Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O espectador ocioso #6: Cabelos assim molhados

O espectador ocioso, como aliás tanta gente, gosta de ver filmes na caminha. Naquelas noites mais frias e solitárias, como aliás tantas noites são, profia a surpresa da programação inesperada de um bom filme. Vá lá, pelo menos de um razoável, assim não especialmente difícil de ver, que o liberte de ter que andar a fazer zapping nervoso pelos quatro, e já são demais, canais de televisão a que tem acesso, saltando entre vários filmes e séries. Quando são maus ou pouco estimulantes, tem que se os intercalar com outros, diz. É perfeitamente possível e muito mais saudável ver vários deste calibre ao mesmo tempo. Mesmo certos filmes menos exigentes com a sua atenção, ainda que bons, confessa envergonhado para si próprio, até os prefere ver na televisão. Do lado da tristeza, a generalidade dos filmes americanos actuais, por exemplo. Ali é que o espectador ocioso acha que eles estão bem. Em pequenino, na televisão. Quem se lembraria de ir ver o The village do Shyamalan ao cinema? Para onde iria aquele brilhozinho todo? Do lado da alegria, ah, quem não sabe o que é ver os clássicos americanos entre o edredão e as almofadas? A singular descontração inocente que estes filmes permitem não diz mais respeito ao aconchego da caminha do que à cadeira quase eléctrica da sala?
Na outra noite, o espectador ocioso vagueava perdido entre tantos excessivos canais na madrugada da televisão de uma amiga, até que um genérico azul, nada arrojado mesmo, lhe prendeu a atenção. Era La niña santa/A rapariga santa de Lucrecia Martel! Não conhecia, por suposto. Tinha deixado o seu cepticismo imperar outrora, mas tinha agora até uma grande curiosidade em o ver. E o filme, verdade seja dita, não desmerece de todo, mas isso, no fundo, não interessa nada agora aqui para o caso. Não é que o espectador, no meio do seu
ócio tão insistente, não ficou foi a pensar onde tinha ele visto antes aquelas raparigas devotas, de cabelos compridos assim molhados e escorridos, e de caras extremamente pálidas? É sabido o complicado que são os cabelos assim molhados, naquele estado em que não se sabe bem se estão molhados da água recente de lavar ou da gordurinha do couro cabeludo e demais impurezas húmidas. Confusões tão queridas. O filme, como seria de esperar, não esclarece cabalmente e de forma definitiva a referida dificuldade. Mas depois de muito matutar, distraindo-se por vezes da catrefada de inabilidades seguidas das personagens doridas que o filme misericordiamente dispunha, encontrou, mais do que a mera origem daquela imagem dos cabelos escorridos assim molhados de adolescentes femininas imberbes e já tão perversas, toda uma estranha, reconhece, filiação cinematográfica. Onde se lembrava ociosamente de tantos cabelos escorridos assim molhados? Pois não era dos Ossos de Pedro Costa?! Desta é que o espectador não estava à espera! Mas é inegável, se bem se lembram vocês, que a Vanda e a Clotilde em Ossos, pelo menos a Vanda de certeza, e No quarto da Vanda também, usavam a mesma cara pálida e os cabelos assim para o molhado. Se Lucrecia Martel, que é tão jovenzita, viu estes filmes ou não, não pode um espectador ignorante assegurar. Não interessa. A personagem da rapariga santa chama-se Amália, se mais provas precisas fossem. Fica por demais provado que as filiações cinematográficas também se medem por coisas tão comezinhas como os cabelos escorridos e as caras pálidas, pelas dificuldades em distinguir o molhado do sujo, e não apenas por muito vagas subtilezas formais. Não há que enganar.


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