, muito embora ninguém tenha, alguma vez, dado uma definição segura de tal coisa e, em rigor, ninguém saiba o que é, nunca ela é dita sem o gesto enfático da reverência. Tal como é geralmente entendido, o sentido de Estado evoca com alguma evidência aquilo que no teatro clássico se chamava as “regras da bienséance”, segundo as quais tudo o que se passava no palco devia ser conforme à verosimilhança e à moral. É fácil perceber a pertinência desta analogia: não é possível pensar aquilo que é designado como sentido de Estado sem o relacionar com a performance teatral na cena política, sem que se exponha o plano da representação e da encenação. Por exemplo, um político como Mário Soares libertou-se manifestamente da obrigação de representar o sentido de Estado — uma prerrogativa que lhe vem da idade e do capital simbólico que acumulou. Mas que pode significar um tal “sentido”, quando ele é proclamado e reivindicado até por quem recita diariamente a ladainha (que não deixa de ser verdadeira, muito embora a sua verdade seja diferente da que ela nos quer convencer) de um Estado empecilho, ineficaz e, em si mesmo, tendencialmente monstruoso?  

Foi certamente quando o Estado começou a perder todo o sentido que se começou a falar de sentido de Estado. Em tal expressão, ecoa um sisudo anacronismo e dá-se a ver uma roupagem vetusta, usada em palcos e representações que já não são os nossos. “Razões de Estado” — eis o que se dizia noutro tempo, anterior ao sentido de Estado (que pode ser definido por antífrase: é o Estado anestésico), quando a vocação dominadora e guerreira era assumida como uma missão. Será então o sentido de Estado a prova de que o Estado perdeu a sua razão — e anda à procura do seu sentido — e, como uma corista reformada, sobe ao palco de um cabaret decadente e imagina que está no Grande Teatro Nacional?.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 27.10.2012.

Ao pé da letra #214 (António Guerreiro): A pilhagem legal

Em tempos não muito recuados, a linguagem rude que reduzia todas as decisões políticas a uma cleptocracia tinha um autor tipificado: os taxistas. Sabemos agora que em determinadas circunstâncias essa linguagem se vai universalizando e até o antigo presidente de um partido pôde dizer que a subida dos impostos é “um assalto à mão armada”; e um cronista e comentador político, que tem um gosto especial pela alarvidade, falou mesmo em sodomização. Concluindo: quando o humor psicopolítico das elites se torna semelhante ao das classes menos cultas, a linguagem também é análoga. Importantes são, pois, as determinações do humor psicopolítico. E esse, como já reparámos, sofreu uma mudança brusca e geral, tendo como motivo mais óbvio os impostos. O paradoxo da “pilhagem legal”, formulado por Tomás de Aquino, passou a fazer parte das conversas: na rua, no táxi, no café, nos jornais e nas televisões.  

Ora, mesmo quem nunca sentiu necessidade de pensar os processos de um Estado fiscal, tem agora motivos urgentes para o fazer, já que o que resta da democracia sofreu um forte embate: o sistema fiscal recorre a práticas absolutistas ‘naturalizadas’ (o filósofo Peter Sloterdijk, num livro de 2010 sobre os impostos, faz essa referência ao absolutismo, indo até mais longe: “Não saímos da Idade Média fiscal”). Mas essa práticas, ao serem exasperadas, levadas a um limite extremo, dão-se a ver na sua arbitrariedade e quebram o vínculo necessário entre os rendimentos do Estado e os benefícios que os cidadãos deles extraem. Enfraquecido esse vínculo aos olhos do cidadão, o modo de arrecadar e justificar os impostos ganha uma dimensão inaceitável para uma ordem democrática. E é aqui que estamos: o humor psicopolítico dominante mostra que já foi transposto um limiar que abre para um território do qual não temos ainda a cartografia, mas adivinhamos que deve ser bastante acidentado.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 20.10.2012.

Ao pé da letra #213 (António Guerreiro): A república universal das Letras

Tendo-se tornado raríssima — e quase exclusivamente por conta de editoras universitárias — a edição de livros de crítica literária, surpreende, à primeira vista, que a Quetzal edite um livro de um crítico inglês, James Wood, que vive na América e escreve para publicações como “The New Yorker” e “The New York Review of Books”. Bons motivos de regozijo se ofereceriam em tal iniciativa se ela não fosse um sintoma eloquente do estado miserável — disfarçado de cosmopolitismo — da república das letras. Traduzir este livro — “A Herança Perdida” — e editá-lo baseia-se no pressuposto de que há um público afastado dos meandros eruditos e especializados da crítica literária (a capa, com as letras do título em relevo, é o primeiro índice indiscreto da vontade de popularização) interessado em bibliografia secundária sobre autores americanos e ingleses modernos e contemporâneos (V. Woolf, T. S. Eliot, Don DeLillo, John Updike, Philip Roth, Julian Barnes e outros), na condição de o autor ser alguém que “conseguiu transformar a crítica literária num assunto pop sem ceder em nada à facilidade” (assim é apresentado James Wood na badana).  

Entretanto, o último volume da obra completa de Eduardo Prado Coelho, que compreende “A Mecânica dos Fluídos” e “A Noite do Mundo“ (editado pela Imprensa Nacional), nem sequer chega às livrarias. Em todos os seus cálculos e operações, a “vida literária” supõe que o que interessa é uma nova ideia de literatura universal — dominada por uma ficção de lugar nenhum — que atravessa fronteiras mal é publicada, quase sem precisar de ser traduzida, e que chegou ao fim toda a herança da “literatura nacional”. Em suma: aquilo que faz com que um João Tordo e um José Luís Peixoto sejam internacionalmente premiáveis, enquanto uma Agustina e uma Maria Velho da Costa nunca conseguiram sair, mesmo quando traduzidas, do seu lugar minoritário.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 13.10.2012.

