Se vamos falar de espectáculos por que não começar por falar de espectáculos?
Os espectáculos que vejo merecem ser acompanhados. Dão muito trabalho a fazer, a pensar, a imaginar, a ensaiar. Bem ou mal, interessem-me ou não me interessem, em cada um deles há uma visão de mundo, uma tentativa de criar mundos possíveis, um viver em colectivo que se experimenta praticando, várias questões que se levantam. Há também uma questão de olhar, de autoria, de linguagem estética, de enquadramento na história das formas das artes, formas estas igualmente enquadráveis socialmente. Acredito que há em muitos deles um corpo a corpo com possibilidades outras, possibilidades que se realizam habitando, com o corpo, um espaço de potência - potência de ser, de estar, de estar com; de representar ou presentificar possibilidades de existência, resistência, re-existência, e (por que não?) aceitação ou mesmo glorificação do existente. Interessa-me a sua relação discursiva com a sociedade, o modo como se inscrevem ou não inscrevem na ordem dos discursos, o modo como o que dizem se relaciona com o que fazem, e o que fazem a quem os vê. Interessa-me fazer essa relação visível tal como eu a vi, ajudando assim a faze-los visíveis, acusando que é de uma visão, a minha, que se trata. |
Se vamos falar de espectáculos por que não começar por perguntar como vamos falar de espectáculos?
O discurso possível é possível porque os discursos o fazem possível. É contra o pano de fundo maior da questão da “participação” na sociedade portuguesa que uma iniciativa como a deste seminário se enquadra. Por que razão não há crítica de artes performativas nos jornais? Por que razão não há nenhuma iniciativa de crítica de artes performativas relevante na blogosfera portuguesa? Por que razão tiveram instituições como a Culturgest, o São Luiz Teatro Municipal, o Alkantara e o Maria Matos de dar o pontapé de saída? Por que o fazem nestes moldes? O que são as “formações” hoje em dia, que papel cumprem?
Quando me candidatei ao Mais Crítica não pensei a sério nestas questões. Parecia-me que fazia falta um espaço de discussão, estava farta de ver os espectáculos não terem críticas e achei que podia dar um contributo, mesmo não sendo grande adepta da crítica tal como ela é feita nos jornais ou na academia por via Estudos Literários, mas sim da reflexão dos Estudos de Performance nos seus cruzamentos com as Ciências Sociais. Estava sinceramente entusiasmada com o facto de a iniciativa ser em grupo, apetecia-me acompanhar espectáculos numa base regular e discuti-los com mais gente. Só que quando a coisa começou a questão do lugar colocou-se à frente de tudo: quem pode falar, onde, em que moldes, como é recebido o discurso tendo em conta de onde se fala. Era o modo como a nossa escrita se inscrevia ou não na ordem dos discursos - a nossa escrita vinda de uma “formação” e apoiada pelas instituições o que primeiro de tudo estava em causa. Não quero repetir aqui uma discussão que se fez pública aqui, antes remeto para ela. Menciono-a porque me fez repensar a minha participação no Mais Crítica.
À medida que a minha argumentação nessa discussão se ia desenvolvendo o meu entusiasmo inicial foi-se desvanecendo e fui tendo vontade de participar num projecto de crítica, sim, mas não nestes moldes. Interessa-me não a fomentada e acompanhada formação de seis vozes especializadas em Artes Performativas, mas a abertura de um espaço de discussão entre gente que faz, gente que vê e gente que escreve (e vice-versa, as posições não são fixas – é uma conversa). Interessa-me pensar em conjunto sobre como as coisas “agem” e nisso poder escrever sobre espectáculos, blogs, discursos, gestos, leis, manifestações, hierarquias, o que falta e o que está em potência, “agindo” com isso.
Não estou com isto, de todo, a desacreditar o projecto do Mais Crítica, antes pelo contrário, é por me parecer relevante e por a crítica fazer falta que me candidatei: Força Mais Crítica! Apenas cheguei à conclusão de que não me revejo nele e que por isso não consigo ter vontade de participar.
Ana Bigotte Vieira
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