Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Duas danças de Valeska Grisebach

I. Preâmbulo mórbido como contraponto

As violências que nos forçam a pensar não surgem assim isoladas, arrumadinhas, bem postas. Formam antes estranhos agregados de diferentes tipos de experiências, mais ou menos saudáveis. Podemos desconhecer o que força essa agregação necessária, ou, pelo contrário, esforçarmo-nos por tentar apagá-la o máximo possível, por ela ser demasiado explícita, obscena, impartilhável. Muitas vezes, escrever a partir desse confronto é quase um exorcismo, um acto para conseguir que algo saia definitivamente de nós, a tentativa de expulsão de uma ideia fixa parasita que nos faz mal.
O acto de dançar é das coisas mais graciosas que um ser pode fazer. O cinema debruçou-se inúmeras vezes sobre isso, de MÉDITERRANÉE de Jean-Daniel Pollet, o primeiro que me vêm à cabeça, a... enfim, tantos outros. Mas dá-se muitas vezes que a dança e o movimento são pensados por oposição ao pensamento, ou à consciência, como um território privilegiado de uma espontaneidade sem mais. A propósito de TEA AND SYMPHATY de Minelli, e evocando o texto «Sobre o teatro das marionetas» de Kleist, Cyril Neyrat
relacionou recentemente, num belíssimo pequeno ensaio, a ausência de graça com a consciência do movimento, a propósito de uma cena em que as personagens, tentando representar o seu próprio andar, acabam por se ver incapazes, ou reproduzindo meramente caricaturas, desse acto tão natural. Poder-se-ia dizer o mesmo de todas as actividades que envolvem o corpo. Os gestos mais singulares são aqueles em que este não encontra tempo para diferir a ideia do corpo, em que os actos mentais e corporais são absolutamente contemporâneos.

Claro que se pode chamar a isto de espontaneidade, a ausência do peso de uma consciência que se concebe como coerciva, mas não creio que se possa dizer que não haja aí pensamento. Uma má imagem do pensamento precede-nos...
Portanto, a dança surge associada à espontaneidade e à vitalidade como uma das mais impressionantes manifestações criativas e comemorativas do facto de se estar vivo. Mas há igualmente uma estranha e paradoxal relação entre a dança e a morte. Como se neste aparente gesto extremo da vitalidade se pudesse também encontrar a expressão mais exacta da morte. Era isso, em parte, que mostrava a tradição medieval das “danças macabras”. Nestas, esqueletos são representados a dançar, a tocar música. Tento encontrar um excerto de LA RÈGLE DU JEU de Jean Renoir em que há uma espécie de dança macabra na festa, ou antes, tento encontrar a sua evocação por Godard nas HISTOIRE(S) DU CINÉMA, para aqui colocar, mas nada feito. (Curioso o efeito destas história(s), em que muitas vezes os filmes vêm à cabeça filtrados pelo trabalho de súmula e concentração rítmica de Godard, como se ele deles tivesse retirado uma essência qualquer ou um suplemento que quase vale pela visão do original, ou que, pelo menos, a alimenta de novo fulgor).


«Dance of death»

Nisto da dança macabra o que me parece mais interessante não é o aviso irónico e cáustico sobre a brevidade da vida e a universalidade da morte. E, obviamente, pode sempre dizer-se que a irrupção da morte na dança depende da perspectiva que se adopte a praticá-la ou observá-la. Mas parece-me inegável que, como tudo o mais na vida, também o gesto de dançar pode estar embebido de afectos tristes e profundamente fúnebres. Em particular quando se quer colocar à força a máscara da alegria sobre o rosto da miséria afectiva quotidiana. Aí, mesmo uma festa se parece tanto a uma dança macabra, em especial se for inundada de sorrisos fixos. Porque a morte ri. E o riso é a maior máscara mortuária. Talvez por isso seja de desconfiar um pouco de todos aqueles que (na televisão, por exemplo, onde estão sempre tão animados) se esforçam demasiado em “fazer a festa”. Não nego que a alegria possa romper as máscaras e aparecer também ali, vencendo os medos, mas não tem ela um lugar mais belo em tantas outras coisas? E le bonheur n’est pas gai...
Da morte diz-se habitualmente, em casos de infortúnios pessoais graves, que se a olhou na face. Mas a dança torna evidente que a morte, a sua aparição, não surge num lugar privilegiado do corpo, como os olhos. Podem passar-se anos a olhar alguém nos olhos e não ver nada, e ao contemplar um simples gesto quotidiano perceber tudo o que importa perceber dessa pessoa para que cresça ou mirre definitivamente em nós. Para quem não tenha de todo por hábito pensar na morte, a experiência de a ver pode ser repentina e fulminante. Em
momentos como esses há que se agarrar ao que se possa, ao que surja, para perseverar em vida.


Nessas noites ou dias fundos, são as coisas simples que nos podem salvar, literalmente. Um verso de um poema pode surgir de repente à memória, se por acaso nos cruzámos antes com ele. Tendo ficado tanto tempo meio incompreendido, irrompe desta vez devido à estreita correspondência com o que se acaba de viver. Nada impede as coisas incompreendidas de fazerem o seu caminho dentro de nós, mesmo que lento, eventualmente sem saída. O verso pode ser conhecido e admirado há muitos anos, mas nunca ter sido bem visto, ou dançado, ou sentido interiormente, vivido. Porque até algo como lembrar-se de um poema faz parte dos enormes mas falíveis recursos da sobrevivência.
A arte não está nem acima nem abaixo da vida, está bem dentro, ao lado das pessoas e de tudo o mais que importa. Era por isso que, ainda bem há pouco imaginava, na minha particular soberba, o suicídio impossível perante algumas expressões fortes da vida, como um belo filme. Mas concedo que pode haver igualmente a irrupção de um tal terrível, de um tal horror, de um grau tal que não se consiga diminuir, diluir em nós, que nos esbata no combate com a dor, até que por fim, lutando contra esse fogo, nos apaguemos a nós mesmos... É assim que os sobreviventes desses encontros, quando se afastam desse diferendo vital irresolúvel, costumam dizer que determinada pessoa morreu para si. Existe até a expressão mais corrente, mas não menos horrível, do “vai morrer longe”, que significa isso mesmo, a injunção a que a pessoa permaneça viva mas longe até que morra, como se não lhe fosse permitido habitar o mesmo mundo, a mesma terra. Há ainda casos mais extremos, em que não é a própria pessoa que morre para nós, mas em que ela devém a nossa própria morte, a que virá e terá os seus olhos...

«Virá a morte e terá os teus olhos» é o primeiro verso de um poema escrito por Cesare Pavese pouco tempo antes de se suicidar. Este poema não trata, no entanto, de uma acusação simples, pois se os olhos são de uma ela (no original italiano), são depois também os que vemos ao espelho. O poema fala portanto dos nossos olhos da morte, não apenas dos de outrém. Mas talvez devêssemos falar então de tudo o resto, em particular do rosto, do tanto que nele se encontra, do corpo que dança também, do riso, de um sorriso falsamente conservado no pior dos momentos, em suma, de tudo aquilo que pode expressar a morte em vida. Pois onde cresce o que salva está também o perigo...

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi –
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Cosí li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla.

Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.

22 marzo '50



Todo este último livro de poemas foi escrito por Cesare Pavese na sombra da relação (falhada) com Constance Dowling, uma actriz de cinema, por sinal.
Uns dias mais tarde, como se não fosse suficiente, Pavese escreveria ainda, no seu diário, as seguintes frases. (Estas ajudam a perceber porque senti a necessidade de modificar a tradução, substituindo, mal ou bem, o termo “sozinha”, menos bonito mas bem mais exacto, onde estava o mais neutro, quanto ao género, “só”).
Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti sozinha te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoínho mudos.

Cesare Pavese, Trabalhar cansa, trad. [modificada] Carlos Leite, Cotovia, Lisboa, 1997, pp. 350-1


25 de Março de 1950

Non ci si uccide per amore di una donna. Ci si uccide perché un amore, qualunque amore, ci rivela nella nostra nudità, miseria, inermità, nulla.

Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada.

Cesare Pavese, O ofício de viver, trad. Alfredo Margarido, Relógio D'Água, Lisboa, 2004, pp. 376


II. Duas danças de Valeska Grisebach


Nicole Gläser dança em MEIN STERN (2001) de Valeska Grisebach

As pessoas podem ser mais ou menos hábeis a dançar. Não que se deva reparar demasiado nisso. No entanto, para quem goste de ver pessoas dançar, o mais estranho é quando elas são verdadeiramente hábeis e nada de singular delas aparece no seu movimento. Como se a pessoa escondesse os seus traços vivos nesse momento que se esperaria dos mais apropriados para a sua expressão. Há mesmo pessoas em que o inverso se dá. A sua dança oculta a sua singularidade e podemos nesse momento desconhecê-las. Como em todo o virtuosismo estéril, algumas pessoas podem dançar demasiado bem para o seu próprio bem, sem chegarem a conseguir exprimir a sua ou outra qualquer singularidade. Expõem apenas, na verdade, o carácter geral das capacidades motoras do seu corpo, e são por isso facilmente reconhecidas e admiradas. A expressão individual na dança parece-me muito mais ligada à exposição de uma fragilidade, à evidência da incompletude em cada um. Por isso, neste elemento de exposição que é comovente, há também sempre algo de possivelmente patético. Quem expõe a sua maneira de dançar, se calhar mais desarticulada ou um pouco repetitiva, mas não se confundindo com a pura inabilidade, expressa igualmente o seu modo de vida menos geral, os seus afectos em toda a sua extensão, sem protecção, aquilo que as torna únicas. Fazem-no porventura inconscientemente, mas deixando vir à tona a fragilidade que merece ser exposta, aquela que constitui a partilha entre as pessoas, a que noutros momentos se é obrigado a esconder, e que constitui a única verdadeira arma contra a solidão.

Andreas Müller dança em SEHNSUCHT (2006) de Valeska Grisebach

Creio que a realizadora alemã captou isto intensamente. As personagens principais das suas duas longas metragens são excelentes bailarinos de si próprios, não apenas porque expressam a sua singularidade, mas por ela ter criado condições de isolamento espaciais e temporais das personagens nestas partes do filme, para que as possamos observar com atenção.
Na pequena obra-prima MEIN STERN, uma crónica da adolescência, a jovem interpretada por Nicole Gläser descobre aos poucos os encantos e as dificuldades do amor. Neste excerto do filme, vêmo-la, sempre calma e confidente, acompanhada por uma amiga numa discoteca, antes de a podermos observar a dançar isoladamente. A sua face mantém-se impassível, naquele silêncio adolescente do não saber, do não precisar de pôr em palavras as coisas que vão lá dentro, como noutras cenas do filme. Mas Valeska Grisebach guardou para um momento de dança a sua expressão. Enquanto vai procedendo à passagem de uma música para a outra, a realizadora faz passar a jovem adolescente de uma dança acompanhada pela amiga para uma nova música, já apenas com ela no plano, cortada pelo peito, para depois surgir, de corpo inteiro e por mais de um minuto, no espaço vazio a dançar para nossa pura contemplação. Ela esbraceja ligeiramente, desenhando figuras no ar, e tem um divertido gesto de puxar constantemente as mangas para cima.

Em SEHNSUCHT, a cena de dança passa-se mais no início do filme com o homem interpretado por Andreas Müller, um serralheiro que também é bombeiro voluntário, movimentando-se languidamente e sob o efeito do álcool ao som de «Feel» de Robbie Williams, numa espécie de jantarada. Grisebach indica subtilmente, antes da dança se iniciar, e em contracampo às costas (note-se o pormenor) do dançarino, a personagem feminina com que se irá cruzar no seguimento da noite. Novamente, a personagem irá dançar isolada uma música em particular. E, neste caso, parece até haver uma correspondência talvez excessiva entre a expectativa presente e a acção futura da personagem com a letra da música. O homem move-se lenta e hesitantemente, sempre de olhos fechados, mas de forma graciosa, e a realizadora introduz alguns cortes.

Em ambos os casos, estes momentos de subtil êxtase, que decorrem da expressão individual na dança, parecem projectar sobre a vida das personagens uma capacidade de produzir acontecimentos afectivos que se revelarão decisivos. No caso do homem, uma aventura extra-conjugal nessa noite que se transformará num amor. No da jovem adolescente, igualmente um encontro amoroso que decorrerá desse tempo partilhado. Estes momentos de exposição de um si próprio menos circunstancial, mais autêntico, em suma, de expressão da intimidade das personagens no acto de dançar, parecem constituir o oposto de uma dança baseada na esterilidade virtuosa que não permite os acontecimentos afectivos.

P.S.: Convido ainda à seguinte e tão elucidativa comparação com o videoclip da mesma música de SEHNSUCHT, para ver se, ao contrário do que se diz acerca do cinema estar nos videoclips, aqui não é o inverso: o videoclip está no filme.

O espectador ocioso #7: Um suicídio impossível

Imaginem que as pessoas à vossa volta vos assediam com a promessa de que está aí um filme assim para o deveras depressivo. Vocês, ainda que desconfiados, mas também ocasionalmente carregados de humores funestos, podem sentir-se tentados a desafiar a conjugação das duas depressões, a ver no que dará a reacção química, em particular se se encontrarem naquele estado em que quanto pior, melhor. Findo o filme descobrem quão enganadora foi a promessa, quão enganadoras são afinal as palavras dos outros (no que respeita ao cinema). Aquela depressão de pacotilha figurada no filme escondia a verdadeira e mais comezinha depressão resultante de ver um filme deveras mau.

Uma rigorosa historiografia da cultura popular do final do século passado encarregar-se-á, certamente, de averiguar minuciosamente a que ponto a alegação acerca do papel que terá tido o visionamento do filme Stroszek de Werner Herzog no suicídio de Ian Curtis, que segundo o filme Control de Anton Corbijn (baseado no livro Touching from a distance da viúva) foi assim para o relevante, deve ou não ser tida razoavelmente em conta, quer no domínio cinematográfico quer no mitográfico. Tentando não ser frívolo onde Herzog não o pode ser, se permitirem que exprima uma modesta opinião, trata-se de uma estrita impossibilidade essa coisa de se suicidar depois de ver Stroszek. A não ser que seja de alegria comovida. (O filme passava coincidentemente na televisão, era um dos seus preferidos e ele chora e tudo!) Ouçam lá, não acreditem no que vos mostram. Há certas coisas que ainda são impossíveis, mesmo neste nosso mundo de rezas na era da técnica. As mais simples...
Mas uma averiguação histórica, podendo esclarecer certos pontos da questão passada, não nos salvaguardará das ocorrências futuras. Proponho assim que se organizem ensaios experimentais rigorosos para tirar a coisa a limpo. Visionamento compulsivo de Stroszek para todos! Controlado, claro está! Para que pelo menos os Ian Curtis-wannabe deste nosso mundo não se vejam suicidados parvamente depois da vida parva que os fizeram viver em filmes parvos.
«There's an interesting coincidence regarding your great film Stroszek. Reading about the suicide of Joy Division singer Ian Curtis in the book Touching from a Distance we learn that he watched Stroszek before killing himself. While reading Faber's Lynch on Lynch, David Lynch talks about being in the UK filming The Elephant Man and seeing Stroszek on TV.
Curtis and Lynch appear to have been watching the transmission of the same film at the same time. Although it's a huge simplification, the reactions of the two viewers appear to swing between a complete enchantment of life and self-destruction. Do you find this reveals something about your work?