Ao pé da letra #212 (António Guerreiro): A vida pobre

O que significa a promessa, em fase de cumprimento, de que vamos empobrecer? Como a pobreza é sempre relativa — ensinou Simmel num estudo de 1907 sobre os pobres —, em relação a quê estamos a empobrecer? A resposta é óbvia: em relação aos padrões e modos de vida das últimas décadas. Mas aqui impõe-se uma distinção entre modo de vida e forma de vida, que é uma noção essencial em Foucault. A forma-de-vida (os hífenes ajudam-nos a perceber melhor do que se trata) é uma vida que não se pode tornar objeto de cálculos estratégicos governamentais porque é inseparável da sua forma: uma vida em que todos os atos e processos que a definem são possibilidades de vida e não meras contingências. Neste sentido, quando os governantes nos dizem que é preciso alterar os modos de vida, isso implica forçosamente separar a vida da sua forma. Só esta separação garante que se pode dar um empobrecimento generalizado sem que, por isso, se inventem novas formas-de-vida: algo que os aprendizes de feiticeiro da planificação económica têm como missão evitar a todo o custo que aconteça.  

Usando um exemplo esclarecedor: podemos todos empobrecer, até cair na indigência, o que não podemos — ou, pelo menos, poderosas são as forças que zelam para que tal não se dê — é inventar uma forma-de-vida em que a pobreza seja uma potência (como foi o franciscanismo, para dar o exemplo mais extremo). O que nos é prescrito com inaudita violência é que ‘ajustemos’ a nossa vida, a ‘modelizemos’ segundo as novas circunstâncias, mas que isso se faça sobretudo sem que mudemos de forma de vida. E se a noção foucaultiana de forma de vida nos ajuda a perceber teoricamente a questão, em termos histórico-pragmáticos o facto catastrófico de a vida ser separada da sua forma foi apreendido, com uma consciência trágica, por Pasolini, que dizia de si: “Mais moderno que todos os modernos [...] eu sou uma força do passado.”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 5.10.2012.

Ao pé da letra #211 (António Guerreiro): Prémio e castigo

Por uma espécie de inversão que vale como índice indiscreto do filisteísmo, os prémios literários, na sua maioria, servem para celebrar a instituição que os dá e não para honrar quem os recebe. Nestas circunstâncias, ser nomeado como vencedor de um prémio pode revelar-se um castigo infligido a um autor, que vai ter de se conformar ao cerimonial de afirmação e glorificação alheias como se a festa fosse sua e a tivesse reclamado. Ao recusar que o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, lhe fosse entregue pelo primeiro-ministro, Maria Teresa Horta não fez mais do que usar uma prerrogativa a que tinha pleno direito. Visto como um mero gesto de hostilidade da escritora em relação ao poder político do momento, o episódio fica encerrado num estreito espaço, para onde confluem acriticamente apoiantes e detratores. Ora, o que está em jogo tem um alcance mais vasto, de modo a suscitar esta questão: porque é que um prémio literário concedido por uma Fundação que não é tutelada por nenhum Ministério há de convidar um ministro — seja ele primeiro, segundo ou terceiro — a entregar o prémio, obrigando o premiado a ser oficiante numa cerimónia regida pelos protocolos governamentais?  

Se a esta pergunta respondermos que ela está no pleno direito de o fazer, teremos também de responder que o premiado está no pleno direito de recusar. E decorre daqui que deveria também recusar o prémio? Mas esse foi atribuído sem que o premiado se tivesse apresentado a um concurso (portanto, sem dar o seu assentimento implícito ou explícito) por um júri que, presume-se, gozava de plena autonomia. Nunca passou pelas cabeças destas instituições que poderiam estar a cometer uma violência completamente ilegítima e que, na verdade, já muita gente antes da Maria Teresa Horta se sentiu violentada nessas cerimónias — presididas por outros primeiros, segundos ou terceiros ministros — de autocelebraçao do mecenas?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 29.9.2012.

Ao pé da letra #210 (António Guerreiro): A magia da comunicação

Desde há muito que a política é desencantada, mas a comunicação, essa, é mágica. É isto que temos de concluir do investimento comunicacional que os políticos assumiram como tarefa e a cujas falhas atribuem todos os desentendimentos e diferendos com os cidadãos. A comunicação não é propaganda (estamos longe desses tempos do totalitarismo moderno), mas pedagogia. A propaganda criava uma realidade, era o instrumento da política entendida como obra de arte total; a comunicação é o discurso do mestre dirigido a quem não acedeu ao estatuto de maioridade. Ostensivamente, e como se fosse algo cheio de qualidades, instalou-se a comunicação em vez do discurso político e a pedagogia em vez da discussão. O político comunicante e pedagogo tem uma convicção: a de que tem uma atividade pastoril que consiste em conduzir o rebanho por bons caminhos e todo o desvio se deve ao facto de não ter comunicado de maneira eficaz as instruções e os objetivos.  
E tem uma missão: impor as suas iluminações como saber único, virtuoso e indiscutível. Do ponto de vista desta racionalidade comunicativa, se os cidadãos reagem é porque não perceberam: porque a competência comunicativa foi escassa ou – hipótese sempre implícita – porque são genuinamente estúpidos. Esta crença sem limites na comunicação vê na linguagem um mero veículo em sentido único, nos cidadãos uma massa inerte e destituída de palavras próprias, eliminando assim toda a racionalidade política. Neste sentido, a comunicação é o ato pelo qual se opera uma espoliação do discurso político e se esvaziam os lugares onde ele era tradicionalmente produzido. Estes novos magos da comunicação vivem no mundo da transparência, da pedagogia dos mestres, do material didático de hipermercado. A regra que os determina pode ser enunciada desta maneira: quanto menos têm para dizer, mais têm para comunicar.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 22.9.2012.

