Ao pé da letra #217 (António Guerreiro): O jornalismo e o homem médio
A ameaça de extinção que paira sobre os jornais convida-nos a um olhar retrospetivo, a recordar que o jornalismo e a universidade foram os dois grandes instrumentos da racionalidade iluminista, do seu projeto de socialização do saber e da cultura, criando uma sociedade para a cultura e desenvolvendo uma cultura para a sociedade. A crise dos jornais é apenas um dos aspetos do fim desse projeto, declarado com grande estrondo no final dos anos 70. No entanto, nunca faltaram membros destacados das elites para lançarem sobre os jornais a sua desconfiança ou até o seu radical desprezo. Se Hegel falava da leitura do jornal como a oração matinal do homem moderno, Balzac achava que, “se o jornalismo não existisse, seria sobretudo necessário não inventá-lo”. A crítica ao jornalismo teve quase sempre origem num pensamento reacionário (seja ele o de Balzac, o de Kierkegaard ou, numa dimensão militante, o de Karl Kraus). Mas ele também se tornou num alvo fácil quando passou a alienar a sua matriz crítica, quando a oração matinal foi substituída pelo entretenimento e quando passou a servir exclusivamente uma figura que ele próprio construiu: o homem médio. | Em “La Ricotta”, de Pasolini, há uma sequência em que Orson Welles, sentado na cadeira de realizador, é entrevistado por um jornalista e acaba por ler um poema ao seu entrevistador. No final da leitura, pergunta ao jornalista: “Entendeu alguma coisa?” O jornalista começa a fazer uma paráfrase idiota e é interrompido: “Você não entendeu nada porque é um homem médio. Um homem médio é um monstro, um perigoso delinquente.” Estas palavras têm de ser compreendidas à luz da visão apocalíptica de Pasolini, da sua ideia da classe média como o fim do mundo, mas é certo que, ao estabelecerem o “homem médio” como o seu padrão, os jornais se dissolveram na mediania que não precisa deles para nada e os aniquila. António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 10.11.2012. |
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