WERNER HERZOG - It is a very heavy question. There is no frivolity in answering this. I cannot really argue. It is as it is. I wish this singer was still alive and hadn't seen Stroszek at that moment. But deep at the bottom of my heart I do believe that Stroszek was not the reason that he killed himself. I do believe that he must have had some very, very serious deeper other reasons and he may have, and I'm very cautious, he may have used the film as a ritual step into what he was doing.
Regarding David Lynch when he was doing Elephant Man, which is a wonderful film, I do not know. I actually know David Lynch personally and I should speak to him and ask him. There's no real answer to that question, only regret that a young man committed suicide. That's a fact that is sad which is very, very serious and is very disquieting.» Werner Herzog na BBC


P.S.: Uma corda a passar por uma roldana no tecto, o ecrã a negro com apenas o som do movimento correspondente do corpo suicida, pode vagamente sugerir Bresson. A não-coincidência do som e da imagem, etc. e tal. Mas é mesmo só isso, vagamente sugerir... De resto, a cópia (muito mal) feita é outra: o Philippe Garrel a preto e branco, nomeadamente Les amants réguliers. Mais um filme de fotógrafo, enfim. Quando é que começam a proibi-los?
Outra impossibilidade. Ter gostado de Joy Division e aceitar este filme. Mas não faz mal. O mundo parece cheio de coisas impossíveis que lhe dão graça. Sem ironia.

O monólogo de Véronika


Véronika (Françoise Lebrun)


Ela serve-se de um Pernod e bebe-o.
VÉRONIKA: ... A tua cabecinha que percebe tudo... que vem com grandes histórias grandiloquentes e absolutamente ridículas e pretensiosas. O que é divertido entre nós é que há uma pessoa que se leva a sério e outra que não se leva a sério. Adivinhem quem se leva a sério.
MARIE: De vocês os dois ou de nós três.
VÉRONIKA: De nós dois. Entre o Alexandre e eu. Ouve, Marie, deixa-me ao menos um vez...
MARIE: Mas eu deixo-te.
Violentamente, Véronika desata a chorar.
VÉRONIKA: Deixa-me, por favor, Marie. Deixa-me, por uma lamentável história de cama…
Entendam os dois de uma vez por todas que para mim as histórias de cama não têm importância absolutamente nenhuma.
E que eu sou tão feliz com vocês os dois. E que se vocês fodem, eu não tenho nada a ver com isso.
Ao menos, entendam de uma vez por todas que me estou a cagar para isso. Que eu vos amo.
Olhem, estou a começar a ficar bêbada e gaguejo e é absolutamente horrível, porque digo o que penso realmente. E poderia ficar o tempo todo com vocês, de tão feliz que sou. Sinto-me amada por vocês os dois.
Ela olha para Alexandre.
... E este que olha para mim com olhos de colhão rameloso, com um ar de sonso, a pensar: está bem miúda, podes falar à vontade, mas vais ser minha.
Por favor, Alexandre, não estou a fazer teatro. Mas o que é que vocês julgam...
Alexandre estende-se, fecha os olhos. Ela fala.
Para mim, não existem putas. Para mim, uma rapariga que fode com qualquer um, que fode de todas as maneiras, não é uma puta. Para mim, não há putas, pronto. Podes fazer um broche a qualquer um, podes ser fodida por qualquer um, não és uma puta.
MARIE: Mas eu concordo com isso.
VÉRONIKA: Não há putas neste mundo, porra, percebam isto. E tu percebes isto de certeza.
Não há putas, o que é que isso quer dizer puta. A mulher que é casada e feliz e que sonha ser fodida sei lá por quem, pelo patrão do marido, ou por um actor merdoso qualquer, ou pelo leiteiro ou pelo canalizador... Será ela uma puta? Não há putas. O que há é conas, o que há é sexos. O que é que tu julgas. Não é triste, hã, é bem divertido.
Canta.
...E eu fodo com qualquer um, e fodem-me e eu aproveito o que posso.
Fala.
...Porque é que vocês dão tanta importância às histórias de cama?
O sexo...
Fodes-me tão bem. Ah! como eu te amo.
Só tu para me foderes assim. Como as pessoas se deixam iludir. Como podem acreditar. Só há um tu, só há um eu. Só tu para me foderes assim. Só eu para ser fodida assim por ti.
Troça.
...Que coisa mais divertida. Que coisa horrível e sórdida. Porra, que coisa sórdida e horrível.
Se soubessem como vos posso amar aos dois. E como isso pode ser independente de uma história de cama. Fiz-me desflorar recentemente, com vinte anos. Dezanove, vinte anos. Coisa recente. E depois, arranjei um máximo de amantes.
E deixei-me foder. E sou talvez uma doente crónica... fodilhona crónica. E, no entanto, estou-me a cagar para a foda.
Se me deixasse emprenhar, ficava fodida ao máximo hã! Aí, tenho um tampão enfiado, e para mo tirarem e para ser fodida, é preciso ser ao máximo. É preciso ser ao máximo. É preciso excitar-me ao máximo. Estou-me a cagar.
Se as pessoas metessem na cabeça de uma vez por todas que foder é uma merda.
Que há só uma coisa muito bonita: é duas pessoas foderem porque se amam tanto que querem ter um filho que se pareça com elas e que se não for assim é algo de sórdido...
Chora.
… Só se devia foder quando se ama verdadeiramente.
E eu não estou bêbada... se estou a chorar... É por toda a minha vida passada, a minha vida sexual passada, que é tão curta. Cinco anos de vida sexual, é muito pouco. Percebes, Marie, falo contigo porque gosto muito de ti.
Tantos homens que me foderam.
Desejaram-me porque tinha um rabo grande que eventualmente pode ser desejável. Tenho seios muito bonitos que são muito desejáveis. A minha boca também não está mal. Quando os meus olhos estão maquilhados também não ficam mal.
E muitos homens desejaram-me assim, percebes, no vazio. E foderam-me muitas vezes no vazio. Não estou a dramatizar, Maria, percebes. Não estou bêbada.
O que é que tu julgas, julgas que fico a remoer a minha sorte merdosa. De maneira nenhuma.
Fodiam-me como uma puta. Mas sabes, acredito que um dia vai aparecer um homem que me vai amar e me vai fazer um filho, porque me ama. E o amor só tem valor quando temos vontade de fazer um filho juntos.
Se temos vontade de fazer um filho, sentimos que amamos. Um casal que não tem vontade de fazer um filho não é um casal, é uma merda, é sei lá o quê, é poeira... os super-casais abertos...
Tu fodes por um lado querida, eu fodo pelo outro. Somos super-felizes juntos. Voltamos a ver-nos. Que bem que estamos. Mas isto não é uma censura, pelo contrário.
A minha tristeza não é uma censura, percebem...
É uma tristeza antiga que se arrasta há cinco anos... Vocês não são para aqui chamados. Vejam bem os dois, vocês vão ficar bem... Como podem ser felizes juntos.
Silêncio.
Fundido a negro.

Jean Eustache, La maman et la putain, [trad. colectiva], Cahiers du cinéma, 1998, pp. 116-119
La maman et la putain (1973) de Jean Eustache 5ª, dia 6, 22h - Cinemateca

Outros filmes de Dezembro




Pickpocket
Robert Bresson
1959, 74’
4ª, dia 5, 19h30
Cinemateca, Lisboa

Mudar de vida
Paulo Rocha
diálogos de António Reis
1966, 93’

6ª, dia 7, 15h30
Cinemateca

Trás-os-Montes
António Reis e Margarida Cordeiro
1987, 102’
6ª, dia 7, 21h30
Cinemateca

La cicatrice intérieure
Phillipe Garrel
1971, 57’
Cinematografia / Coreografia (prog.
Teresa Garcia e Pierre-Marie Goulet)

2ª, dia 10, 22h - Cinemateca
com a presença de Stéphane Delorme

Szegënelegények / Os oprimidos
Miklos Jancsò
1965, 90’
Cinematografia / Coreografia
3ª, dia 11, 21h30 - Cinemateca
com a presença de Cyril Beghin
e Ricardo Matos Cabo

Gradiva
Raymonde Carrasco *
1978, 25’ cor
Cinematografia / Coreografia
4ª, dia 12, 19h - Cinemateca
com a presença de Ricardo Matos Cabo

Lettre à Freddy Buache
Jean-Luc Godard
1982, 11’

Cinematografia / Coreografia
Sáb, dia 15, 15h30 - Cinemateca
com a presença de Jean-André Fieschi
e António Rodrigues

La collectionneuse
Eric Rohmer
1967, 86’
Sáb, dia 15, 19h30
Cinemateca

O sangue
Pedro Costa
1990, 98’

2ª, dia 17, 15h30
Cinemateca

Route One USA
Robert Kramer
1989, 255’
3ª, dia 18, 22h
Cinemateca

Dead ringers
David Cronenberg
1988, 115’
6ª, dia 28, 21h30
Cinemateca

[apenas filmes vistos, sem repetições]



A mais doce, mais misteriosa e bela praticante da rara arte da subtileza - a Cristina - voltou...
... e Augusto M. Seabra inicia uma nova forma de expressão no seu importante percurso de crítico.