 

Ao pé da letra #209 (António Guerreiro): A anatomia masculina do crime

Com uma cadência regular e nada lenta chega a notícia de que mais uma mulher foi morta por um homem: marido, namorado, companheiro, amante e demais espécies masculinas de grande vulnerabilidade passional. Alguns matam-se, depois de matarem, ou entregam-se à polícia. Raras vezes temos a notícia de que uma mulher matou um homem e, quando tal acontece, há geralmente uma longa história de maus tratos que se interpõe. Se toda a violência exercida pelos homens sobre as mulheres fosse castigada, o cárcere seria a morada permanente de uma parte considerável dos machos humanos. Ainda assim, à conta de outros crimes que não são tipificados como masculinos, as prisões estão cheias de homens – a população carceral feminina é uma pequeníssima minoria. Dizem-nos que as escolas são lugares de grande violência. Mas falta acrescentar: são sobretudo lugares de violência masculina, com uma incidência enorme de insucesso dos rapazes relativamente ao das raparigas. Mal ganharam liberdades e direitos, as mulheres encheram as universidades, tanto quanto os homens enchem as prisões e os lugares obscuros onde se chega sempre em queda.  
A dominação masculina, baseada em algo que se transmitiu como um ‘direito natural’, tem por sua conta uma história tão infame e criminosa que, comparados com ela, os grandes genocídios são notas de rodapé no livro negro dos terrores. E, no entanto, perante este irreparável, a ideia de uma “guerra dos sexos” nunca teve e continua a não ter outra conotação que não seja a que diz respeito à questão metafísica (mesmo muito metafísica) da diferença sexual. Outrora, a afirmação feminista foi muitas vezes acusada de decalcar a lógica da luta de classes e, por essa via, entrar no radicalismo. Mas se imaginássemos uma resposta do feminismo à altura da realidade com que ele se confrontou, teríamos de achar plausível a hipótese de vivermos numa guerra civil sem tréguas até ao dia do Juízo Final.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 15.9.2012.

Ao pé da letra #208 (António Guerreiro): Defender Rui Ramos contra os seus defensores

Esta croniqueta tem o propósito avantajado de defender o historiador Rui Ramos contra os seus defensores. Para refutar e defender-se de um crítico – Manuel Loff – mais exaltado do que a atitude científica recomenda, tem o próprio todos os meios – como se viu – e até espaço largo para repousar sobre a frágil argumentação esgrimida pelo adversário, que não parece ter ouvido o coro angélico a soprar-lhe ao ouvido uma antiga exortação revolucionária: “Manuel encore un effort...”. Mas para se defender dos seus defensores indignados que se puseram em fila e foram gritando, à vez, que era preciso banir o difamador e retirar ao aleivoso a coluna do jornal onde ele exerce os seus pérfidos ofícios – para se defender desta gente, dizíamos, que só tem para exibir a verdade enfática do gesto nas grandes circunstâncias da vida (a parte final da frase é de Baudelaire e não precisa de aspas) e é um estorvo na relação de um investigador com os seus pares, Rui Ramos ficou desarmado como um refém. 
Do discurso do seu crítico, ou detrator, para darmos um sentido mais puro às palavras da tribo (a parte final é de Mallarmé), podíamos ainda assim esperar, com uma boa vontade nascida do desejo, que ele seria um pretexto para inaugurar a nossa serôdia “querela dos historiadores”, sem Nolte nem Habermas, mas fazendo do nosso modesto “passado que não quer passar” um estimulante campo de batalha, como é toda a historiografia. Mas essa pequena frincha por onde podia ter entrado o debate foi imediatamente fechada pela dança pública da indignação, por um nauseabundo cortejo do desagravo que age com um pressuposto inaceitável e ofensivo: o de que os leitores, na sua ignorância, estão à mercê de um reclamado manipulador, cujas manobras de prestidigitador só eles – os espertos e iluminados – topam. E foi assim que ganho carácter de urgência a defesa de Rui Ramos contra os seus defensores.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 8.9.2012.

Ao pé da letra #207 (António Guerreiro): O espírito da classe média

A classe média, de que tanto se fala hoje, é uma categoria sociológica que já teve um nome muito mais carregado de significado político-cultural: pequena burguesia. A nomeação e caracterização da pequena burguesia foi uma tarefa a que se entregou com persistência a crítica da ideologia. Esta chegou ao seu fim precisamente quando a pequena burguesia, a sua bête noire, que Barthes disse ser “histórica e politicamente a chave do século XX”, se tornou universal, quase sem exterior porque nela se dissolveram as velhas classes. O triunfo planetário da classe média, que na verdade declina qualquer identidade social e só conhece o inautêntico e o impróprio, corresponde ao que noutro plano se chamou o fim da História – último ato da tragicomédia da História universal. Sob o nome de pequena burguesia, ela significava a intelectualização do kitsch, o filisteísmo cultural, um estado de espírito que julga tudo em termos de utilidade imediata e de valores materiais, o culto da individualidade e do hedonismo. 
O pequeno burguês não é necessariamente ignorante, mas a sua cultura procede pela homogeneização e anulação de tudo o que pode ameaçar a sua utopia concreta da mediocridade que se impôs, aliás, como estilo de vida a que todos aspiram. Assim, para ele, a literatura reduzir-se-á à cultura literária, na arte perseguirá sempre a cultura artística, e assim por diante: a cultura da cultura foi sempre, do ponto de vista intelectual, o seu único objetivo. Pasolini viu esta burguesia como responsável por uma destruição totalitária, como um agente do fim do mundo. Pensar, como é hoje frequente, que a classe média está a reduzir-se por via de um empobrecimento generalizado é desconhecer que ela é infinitamente dúctil, já que se trata de uma categoria do espírito, mais do que uma classe social: e é na condição de tal categoria que ela vive, sobrevive e se reproduz.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 1.9.2012.

Ao pé da letra #206 (António Guerreiro): Turistas são os outros

A mais profunda aspiração de todo o turista é subtrair-se ao turismo e não ser como os outros. E como são os outros turistas? Todos infantis, aparvalhados, destituídos de autonomia, guiados pelos tropismos da multidão. O turista é uma presa fácil das armadilhas da reversibilidade cómica: está no centro da cidade histórica ou em qualquer outro lugar, percorrendo as “coisas a ver”, e é ele que se torna a coisa mais visível. Na museificação generalizada que retira as coisas do seu uso, o turista não tem apenas o estatuto de visitante, mas de peça do museu. E, tal como a multidão se deslocava às grandes exposições universais do século XIX para ver a mercadoria, os turistas deslocam-se para ver a montra onde eles são exibidos a si próprios, num grande espetáculo em que os atores coincidem com os espetadores. A crítica do turismo e a denúncia da devastação que ele provoca têm uma idade respeitável (começaram no princípio do século XX), mas nada é mais difícil de contrariar ou de limitar do que tal indústria. 
Veneza tem um ódio visceral aos turistas, mas celebra com eles as núpcias mortais da grande prostituta. O escritor e ensaísta alemão Gerhard Nebel escreveu em 1950 que “o turismo ocidental é um dos maiores movimentos niilistas, uma da grandes epidemias do Ocidente”, e considerava mesmo que “um país que se abre ao turismo fecha-se metafisicamente — oferece um cenário, mas já não a sua mágica potência”. Tal declaração soa hoje como muito pouco original e confunde-se com as reações críticas daqueles que implicitamente reclamam que a viagem turística lhes devia ser reservada em exclusivo. O que Nebel não previu foi que nos tornaríamos todos turistas, nas nossas próprias cidades, pois o que lhes era exterior tornou-se o seu interior, e o que elas têm de mais profundo é a sua pele turística. Até o Erasmus mostrou um regime turístico para a Universidade.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 25.8.2012.

Ao pé da letra #205 (António Guerreiro): O grande bordel

Uma das grandes conquistas do nosso tempo, que os novos meios de comunicação elevaram a um estado de paroxismo, é a possibilidade de dizer ‘Eu’, de expor – e impor – a instância subjetiva. Até os jornais mais sóbrios se tornaram permeáveis a esta grande festa do ego que se tornou um bordel das subjetividades. Quem é que ainda sente um leve estremecimento diante da exibição do ‘Eu’ de um cronista ou de um repórter? Quem é que se escandaliza com o aparecimento imoderado, no espaço público, do ‘Eu’ de um escritor? Quem acha que esta perda de distância e a teatralização de um ‘Eu’ completamente fanérico têm um aspeto obsceno? O ‘Eu’ – a possibilidade de dizê-lo em regime de proliferação – é o sintoma do nosso tempo, a marca indelével da estupidez epocal (segundo o princípio, muito flaubertiano, de que cada época tem a sua). Alimentar, das mais diversas maneiras, a emergência e a explicitação do ‘Eu’, ao ponto de se ter perdido o sentido de que não há nada mais desinteressante do que dizer ‘Eu’ publicamente, tornou-se um apelo à concupiscência.  
E não foram apenas as regras da bienséance que mudaram: foi toda a ordem do discurso. Nos media, há cada vez menos a comparência de quem fala para lá das suas contingências egoicas, além da esfera do ‘Eu’ e do ‘Tu’. O discurso do universal, que foi outrora representado por uma figura desaparecida, a do intelectual (que, de resto, tantas vezes deixou uma má memória), deu lugar à grande parada carnavalesca dos ‘Eus’, que gritam, saltam e se atropelam. A partir de que momento é que, nos jornais e revistas, se perdeu o pudor de dizer ‘Eu’? Eis uma questão muito mais importante do que parece, capaz de nos elucidar acerca da nossa condição epocal, reclamando uma investigação arqueológica. A grande festa do ‘Eu’, a pessoalização como fenómeno mediático total, requer uma contrarrevolução puritana.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 18.8.2012.