Justificação da crítica francesa para a estranha tradução do título de um filme


«À en croire le titre allemand, l'affaire serait plus compliquée et le désir non seulement despotique et animal. La traduction tente d'en rendre la richesse sémantique, en insinuant un double sens quasi godardien, avec le pluriel en parenthèses. "Sehnsucht", que la langue française n'est pas en mesure de reproduire littéralement, exprime un désir mélancolique, un état amoureux rêveuse et langoureux qui va au-delà de l'inclination libidineuse à laquelle, par l'empire naturel, l'on ne saurait échapper.»
Axel Zeppenfelt, Cahiers du cinéma, Outubro 2007

Isto a propósito do belíssimo filme Sehnsucht (2006) de Valeska Grisebach ter saído em sala em França com o título, no cartaz em maiúsculas, de DÉSIR[S]. Em toda a restante documentação, é referido como Désir(s), ou seja, em português, Desejo(s).
Que estranho este hábito francês de alterar os títulos nas traduções, bem para lá das dificuldades de transposição semânticas! E que imaginação especulativa para o tentar justificar! Assim se enchem páginas... E, no entanto, na última dos Cahiers, a das estrelinhas acumuladas, o apelido da realizadora apareceu dois meses seguidos mal escrito. Mais correcção, menos especulação!
Ora, e em primeiro lugar, convinha não confundir assim o emprego de parênteses rectos com o de parênteses curvos. É precisamente essa confusão que permite a piscadela de olho godardiana, já que é com parênteses curvos que se escrevem as Histoire(s) du cinéma.
Exceptuando o caso optimista de se acreditar na utilização a este propósito da concepção deleuziana de desejo, que nada tem a ver com o prazer e não se restringe de todo ao corpo, não se percebe muito bem que invenção francesa é esta do(s) Désir[s], quando o termo alemão "Sehnsucht" quer dizer algo de aproximado à nossa "saudade". E esta, no filme, circunscreve-se à decorrente do encontro amoroso entre pessoas. Por isso era o título inglês tão bem conseguido: Longing.
No seguimento, e na vaga esperança que o filme volte a ser projectado em Portugal, deixo aqui a sugestão de um título português, que talvez peque apenas pela subtileza: Apego. Revejo o filme, outra vez sem legendas, e creio que também podia ser Anseio.

Tabela de química comparada


Filme
Gerry
Elephant
Last days
Paranoid Park
Ano
2002
2003
2005
2007
Realização
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Montagem
Gus Van Sant
Casey Affleck, Matt Damon
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Gus Van Sant
Direcção de fotografia
Harris Savides
Harris Savides
Harris Savides *
Christopher Doyle *
Kathy Li

Sobre a extrema perigosidade no manuseamento de directores de fotografia:
«The film's cinematographer was Christopher Doyle [...] known primarily for the work he's done with Wong Kar-Wai; characterizing the process of working with him, van Sant said it was "a lot of discussion, a lot of analyzing." [...]
Someone asked if he made a conscious effort to make this film different from his previous work. He said there were differences in the story, source material, and style of storytelling, which was more specifically psychological, more old-fashioned in style.
He said, "sometimes it was like Chris Doyle, Wong Kar-Wai," and said at other times it was a hybrid style, more "austere" like Elephant
*
«A maneira como o sr. rodou “Paranoid Park” é muito diferente da de “Gerry”, “Elefante” ou “Last Days”?
Sim. Esses três filmes eram definidos por conceitos muito rígidos. “Paranoid Park” era muito aberto. Fizemos o que queríamos. Não nos prendemos ao estilo.
Esse filme aparece como um meio-termo entre “Elefante” e seus filmes hollywoodianos, como “Gênio Indomável” [Good Will Hunting].
Sem dúvida. Encontramos convenções dramáticas e buscamos enfrentá-las. “Last Days”, “Elefante” e “Gerry” foram austeros pela maneira como foram filmados. Há filmes cuja história é austera, mas que são rodados de forma convencional.»
*




«Everyone seems to know what a mother may and may not do, and any violation of these expectations is met with massive moral sanctions – unlike when fathers fail to fulfill their expected roles. But in reality, society is full of mothers who do not fulfill their roles as they are expected to.
That was my starting-point. My goal was not to describe a prototype, but a specific, singular person; a woman who claims her mother was never a mother to her.» – Maria Speth
«The pace at which information is revealed allows us to speculate as if deciding what this particular glass of wine really tastes like. The characters are not types, explained by previous exposure, but works-in-progress, sketches of people who could exist, full of uncertainties, anxieties, 'dreams deferred,' and fluctuating percentages of love and pain. The film ends without ending because living does not end when the credits come up.» – Brigitta Wagner

Madonnen / Madonas (2006) 125' de Maria Speth
European Film Festival Dom, dia 11, 14h - Cascais Villa 1 | 2ª, dia 12, 19h30 - Cascais Villa 5

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #10: Da indecidibilidade



Escrevia, em antecipação a State legislature, último filme de Frederick Wiseman, que «a complexidade da vida americana se torna sempre mais intelígivel nos seus filmes», muito para lá da política instituicional. Mas, abordando neste caso uma instituição política estadual em concreto, a Idaho Legislature, Wiseman demonstra como essa complexidade é também ela inerente às próprias instituições consideradas eminentemente políticas, dissolvendo, como habitualmente em Wiseman, os juízos simplistas associados. (Dissolver juízos simplistas, as certezas, não estará entre as menores contribuições que se podem pedir a um documentário.) Como diz modestamente a sinopse oficial, «o filme é um exemplo das realizações, valores, constrangimentos e limitações do processo democrático». A este propósito, creio particularmente útil esclarecer que nada é menos certo do que considerar filmes sobre política como sendo eles próprios políticos. Esta confusão, a meu ver extremamente infeliz e improdutiva, mantém absolutamente estanques política e cinema, cada qual no seu canto indiferente ao outro, quando aparentemente seria o contrário que aconteceria nos ditos documentários políticos. A assim chamada política pode manter assim uma autonomia discursiva tantas vezes auto-referencial, e o cinema uma aparente e enganadora neutralidade, que chamaremos por facilidade de expressão, “formal”. (Pondo a questão como não deve ser posta, digamos que é bastante provável que um filme com posições discursivas “de esquerda” seja, cinematograficamente, um filme “de direita”.)