Ao pé da letra #204 (António Guerreiro): Avaliação contínua

Para os epistemólogos, a avaliação é um gesto metodológico sofisticado, que releva de uma ciência. Mas a avaliação como prática do aparelho — como aquela a que todos os trabalhadores e instituições estão hoje submetidos — é outra coisa: uma ideologia poderosa e um mecanismo puramente gestionário. Sirva de exemplo a avaliação que o Governo mandou fazer às Fundações, cuja supervisão todos reconhecem como necessária, para que não se tronem instituições especializadas em extorquir dinheiro. A Fundação da Universidade de Lisboa foi avaliada com 7,8 pontos (numa escala de 0 a 100), e até a Gulbenkian ficou a meio da escala. Os resultados — qualquer pessoa de bom senso estará de acordo — estão errados, porque errados estão certamente alguns critérios. Mas o erro maior está no cerne da ideologia da avaliação, que tudo reduz ao mensurável. Medindo, calculando, numerando e comparando, os avaliadores imaginam-se a fazer um trabalho científico. Tão científico que nenhuma décima escapa à medição apuradíssima.  
Os avaliadores são uma seita e a sua mística é a ordem quantitativa pela qual tudo acede a um estado estatístico e entra num ranking. Mas como sabem que o seu trabalho não é interno a um saber, eles precisam que os avaliados (que, por sua vez, são os avaliadores dos outros) lhes outorguem legitimidade, que a creditação seja ao mesmo tempo coerciva e consentida. Esse consentimento tácito é obtido através da autoavaliação que os avaliados são convidados a fazer e que lembre o ritual da autocrítica que era imposto nos regimes comunistas. Pela autoavaliação, o sujeito avaliado confessa os seus pecados, incrimina-se a si próprio, denuncia as suas inclinações menos produtivas. Tudo isso para responder às eternas injunções da burocracia e também para assumir uma cumplicidade estratégica com os avaliadores em posição de mestres.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 11.8.2012.

 


Já tinha visto estas imagens. Em câmara lenta, vê-se melhor esta mulher, que se volta e olha para a câmara. Temos a certeza que ela teria saltado se, no último instante, não tivesse compreendido que a estavam a ver? Lembrei-me daquele tipo do ‘Paris 1900’ que tentava dar um salto incrível, com uma espécie de paraquedas à Batman, do primeiro andar da Torre Eiffel. É tão óbvio, pelo menos para mim, que, no último minuto, ele se dá conta de que aquilo não vai funcionar, que se vai matar. Mas a câmara está lá, ele não se pode acobardar e, por isso, salta e morre.»

Ao pé da letra #203 (António Guerreiro): Os mercados não falam

Sob os nossos olhos, e colonizando a nossa experiência imediata, a prosperidade evaporou-se. O mesmo mercado que segregava riqueza e lucros sem fim, agora segrega a pobreza. E todos nós, os leigos, mesmo os menos mesquinhos, já compreendemos que a ciência económica está constantemente a explicar-nos o que ela não compreende. Uma mentira implícita no discurso corrente consiste em pretender que os mercados falam, que eles funcionam não apenas através do seu legítimo e tradicional medium, o dinheiro (por conseguinte, operam com números) mas que, além disso, se apropriaram do medium da política, que opera com palavras, com a linguagem. Na verdade, os mercados não dizem nada, eles mostram-se em silêncio. A ideia de que eles falam corresponde àquilo a que um filósofo e linguista francês, Jean-Claude Milner, chamou “a política das coisas”. O governo das coisas (da qual existe tanto a versão da Direita como a da Esquerda), no sentido em que são as coisas que nos governam, começou por ser um sonho progressista do século XIX – a ideologia do progresso técnico - mas conheceu muitas variantes e legitimações.  

E é desse sonho progressista que fomos obrigados a depertar. A política entra em eclipse (e, no limite, os políticos são mesmo dispensados) quando as coisas decidem em lugar dos homens e quando estes passam a não poder governar as coisas: tudo o que os governantes propõem hoje aos governados passa por inevitável, algo inscrito na ordem das coisas. Os governantes têm um único dever: comunicar bem; e os governados têm o dever simétrico: bem escutar. Tudo se reduz a um dispositivo pedagógico que transmite com a maior clareza a lição das coisas, que é a de que nada pode ser mudado. Neste esquema pedagógico, a única coisa que resta é a retórica e e o estilo, que sempre foram os segredos dos bons pedagogos.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 4.8.2012.

Ao pé da letra #202 (António Guerreiro): Eleições de demofobia

Mesmo que consideremos que o conceito de democracia está contaminado por um mal-entendido fundamental e deu lugar a uma conversa inócua que esvazia a política de conteúdo, dizer “que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal”, como fez esta semana o primeiro-ministro, é um lapso terrível porque a verdade que nele surge, como um sintoma, é da ordem do irreparável. Tão irreparável como a virgindade perdida, que nem Deus consegue tornar reversível porque entre os seus poderes, segundo uma discussão teológica vinda da Idade Média, não está o de fazer com que aquilo que aconteceu deixe de ter acontecido. O acontecimento que teve lugar na frase de Passos Coelho pode ser traduzido por uma disposição que pode e deve ser chamada “demofobia”. A demofobia moderna tem uma estação fundamental na crítica nietzschiana da democracia e na sua contestação do sufrágio universal.  

Mas a demofobia governamental, de quem ascendeu ao poder pelo voto, é outra coisa que não tem, nem nunca teve, premissas políticas ou filosóficas: confundiu-se sempre com a defesa de uma forma de governo e com a procura de garantir uma legitimidade baseada no princípio da infalibilidade governamental. Segundo este princípio, não é governo quem erra ou o seu projecto que é mau, mas é o povo que não está preparado ou se deixou manipular. O “que se lixem as eleições” é uma resposta demófoba de quem tem dos cidadãos a ideia de que eles não atingiram o estado de maioridade e são incapazes de agir e pensar por si mesmos. E o que vem a seguir, “o que interessa é Portugal” é o enunciado lógico de toda a demofobia: o povo não se define por uma vontade própria, mas pelo critério orgânico da nação. Em suma: a demofobia não erradica o povo, mas faz dele uma entidade mítica, perante a qual o poder governamental se inclina e em nome da qual assume a sua ‘missão’.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 28.7.2012.

Ao pé da letra #201 (António Guerreiro): Uma espécie de Esperanto

Basta ler a resposta que Maria Helena Mira Mateus, eminente linguista e professora catedrática, deu a um artigo de Teolinda Gersão (ambos publicados no “Público”), em que a escritora criticava o deslumbramento com que os programas de Português debitam abundantes e complexos conceitos e categorias gramaticais (em tal grau que eles se anulam nos seus próprios fins), para percebermos a arrogância de quem tem tido alguma responsabilidade na disciplina. Com os resultados que estão à vista. Uma metáfora arquitetónica é recorrente no texto de M.H.M.M.: por três vezes fala em “construção”, a última delas para se referir aos elementos com que a língua “se constrói”. Esta obsessão construtivista tem um objetivo: mostrar que é preciso saber identificar, nomear e categorizar os elementos e as operações linguísticas e que sem esse saber os alunos estariam completamente desarmados para o conhecimento de tudo o que diz respeito à língua escrita e falada.  

A obsessão construtivista é a obsessão pela formalização linguística. A ideia de que a língua é uma construção pode ser muito útil para defender as suas teses sobre o ensino da língua, mas se M.H.M.M não estivesse tão preocupada em defender o seu território certamente que não cometia tal dislate. Uma língua construída só pode ser uma língua artificial, como o Esperanto. Esta comparação esclarece alguma coisa: na verdade, os grandes arquitetos do ensino da língua materna parecem aspirar a que ela seja ensinada como uma espécie de Esperanto. Ao investir grande parte da sua tarefa nas longuíssimas e exageradas categorizações gramaticais, o ensino do Português está tão obcecado com o estudo da frase (essa sim, uma construção) que se mostra muito inapto a trabalhar com o que vem para lá dela: o texto, e particularmente o texto literário. Será porque a frase é o limite do objecto de investigação da Linguística?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 21.7.2012.


Ao pé da letra #200 (António Guerreiro): O consenso cultural

No sábado passado, em Grândola, na sessão de encerramento e entrega dos prémios do belíssimo festival de música sacra do Baixo Alentejo (com um alcance exemplar no domínio do património artístico e natural), chamado Terras sem Sombra, o secretário de Estado Carlos Moedas fez um discurso, que poderia ser subscrito por qualquer grupo de artistas e intelectuais, apelando à defesa da cultura, ameaçada pela brutalidade e pelo obscurantismo. Tal circunstância obriga-nos a pensar que espécie de ídolo é este em torno do qual se estabelece uma grande unanimidade em sua defesa e se cria a convicção de que é um bem precioso e, em última instância, capaz de dissolver as diferenças entre os defensores da cultura das elites e os partidários da cultura das massas e das indústrias culturais, entre os detratores da arte contemporânea e os que reclamam cuidados especiais para a experimentação em todos os domínios da criação artística.  

A autoridade da palavra ‘cultura’ deixa toda a gente (até um secretário de Estado que não é o da dita) na disposição de se vergar a esta injunção: defendamo-la contra tudo e contra todos. Ora, é precisamente esta unanimidade, suscitada pela mais plástica e extensiva das noções, que faz com que dificilmente em seu nome, se possa travar um combate e operar uma divisão dos exércitos no campo de batalha. Ela é o lugar onde até um general inimigo pode juntar-se às hostes de combatentes voluntários e desarmados, num sábado à tarde, na terra da fraternidade. Por isso é que todos aqueles que mais contribuíram para defender a cultura foram sempre os que se afastaram da culturofilia e da unanimidade que ela suscita. Foram, em geral, umas criaturas simiescas, furiosas, que acharam que isso da cultura era para ser tratado como um insigne filósofo do século XIX, Nietzsche de seu nome, fez à filosofia: à martelada.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 14.7.2012.

Ao pé da letra #199 (António Guerreiro): Fazer e desfazer a opinião

Um étologo competente que decidisse investigar o comportamento e os modos de sobrevivência dos detentores da opinião como espécie intelectual consagrada na imprensa portuguesa (e nos media em geral) teria de começar por descobrir porque é que toda essa gente que, pelas leis da racionalidade ocidental, só poderia angariar poder e capital simbólico a desfazer a opinião conseguiu triunfar, acomodando-se com sucesso a um papel tão desclassificado desde Platão: o de fazer opinião. Neste mundo às avessas, uma pesquisa etológica aprofundada descobrirá que no império da doxa também existem paradoxos, como é o caso (entre outros a solicitar trabalho de campo) de João Carlos Espada, cuja sobrevivência é um mistério porque não parece resultar de uma adaptação às regras do meio nem sequer às leis de Darwin. Numa época em que o discurso do universitário não encontra abrigo fácil nos jornais, J.C.E. consegue apresentar-se e representar-se como o hiperuniversitário.  

É certo que se trata mais de uma questão de pose do que de saber, mas o lugar de onde ele observa o mundo é sempre o small world das salas de aulas, dos congressos e dos colóquios universitários, com vista sobre uma bibliografia restrita e, parte dela, exausta. Pelo caminho, nunca prescinde de publicitar as instituições que os promovem e as marcas comerciais que os patrocinam. Para o leitor comum, tudo isto é muito inócuo e pouco digno de menção, mas o etólogo de serviço não pode deixar de se deter em tal objeto de estudo e de tentar responder às perguntas: do que é que J.C.E. é sintoma?, de que modo a sua sobrevivência nos jornais nos pode elucidar sobre o habitus do campo da corporação a que pertence?, como é que suscita não só uma etologia mas também uma sociologia da opinião em Portugal e das suas regras de casta?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 7.7.2012.