De resto, é também elucidativo que, sendo Frederick Wiseman considerado quase unanimemente o maior documentarista vivo (provavelmente o maior documentarista de toda a história do cinema e um dos maiores realizadores vivos do cinema tout court), ou precisamente por isso, os seus filmes, é certo que de longa duração, passam invariavelmente a horas extremamente bizarras. Como que se as obras-primas se pudessem tornar repetitivas e maçadoras. Este State legislature foi programado pelo DocLisboa para as 10h30 de uma segunda-feira! Talvez isso contribua para que o preenchimento do Grande Auditório da Culturgest não fosse impressionante, com pouco mais de uma centena de pessoas, a maior parte, aliás, presentes por obrigação escolar. Mas o interesse do filme não reside no contexto da sua apresentação, explode com ele. [É esta capacidade explosiva das obras de arte e do pensamento em geral que me parece tão necessária. Como um livro que aberto nos explode na cara.] State legislature, nos seus 217 minutos que passam a correr, parece constituído por uma única cena, e não apenas pela homogeneidade do cenário.
O gesto maior do filme é, ao omitir a pertença partidária dos legisladores e a conclusão em voto da quase totalidade das matérias legislativas discutidas, mostrar a eminente indecidibilidade do próprio processo democrático, ou seja, a natureza resistente da sua abertura, mesmo quando sujeita a vários constrangimentos. Uma longa e genial cena, a


penúltima do filme, apresenta uma discussão tensa sobre um procedimento excepcional, no interior de uma comissão, que visa, em última análise, impor uma emenda à constituição estadual. A dita emenda, cujo conteúdo não é explicitamente declarado na montagem, é sempre nomeada por “HRJ 9”, fazendo crescer a abstração daquela discussão processual. À sinceridade das locuções dos legisladores, à maneira americana, junta-se portanto a extrema opacidade das posições, pois não conhecemos a filiação partidária nem o que estão a debater. Certos legisladores com a posição favorável à emenda constitucional parecem-nos mais simpáticos, pois já os vimos anteriormente, por exemplo, ter posições de frontalidade contra determinados lóbis, enquanto outros, como a própria presidente da comissão, que procura impedir o procedimento que visa a alteração, nos parece ríspida e autocrática. Ainda no início desta interminável discussão é feita uma mera alusão à protecção das minorias, o que circunscreve para o espectador, embora não decisivamente, a natureza da emenda constitucional. À medida que o debate vai avançado e a votação se processa, com as respectivas declarações de voto dos legisladores da comissão, a simpatia e a antipatia vão-se invertendo, dado que se torna finalmente compreensível, para quem acompanhe um pouco a política americana, que o que está efectivamente a ser ali debatido é um procedimento
excepcional que visa inscrever na constituição estadual do Idaho a menção “entre um homem e uma mulher” na parte relativa ao casamento, impedindo assim que algum juíz venha a entender como legal naquele estado o casamento homossexual! É inacreditável o comovente que se torna esta discussão sobre um procedimento obscuro de emenda constitucional num obscuro estado americano! Não pela temática política em si, mas pela reversibilidade dos papéis simpático-antipático dos legisladores em conjunção com o conteúdo concreto. Trata-se de mais um exemplo do que se poderia chamar de ambiguidade afirmativa.
E apesar do silêncio, necessário a seus olhos, com que Wiseman faz rodear as suas obras (sendo, por exemplo, extremamente lacónico nas entrevistas), é evidente que este filme constitui, desde logo por ter sido feito, uma posição claríssima, de cidadania cinematográfica, sobre o actual estado da democracia americana. Mas o sentido dessa posição não pode ser experimentado sem passar pelo incómodo de ver efectivamente o filme (até ao fim). Neste contexto, talvez não fosse inútil interrogarmo-nos porque terá presentemente Wiseman um outro filme interditado. É que ainda existem filmes proibidos, e estes não são necessariamente os que se declaram políticos!

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #9: Despudor do rosto, pudor do corpo

Parece haver o risco dos filmes levarem por vezes demasiado longe, bem para lá do necessário, a ideia que os enforma. Ao manter-se assim tão fiel à sua ideia, ou mesmo ao seu título, Compilation, 12 instants d’amour non partagé de Frank Beauvais, constitui-se, infelizmente, como uma pura compilação. Trata-se de uma série de 12 canções com os correspondentes grandes planos de um mesmo rosto que as ouve. Retenha-se o pormenor elucidativo de haver igualmente no filme aqueles breves segundos que separam nos cedês uma música da outra. O que fica de fora é tudo o resto, desde logo o corpo do ouvinte, mas também, e sobretudo, os momentos de lassidão, de antecipação ou do depois das canções, o que mais importa, ou até mesmo o desconforto. Tanta fidelidade torna-se demasiado cozida, não deixando nada vivo de fora intrometer-se. Aos realizadores, como aos demais artistas e pessoas vivas em geral, pede-se que não sejam demasiado fiéis a si próprios, que se enganem e escapem às leis que para si próprios criam. Diria até, no fim de contas, que esse gesto de libertação contra si próprio é que é o criativo, talvez mais do que as regras que se criam e que constituirão um estilo posterior reconhecível. Boris Lehman, no debate após a projecção do seu Tentatives de se décrire, explicava que tinha decidido incluir aquelas partes iniciais dos planos, em que fazia a claquete com as mãos, e as finais, em que se o ouvia dizer “corta”, para introduzir alguma dureza. Eis umas das muitas coisas que parecem faltar a Compilation.


Mesmo aquele que poderia ser o ponto de partida mais interessante do filme, a constatação de como são interessantes as expressões faciais (e corporais) das pessoas em posição de escuta, por oposição às das pessoas que olham, acaba afinal por ser meramente sugerido. A propósito, estou em crer que o cinema tem exercitado muito mais esta homologia dos olhares (entre o espectador e as personagens) do que a heterologia do olhar e da escuta.
Outra das coisas que lhe faltam é o pudor. A presença constante daquele rosto do jovem amado pelo realizador, em 12 grandes planos que totalizam 40 minutos, é uma experiência extremamente constrangedora. (Foi assim, pelo menos, que eu a senti.) Um duplo embaraço, ao do jovem actor filmado de tão perto segue-se o nosso. Aliás, de um constrangimento particular, que nunca tinha tido enquanto espectador de cinema, pela sobreexposição de um rosto (ou corpo) perante nós, e que é semelhante, devo dizer, ao que sinto, por vezes, quando no teatro, ou quando alguém nos faz uma pergunta, banal ou importante, que nos apanha desprevenidos e a que não sabemos sequer como começar a responder. Quando assim é só nos resta baixar os olhos. (Um pouco como fazem os carrascos do S-21 de Rithy Panh, talvez em expressão da sensação de vergonha.)
Nestas condições precárias, aquilo torna a experiência de ver o filme suportável são as bonitas músicas, muito bem escolhidas, e o acompanhamento, de olhos em recato, que


podemos delas fazer nas legendas que traduzem a letra das canções. Pelo menos eu evitava a todo o custo o rosto do jovenzinho, que, imaginem, foi sujeito a 250 planos semelhantes. Também por isto não pode ser tomado assim como tão evidente aquilo que é proclamado sobre este filme, que seja ele próprio uma consequência do amor do realizador pelo seu actor (para além do cinematográfico, na vida real, quer dizer). Não se tratará antes de um espelhamento que já nada terá a ver com o amor, que será quase o seu contrário, uma cristalização do olhar de quem ama? O realizador ama, é dito. Mas o filme, no entanto, não. E porque havia de o fazer? Apenas pela força da vontade, quando o rosto daquele que é amado aparece assim desfeito pela sobreexposição, apagando os traços do seu segredo, tornando-o vulgar, dificilmente amável? E não é esse precisamente o resultado dos amores maldosos ou desequílibrados, das paixões funestas?
Pergunto-me como aguentaram embaladas este despudor do rosto as pessoas que sairam depois durante a projecção que se seguiu na mesma sessão, a do filme De son appartement de Jean-Claude Rousseau (incluído no mesmo programa ‘Riscos e ensaios’). Sugiro por isso algum cuidado a ter nas avaliações que se fazem destas pretensas documentações do íntimo. Neste aspecto, o íntimo por conhecer em La pudeur et l’impudeur de Hervé Guibert, revisto, não perdeu quase nada da sua força (cinematográfica).


Neste gesto, que agora vemos mais afastado de uma actualidade premente, e que nos surge surpreendentemente tão simples e livre, apesar de focar a enormidade da experiência da doença do realizador, sob a qual se centra, são menos os momentos líricos de composição que resistem, os gestos artísticos explícitos, e antes os em que há uma verdadeira crueza na exposição do corpo. São esses que são justos perante a experiência da doença. Guibert resistiu estoicamente a transformar a doença, a SIDA, num assunto privado, pessoal, no mau íntimo. Seja a cena do realizador a cagar da diarreia provocada pelos medicamentos com a porta da casa-de-banho aberta, seja a sua operação, a tomar duche, a ver-se ao espelho nu, etc., tudo o que tenha a com a exposição franca do corpo surge como documentando algo que não conhecíamos, de que não tínhamos feito a experiência (ainda que indirecta), e que era (e ainda é) importante ver. E tal de forma absolutamente nada sentimental. Por incrível que pareça, são momentos extremamente fortes de pudor do corpo. A aparente sobreexposição (nudez, traços da doença, etc.) traduz-se em recato. [Mais uma vez, no cinema não há regras; há modos de fazer, casuísticos.] O importante é que Guibert resistiu a filmar o pudor (ou o despudor correlativo) de um íntimo que estava pressuposto, mostrando antes o extremo pudor da exposição de um corpo novo, não no sentido de jovem, mas por atacando pelas novas formas da infinita doença.

Outros filmes de Novembro


Pepi, Luci, Bom y otras chicas
del montón

Pedro Almodóvar
1980, 82’
European Film Festival
5ª, dia 8, 14h15
Cascais Villa 2 + outras sessões

¿Qué he hecho yo para merecer
esto!!

Pedro Almodóvar
1984, 101’
European Film Festival
5ª, dia 8, 15h
Casino Estoril + outras sessões

La ley del deseo
Pedro Almodóvar
1987, 102’
European Film Festival
5ª, dia 8, 22h
Casino Estoril + outras sessões

Modern times
Charles Chaplin
1936, 87’
European Film Festival
6ª, dia 9, 14h
Cascais Villa 1

Belarmino
Fernando Lopes
1964, 72’
6ª, dia 9, 21h30
Cinemateca, Lisboa

Eraserhead
David Lynch
1977, 89’
European Film Festival
2ª, dia 12, 14h15
Cascais Villa 2 + outra sessão

L’albero degli zoccoli /
A árvore dos tamancos
Ermanno Olmi
1979, 180’
European Film Festival
2ª, dia 12, 14h15
Cascais Villa 3

The dead zone
David Cronenberg
1983, 83’
European Film Festival
3ª, dia 13, 14h45
Cascais Villa 3

Ansikte mot ansikte / Face a face
Ingmar Bergman
1976, 135’
3ª, dia 27, 15h30
Cinemateca

Aus dem Leben der Marionetten /
Da vida das marionetas
Ingmar Bergman
1980, 104’
5ª, dia 29, 15h30
Cinemateca

Paris, Texas
Wim Wenders
1984, 142’
6ª, dia 30, 19h
Cinemateca

[apenas filmes vistos, sem repetições]

Notas demasiado soltas: Meta-nota

[Ao contrário do que seria desejável, é notório que exerço cada vez menos qualquer espécie de controlo sobre os inevitáveis produtos da minha cabeça. Como já indicava Thomas Bernhard, tal procedimento configura uma terapêutica. Não parece haver outra. Quanto mais parvoíces (das minhas, atenção) escrevo, mais me sinto saudável. Por isso, é provável que hajam bastantes desencontros entre as minhas parvoíces e a vossa leitura. O contrário é que seria de espantar. Vocês têm as vossas (verdadeiras) parvoíces para cuidar, têm lá tempo e cabeça para as (verdadeiras) parvoices dos outros. No espinhoso e dificultoso campo do humor, é sabido que os gostos são por demais divergentes. Mesmo ao nível do seu simples entendimento, na ausência de letreiros, são enormes os equívocos e as sobreleituras. Vejamos nestas «notas soltas, demasiado soltas». Quanto de vós não tomaram como um ataque mais ao menos velado aos direitos adquiridos dos gays aquele exercício de estilo em que me empenhava por intricar ao máximo uma minha muito imaginária retórica sociológica-tecnocrática? Quantos acreditaram que realmente um blogue como este recebe algum correio de leitores, por amor de Deus? Quem pernoitou na fina camada que separa a especulação sobre os meandros da zoofília da acusação estrita, porventura possível, eu sei lá, de que todas as pessoas que têm animais de estimação são zoófilas? Ah, para mais está tudo ao molho, não é? Não há uma personagezinha que indique o caminho do sentido de humor. Pois, mas as personagezinhas a mim põem-me doente, indo contra a terapêutica, o que é pior. Assim, cada texto pode estar armadilhado, não vou dizer onde é que é para rir. Talvez vocês achem piada a outras matérias sobre as quais não sou versado. Façam vocês as vossas personagens que fodam as vossas terapêuticas.]

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #8: A pequena atenção

Apesar de tudo, há esperança. Um filme pode progressivamente ir desmontando os seus próprios pressupostos. (Não se saia da sala logo a correr, há que dar uma hipótese.) Un jour à Marseille de Mauro Santini começa com um dispositivo explícito, pouco agradável, de peeping tom; alguém espreita oculto pelas frestas da janela para a rua. Mas, à medida que as sequências do filme aparecem, tal vai-se atenuando. O gesto demasiado declarado desvanece-se, até se tornar um modo como outro qualquer. Ou quase, como veremos, por dar assim lugar à extrema atenção. Parece-me que esta não pode ser desprezada apenas porque constitui uma observação inobservada (quer dizer, por o dispositivo do filme ser desconhecido para quem está a ser filmado). Há momentos em que certos pressupostos éticos ligados à actividade cinematográfica, e ao documentário em particular, podem preceder a visão em concreto dos filmes, obstruíndo a fruição que lhes é devida.
À distância, isolada, com bastante grão, e com um som extremamente rarefeito que contraria magicamente a evidência do directo, a última e mais longa sequência do filme, focando a varanda de alumínio de uma habitação branca quase ao nível do mar sobre as rochas da costa de Marselha, é um exercício prodigioso sobre a atenção, quase uma sua tese. É importante distinguir aqui a atenção da sua afim, a contemplação. Há aqui uma mobilidade da câmara que oscila e segue, por vezes hesitanto, as estranhas e pacificadas personagens familiares, que descem sobre a rocha ou se chegam lentamente à frente da varanda. A atenção incide sobre uma multiplicidade de eventos, mesmo em tão estreito espaço, desdobrando-se, em particular, sobre uma menina que observa e vem a alcançar, depois de se calçar apropriadamente, algo que se encontra na água (que não chegamos a perceber o que é). Um homem mais velho chega-se, observa e volta-se para o outro lado, fumando pausada e melancolicamente. Tudo isto num cenário maioritariamente branco, frequentemente (propositadamente?) sobreexposto no sentido fotográfico, como que avisando para as dificuldades da atenção serem mais o excesso de signos do que a sua rarefacção.