Ao pé da letra #198 (António Guerreiro): Os impostos e a ética do dom

Para perceber as mudanças do clima político e das formas ideológicas de representação do social é necessário recorrer ao que o filósofo alemão Peter Sloterdijk (uma figura fundamental da vida intelectual europeia, a quem se devem grandes debates públicos) chama “energias psicopolíticas”. Por exemplo, é hoje bem visível como o capitalismo, que desde as duas últimas décadas do século passado até 2008 era um dado natural, neutro no plano moral (a não ser nalguns discursos minoritários que, de resto, tinham perdido a credibilidade), de um momento para o outro readquiriu uma aceção polémica e começou de novo a ser objetivado criticamente. Entrando numa boa livraria de uma capital europeia (as livrarias em Portugal pertencem a outro mundo), temos a sensação de que se assiste ao triunfo dos herdeiros do pensamento crítico dos anos 70. Baseado nesta ideia de energias psicopolíticas, Sloterdijk fez há cerca de dois anos uma proposta polémica que deu origem a um aceso debate, na Alemanha, em alguns jornais.  

Com a sua tendência para o que muitos acham que é o mero gosto da provocação, Sloterdijk, apelando à teoria do dom de Marcel Mauss, como laço social primário, incitou a esta experiência intelectual: que os impostos fossem repensados de modo a considerar o cidadão contribuinte como um dador (Sloterdijk pensa que o nosso sistema fiscal mascara voluntariamente o carácter de dom) e não como um devedor, passando-se assim do sistema da obrigatoriedade a outro baseado no gesto voluntário. Como é óbvio, foi acusado de querer desmantelar o Estado social e de andar a brincar perigosamente com ideias utópicas. Mas a verdade é que consegui introduzir a ideia de que, na atual fase do capitalismo, era necessária uma reforma fiscal e repensar os impostos, a partir de pressupostos que estão completamente fora do horizonte do poder político.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.6.2012.

Ao pé da letra #197 (António Guerreiro): A política da arte

Sem recorrer a mediações protetoras de uma política do gosto, a Secretaria de Estado da Cultura usou este ano a prerrogativa de escolher o artista – Joana Vasconcelos – que vai representar Portugal na Bienal de Veneza. A decisão é talvez quase inédita na política cultural de um país democrático e apresenta uma preocupante conformidade com a tatuagem do “Governo de Portugal” com que ficam marcadas as obras e acontecimentos culturais subsidiados pelo Estado. É certo que a arte não tem aquela dimensão de “obra de arte total” que tem o futebol. E, por isso, já não se presta a investimentos políticos e ideológicos tão rentáveis como o espetáculo futebolístico, que até permite a reconstituição da organicidade de um povo em união mística no altar da exaltação identitária e da autorrepresentação. Mas a arte – “ah, a arte!”, escrevia Celan –, mesmo na sua condição atual demasiado profana e destituída de ilusões, é uma tentação para o poder político, que não está propriamente interessado em politizar a arte, mas em usá-la como instrumento da figuração – como se diz de alguém que quer fazer boa figura – do político.  

É um problema estético-político que conhecemos, na sua forma extrema, nos regimes totalitários do século XX. Não se trata de totalitarismo (seria ridículo designar com vocabulário tão enfático uma coisa tão pindérica) nem o “Governo de Portugal” procede com uma vontade artística digna das mais sinistras experiências de estetização. Mas não disfarça os impulsos diretivos e a vontade de ganhar lustro através de meios muito pouco liberais. Mais uma vez, há aqui uma dimensão de estupidez (a famigerada bêtise), algo que se mostra imediatamente como sendo estúpido, porque os governantes e secretários que escolhem os artistas são os mesmos que, contraditoriamente, não se cansam de proclamar que a arte deve ser inocente de uma política.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 23.6.2012.

Ao pé da letra #196 (António Guerreiro): A Escola como um romance

Pelo menos três discursos piedosos dominaram a escola, nas últimas décadas, construindo em torno dela três romances muito preocupados com a verosimilhança: o romance pedagógico (em que o adjetivo ‘pedagógico’ quase passou a corresponder ao substantivo ‘ensino’, e em que uma corporação passou a deter a ciência do ensino), o romance tecnológico (que tem como personagens principais a informática, o audiovisual e todas as mutações que vão no sentido de uma civilização da imagem a que a instituição escolar tem de se adaptar) e o romance sociológico (a escola aberta às massas que tem de abandonar a referência aos saberes e às exigências das elites). Agora, está em curso uma nova construção romanesca com um argumento clássico, onde podemos descortinar uma velha oposição entre instrução e educação. A escola que tem como fim instruir é dotada de uma tarefa perfeitamente definível e racional, exigindo apenas um acordo sobre os critérios e os conteúdos.  

A escola que visa a educação tem no fundo uma tarefa infinita e indeterminada porque a educação é uma noção ideal: é o processo pelo qual o sujeito se realiza inteiramente, atingindo a perfeição em todos os domínios importantes. Do ponto de vista do ideal da educação, nenhuma exclusão é legítima e nenhuma insuficiência deve ser tolerada. Um verdadeiro educador deve visar a formação de um homem total e a sua tarefa é mais uma missão. Ora, entre o pragmatismo da instrução e a utopia da educação não se tem conseguido encontrar um lugar habitável e eficaz precisamente por causa das construções romanescas edificantes em torno da escola, a mais poderosa das quais é de cariz nostálgico: “A escola no meu tempo é que era boa”. Tão boa como a comida da mãe, as brincadeiras de infância e tudo o resto que entra num belo romance das origens, de uso e abuso universal.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 16.6.2012.

Ao pé da letra #195 (António Guerreiro): O governo e a coisa artística

Tendo desaparecido o Ministério da Cultura, o logótipo que aparece agora incrustado nas obras e atividades artísticas e culturais apoiadas pelo Estado é uma larga e grossa inscrição do “Governo de Portugal”, ladeada pela bandeira portuguesa. A ‘marca’ grita e ofende: a subtileza é nula, a vontade de aclamação do poder é muita, o modo de tratar a arte e a cultura é de filisteus. Ela está próxima da tatuagem que a lei escreve no corpo dos prisioneiros de uma colónia penal, e é certamente com muita reserva e pudor que muitos artistas encaram essa espécie de ferida que lhes é infligida. Mas há outra questão essencial – e não é de agora – que deve ser colocada. Porque é que a máquina governamental faz tanta questão de se apoderar daquilo que pertence à esfera do simbólico (a arte, a cultura), e negligencia, nos atos litúrgicos do poder, o que pertence à esfera pragmática? Na verdade, os autocarros e os comboios não circulam com placas a dizer “Governo de Portugal”: tal inscrição também não aparece na televisão pública, na ficha técnica de cada programa; e os bancos que receberam a intervenção do Estado não colocam uma bandeira portuguesa nos balcões ao lado das palavras “Governo de Portugal”.  

Para responder a esta pergunta temos primeiro de perceber que a glória que o poder político necessita (Giorgio Agamben fez a arqueologia dos dispositivos gloriosos da governamentalidade) não é jamais proporcionada pelos atos e pela obras da sociedade produtiva, da sociedade homogénea, mas por aquilo que se subtrai à utilidade e pertence, portanto, à esfera do heterogéneo. Um governo pode providenciar, com grande mérito, o bem-estar de uma nação; mas para se glorificar, para obter a aclamação gloriosa, ele não pode prescindir do heterogéneo e do inútil, em suma, do que pertence ao plano do sagrado: a arte, a cultura, a arquitetura.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 9.6.2012.

O fim da sociedade de trabalho (António Guerreiro)


Ao pé da letra #194 (António Guerreiro): Política e estultícia

Ao excesso de análise e comentário político corresponde a falta de uma etologia dos políticos. Só um observador munido com um olha de etólogo, mesmo desprovido de sofisticados instrumentos científicos, consegue identificar comportamentos e temperamentos que o meio político atrai e estimula. Um desses temperamentos que definem uma tipologia muito comum no meio político é uma forma de estupidez específica, não exatamente igual à estupidez que está por todo o lado (e a pretensão de denunciá-la não escapa à regra). Se é fácil perceber que a estupidez está tão bem representada nos ambientes políticos (que a forte exposição pública potencializa e evidencia), devemo-nos no entanto abster de considerar que tais representantes também são estúpidos na sua vida ‘civil’. A estupidez é aqui uma figura, uma Gestalt, a que muitos políticos dão forma.  
Como é que se define o tipo político do estúpido, que nos é tão familiar? Ele identifica-se, antes de mais, com a noção antiga de estultícia, a que os estoicos deram tanta importância. O político estulto tem uma eloquência que só conhece duas características, aliás complementares: a vacuidade e o espírito despótico. Neste sentido, ele é o legítimo herdeiro do rei idiota de Lacan. Este tipo de estupidez define-se também pelo entusiasmo, o que lhe confere o ar feliz de quem vive à superfície das coisas e segue com uma força irreprimível, como se fosse movido por mecanismos repetitivos ou induzido a parecer mais estúpido do que é. Certas formas de estupidez fazem rir, mas na política a estupidez é completamente alheia ao riso e ao espírito comediante. Ela está do lado da obstinação, do ter sempre razão. Barthes dizia que a estupidez é recalcitrante e chamava-lhe a Coisa. E contra a Coisa não há nada a fazer, porque é dura e resistente como o granito, “mesmo os deuses não podem combatê-la”, dizia Schiller.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 2.6.2012.

Ao pé da letra #193 (António Guerreiro): A ideologia da avaliação

A passagem do analógico ao digital invadiu toda a nossa vida quotidiana e verifica-se até em domínios onde o regime de significação não era concebível em termos digitais. É o caso dos ‘estudos’ que estabelecem numericamente o índice de felicidade – e de outras coisas igualmente não quantificáveis – da população de um país. Uma vez quantificada e medida numa escala numérica, a felicidade já não se opõe a infelicidade – uma oposição própria do regime analógico. Em vez destas oposições tão velhas como a metafísica, o que temos é comparações entre vários índices de felicidade, que permitem, por exemplo, dizer que os noruegueses têm um índice de felicidade mais elevada do que os portugueses. Mas se traduzirmos este dado por uma linguagem do tipo “os noruegueses são mais felizes do que os portugueses” sentimos que não estamos a usar a linguagem correta, que há restos de uma metafísica inadequada a insinuar-se na frase, que estamos, implicitamente e sem querer, a ressuscitar a oposição felicidade/infelicidade.  
Quantificação também impossível, mas que ganhou honras e proveitos de ciências rigorosa, é a que estabelece os rankings das universidades, a nível mundial. Neste caso, é uma ideologia da avaliação (a que todos os funcionários estão hoje submetidos) que se faz passar por critério neutro e rigoroso. Como se mede a excelência ou a mediocridade de uma universidade de modo a colocá-la na posição 50 e não na posição 49 ou 51 ou noutra ainda mais desviada? Tal só é possível porque todos os critérios da avaliação se traduzem numericamente. Mas este modo de tradução só funciona de maneira convincente porque nos oculta as suas operações: apenas nos é dado o resultado. E foi assim que a ideologia da avaliação, que estabelece rankings e quantifica índices de felicidade, se tronou a verdadeira teologia do nosso tempo – uma teologia jansenista, de um Deus absconditus.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 26.5.2012.


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