O espectador ocioso #6: Cabelos assim molhados

O espectador ocioso, como aliás tanta gente, gosta de ver filmes na caminha. Naquelas noites mais frias e solitárias, como aliás tantas noites são, profia a surpresa da programação inesperada de um bom filme. Vá lá, pelo menos de um razoável, assim não especialmente difícil de ver, que o liberte de ter que andar a fazer zapping nervoso pelos quatro, e já são demais, canais de televisão a que tem acesso, saltando entre vários filmes e séries. Quando são maus ou pouco estimulantes, tem que se os intercalar com outros, diz. É perfeitamente possível e muito mais saudável ver vários deste calibre ao mesmo tempo. Mesmo certos filmes menos exigentes com a sua atenção, ainda que bons, confessa envergonhado para si próprio, até os prefere ver na televisão. Do lado da tristeza, a generalidade dos filmes americanos actuais, por exemplo. Ali é que o espectador ocioso acha que eles estão bem. Em pequenino, na televisão. Quem se lembraria de ir ver o The village do Shyamalan ao cinema? Para onde iria aquele brilhozinho todo? Do lado da alegria, ah, quem não sabe o que é ver os clássicos americanos entre o edredão e as almofadas? A singular descontração inocente que estes filmes permitem não diz mais respeito ao aconchego da caminha do que à cadeira quase eléctrica da sala?
Na outra noite, o espectador ocioso vagueava perdido entre tantos excessivos canais na madrugada da televisão de uma amiga, até que um genérico azul, nada arrojado mesmo, lhe prendeu a atenção. Era La niña santa/A rapariga santa de Lucrecia Martel! Não conhecia, por suposto. Tinha deixado o seu cepticismo imperar outrora, mas tinha agora até uma grande curiosidade em o ver. E o filme, verdade seja dita, não desmerece de todo, mas isso, no fundo, não interessa nada agora aqui para o caso. Não é que o espectador, no meio do seu
ócio tão insistente, não ficou foi a pensar onde tinha ele visto antes aquelas raparigas devotas, de cabelos compridos assim molhados e escorridos, e de caras extremamente pálidas? É sabido o complicado que são os cabelos assim molhados, naquele estado em que não se sabe bem se estão molhados da água recente de lavar ou da gordurinha do couro cabeludo e demais impurezas húmidas. Confusões tão queridas. O filme, como seria de esperar, não esclarece cabalmente e de forma definitiva a referida dificuldade. Mas depois de muito matutar, distraindo-se por vezes da catrefada de inabilidades seguidas das personagens doridas que o filme misericordiamente dispunha, encontrou, mais do que a mera origem daquela imagem dos cabelos escorridos assim molhados de adolescentes femininas imberbes e já tão perversas, toda uma estranha, reconhece, filiação cinematográfica. Onde se lembrava ociosamente de tantos cabelos escorridos assim molhados? Pois não era dos Ossos de Pedro Costa?! Desta é que o espectador não estava à espera! Mas é inegável, se bem se lembram vocês, que a Vanda e a Clotilde em Ossos, pelo menos a Vanda de certeza, e No quarto da Vanda também, usavam a mesma cara pálida e os cabelos assim para o molhado. Se Lucrecia Martel, que é tão jovenzita, viu estes filmes ou não, não pode um espectador ignorante assegurar. Não interessa. A personagem da rapariga santa chama-se Amália, se mais provas precisas fossem. Fica por demais provado que as filiações cinematográficas também se medem por coisas tão comezinhas como os cabelos escorridos e as caras pálidas, pelas dificuldades em distinguir o molhado do sujo, e não apenas por muito vagas subtilezas formais. Não há que enganar.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #7: Rescaldo

Uma obra-prima: State legislature (Frederick Wiseman). Alguns filmes mesmo muito bons: Diary (David Perlov), Le papier ne peut pas envelopper la braise (Rithy Panh) e De son appartement (Jean-Claude Rousseau). Outros ainda: Tentatives de se décrire (Boris Lehman), Tarch trip (Hiroyuki Oki), Lost, lost, lost (Jonas Mekas), La pudeur et l'impudeur (Hervé Guibert), Window, water, baby, moving (Stan Brackage), Unsere Afrikareise (Peter Kubelka). Uma pequena surpresa: Un jour à Marseille (Mauro Santini).

Se o papel não pode embrulhar as brasas...



O estilo de Rithy Panh, não sendo, no entanto, caso único entre grandes realizadores, é confundível com a televisão, e não apenas à primeira vista. Há algo de aparentemente simplificado no modo como trabalha com a câmara e a relaciona às pessoas que encontra. Quero dizer que ele não procura refugiar-se numa estilização formal que o proteja dessa possível indistinção com o amorfismo, por vezes obsceno, da televisão. Por isso tem-se a sensação de que são muito livres os seus filmes. Pois conseguem atravessar essa confusão nas nossas cabeças para construir por outra vias (mas quais?) uma sensação viva. Um filme como este, que foca de tão perto as vidas, e não consigo evitar dizê-lo, desgraçadas das prostitutas cambojanas, e em que elas frequentemente choram em grande plano, constitui assim mais uma prova da brilhante dissolução dessa indistinção, embora não seja obviamente essa a sua principal vitória. E isto apesar de haver momentos que nos fazem hesitar para que lado pende, como a sublimação de uma chuvada ou um certo tipo de utilização da música. Mas, no fim de tudo, a verdade é que se o papel não pode embrulhar as brasas, o filme consegue. Urge por isso rever os seus maravilhosos e não menos estranhos filmes – S-21, Les artistes du théâtre brûlé e este – para começar a perceber porquê.
(É esse um dos mistérios do cinema, quanto a mim. Que sem regras pré-estabelecidas, tendo que fazer a experiência de filme a filme, cada um por si, uma construção de sensações se forme, sejam harmónicas ou não, e que o filme nos habite doravante assim, uno e múltiplo ao mesmo tempo, simples e complexo, nos bons casos, artefactos que não ficam a dever à vida, a ela devolvendo tudo o que pediram emprestado.)

Le papier ne peut pas envelopper la braise
(2006) de Rithy Panh
Sáb, dia 20, 16h30 - Londres 1
2ª, dia 21, 21h - Culturgest, Grd. Aud.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #6: Filmes gay

Um pouco ao arrepio do paradigma categorial vigente, e de modo a proporcionar uma mais adequada sectorização de público e, também e sobretudo, de crítica, e exponenciando ao mesmo tempo e mais adequadamente as virtualidades de ambas, gostava de me dirigir à estimada assembleia propondo a seguinte, e concerteza parcialmente incorrecta, como todas as ainda não validadas pelo sistema convencionado de peer review, distinção entre filmes gay e filmes feitos por gays. Assim, e procurando emancipar a segunda categoria do estatuto de subdivisão da primeira, poderíamos eventualmente estabelecer como pertencentes à primeira categoria, por exemplo, China, China de João Pedro Rodrigues, Compilation, 12 instants d’un amour non partagé de Frank Beauvais, Glitterburg atríbuido a Derek Jarman, e Pensão Globo de Mathias Müller, enquanto à segunda, O sabor da melancia de Tsai Ming Liang, De son appartement de Jean-Claude Rousseau, La pudeur et l’impudeur de Hervé Guibert, e Tarch trip de Hiroyuki Oki.
Ou, caso a assembleia esteja disposta a assim estabelecer como consenso operativo, poder-se-á igualmente declarar provisoriamente inerte a dita categoria supradivisória, na medida em que não foi detectado nem parece haver registo indicativo de efeito da correspondente substância activa, e até que testes experimentais mais avançados o consigam determinar, no que toca à acção favorável ou desfavorável desenvolvida no dado campo cinematográfico, tomado em sentido estrito. Obviamente, não será demais salientar que a área de acção desta clarificação categorial restringe-se estritamente ao atrás referido campo cinematográfico, não devendo ser entendida como um movimento de recuperação de quaisquer paradigmas anteriormente vigentes que não expressavam a complexidade e diversidade do conjunto dos campos operativos dos vários subsistemas.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #5: Playstation

Nisto das tecnologias, não há como não ser um pouco reaccionário. Há que anos que aquelas maquinetas pequeninas para ali estavam, sem que me tivesse sequer posto a hipótese de as conferir. Um espécie de desprezo fazia-me deslizar perante o seu design sem consideração alguma. Quis o destino que os efeitos demasiado notórios da digitalização num filme projectado me tivessem expulso da sala e, enquanto aguardava por uma boleia, me pusesse a brincar, sentado num pufe já um pouco arrebentado que libertava esferovite, com aquelas maquinetas Playstation. Pessoas menos aventurosas gozavam quando passavam, deliciadas por me ver finalmente assim quase deitado no chão, parecendo ter perdido a razão que me resta. A essas digo que ainda não foi desta. Mas, voltanto às maquinetas, afinal para que serviam? E não é que descobri, para meu espanto, que têm lá dentro excertos da quase totalidade dos filmes presentes no festival! Que delícia poder assim escolher o que ver a partir destes excertos. Para o ano, se calhar, já nem será preciso entrar na sala. De qualquer modo, podem dizer que é enganador ver só um poucochinho do filme, em geral até três minutos, mas sê-lo-á menos uma imagem fixa apenas, ou uma sinopse escrita sabe-se lá por quem e com que intenções, ou ainda as recomendações de toda a espécie de gente? Não tem uma pessoa de proteger a sua cabeça dos sopros alheios? Alguns filmes estão simplesmente representados pelos seus minutos iniciais, enquanto outros por uma cena particular ou mesmo pelo trailer. As imagens são pequeninas, é certo, e ouve-se bastante mal, para além do risco de ir parar ao menu errado,
mas o procedimento compensa, pelo menos no que diz respeito à confirmação das nossas intuições acerca de um filme ou outro. Há, no entanto, um primeiro efeito não negligenciável: os filmes passam todos a parecer muito bons. Sabemos, no entanto, que no escuro da sala, enquanto sujeitam a nossa paciência a torturas atrozes, tal não é evidentemente o caso. Algo me fez reviver as tão belas memórias de jogos no Spectrum, em particular, dos jogos de carros de corrida em que, nos momentos de pânico em que era preciso travar, eu me punha a carregar inábil em todos os botões ao mesmo tempo, levando a acelerar ainda mais, com consequências sempre mortais. Aqui passou-se o mesmo. Quando o excerto do filme se aproximava da condução perigosa e eu tentava manter a segurança do meu habitáculo mental, carregava no botãozinho errado e precipitava tudo. Talvez seja por isto que, nesta idade já não tão tenra, ainda não tirei a carta, embora uma antiga namorada me tenha deixado, há muitos anos, fazer em condições mais que ébrias um slalon nocturno num Renault 5 por entre filas de carros na freguesia da Ameixoeira. Bons tempos esses, nem cinto de segurança se usava e ninguém se preocupava. O que mudámos! Por isso, pelo menos se não quiserem recordar aqueles momentos tão livres da vossa infância irremediavelmente perdida em que se aproximavam de todas as maquinetas sem juízos a priori, não se cheguem nem perto. Poderão assim continuar a olhá-las com o vosso leve desprezo e a manter uma posição respeitável perante os olhares dos outros.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #4: Cartas dos leitores

Tenho recebido inúmeras cartas, nomeadamente dos leitores Casimiro Machado da localidade de São Francisco de Poiais, Manuel Vicente de Arrufos de Fora, e Paula Maria Pereira da Vila do Samuco (saudações amigas), que resolveram expressar a sua relativa preocupação e pesar pelo que consideram a crescente ligeireza com que têm sido focados os assuntos cinematográficos neste blogue, que tanto acarinhavam, e deixando a leve ameaça que procurarão outros mais respeitosos, evitando eu «arrepiar caminho». Pois tenho a dizer, caros leitores, que não é pelas ameaças que me levam lá. Bem sei que prometi, cheguei mesmo a começá-lo, um longo e intrincado ensaio versando todas as subtilezas d'«Os intervalos de Francisca [de Manoel de Oliveira]». Mas os caminhos, não só os do Senhor, são deveras ínvios. De qualquer modo, aqui deixo a minha garantia, tintada de humildade, que o tom jocoso será em breve abandonado, dando lugar àquele mais formal e, como alguns abonados gostam de lhe chamar, pseudo-intelectual, que tantos leitores por esse mundo fora tem fidelizado.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #3: Sair da sala

Sair da sala. Com as luzes ainda apagadas. Pisando os outros espectadores. Algures a meio do filme. É uma pena, tenho que dizer. Mas é preciso, por vezes. Há todavia uma escola de pensamento que defende que se deve ver um filme até ao fim, em qualquer circunstância, pois pode sempre haver algo que o salve. Apesar de acreditar na salvação, confesso que não partilho desta regulamentação. À medida que vou vendo um filme vou sentindo avolumar-se, nem falo de ofensas e indignidades várias que os filmes vão deixando cair, mas um remolhão de intuições acerca da possível disposição mútua entre mim e a dita obra cinematográfica. Quer dizer, aquilo que nos vai dar não chega para o que queríamos receber. Em cada pessoa, esse ponto de equilíbrio estará mais à mostra ou, pelo contrário, bem escondido. Em suma, não é igual para todos. Por mim, não tenho gosto nenhum em ficar pendurado nesse hiato, eu de mão estendida ao filme que não a cumprimenta, e vice-versa. É embaraçoso.
Por outro lado, quando se dá o caso de se ver cinema em instituições culturais não especificamente vocacionadas para o cinema, corre-se o risco de se ser confrontado com toda uma ética estranha, imposta pelos funcionários-arrumadores mais habituados às ditas artes do espectáculo. Não poucas vezes me vejo obrigado a franzir as sobrancelhas e a dizer com a convicção mais amável que consigo: «Isto não é teatro! No cinema saímos e entramos quando queremos!» Procuro assim deixar o mais claro possível que, enquanto espectador de cinema, desde que pague bilhete (e mesmo não pagando), não reconheço quaisquer limitações à livre circulação da minha própria pessoa, de fora para dentro e de dentro para fora. Quer dizer, nem sequer há alguém de carne viva no palco que possa distrair a sua solenidade com a irrupção de um espectador atrasado ou simplesmente distraído. É só uma tela. Claro que há espectadores que, desprezando aparentemente a também nobre história das sessões contínuas de cinema, preferem uma disciplina mais espartana, e advogam que nada em nenhuma circunstância se interponha entre o bailado que dançam quietos com os olhos no ecrã. Por isso, desculpem lá, mas saio e entro quando me apetecer. Deviam experimentar. A versão pequena da alegria de desistir mesmo ali à mão. Até porque não há pior do que um espectador ressentido, bufando por tudo e por nada, rindo-se de desdém às horas mais inapropriadas, mantendo-se colado à sua cadeira apenas para a manutenção dos seus maus-figados.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #2: Zoofilia

Nem de propósito... (Os festivais de cinema mantém uma espécie de grande caixote do lixo, que dão pelo nome de Videotecas. Como nos caixotes do lixo das nossas cidades, é ingenuidade severa pensar que dá para ir lá buscar os restos que se quer à vontade. Existem regras, e são para cumprir. Assim, por exemplo, no IndieLisboa nem sequer depois dos filmes terem passado em projecção se os pode ver na Videoteca. Partem do princípio que não quisemos pagar o bilhete, e não estão dispostos a ouvir que não podíamos, tínhamos uma sessão à mesma hora, estávamos doentes, etc. No DocLisboa é um pouco mais amigável. Depois dos filmes passarem podem ser vistos. Mas a bactéria média que habita Videotecas são os filmes recusados na selecção. É assim que, para além da fruta demasiado verde para ser comestível, também se lá encontram, nesses grandes caixotes, por vezes, alimentos deveras nutritivos. Certo que alguns terão o prazo de validade já passado, mas a sua pujança alimentícia em nada esmoreceu, pelo contrário. E não sabemos nós que anda por aí muito restaurante a servir senão comida estragada? Foi portanto assim que, nos últimos anos, acabei por ver alguns filmes do Herzog, ou do Farocki, de sabor relativamente apurado. Este ano já pude provar um dos últimos Cavalier, talvez rejeitado em competição ou que não se terá talvez conseguido intrometer-se numa sessão paralela.) ... Nem de propósito, dizia eu, procurando continuar o agradável solilóquio sobre a zoofilia (ver em baixo), em Huit récits express de Alain Cavalier, pescado na Videoteca do DocLisboa, há um episódio relevante em que o realizador e a mulher se entretéem, como de resto habitualmente, a comentar o seu quotidiano mais comezinho filmado em câmara à mão. (Se quiserem experimentar ao que sabe, experimentem Le filmeur, que ainda vai passar). Mas, neste episódio particular, concentram a sua atenção no comportamento do seu gato, aliás recentemente (mal) capado, que fantasmaticamente insiste em subir para a cama do casal e simular a cópula com os pés da dona, apesar de não ser munido, mordendo-a com aquela mistura de dureza e carinho que também nós tão bem conhecemos. Ouço dizer que tal é um comportamento por demais comum nos canídeos. Por isso, não será talvez de surpreender que algumas pessoas, menos versadas na obediência aos bons costumes, procurem retribuir, respondendo a esses apelos de amor físico interespécies, comendo do mesmo prato. Cavalier e a mulher responsabilizam o perfume dela, que dá pelo nome de Joy, pelo comportamento. Eu também. Aliás, ainda recentemente deixei entrar uma osga no quarto, garanto que por descuido, e fui forçado a dormir com ela.


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