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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #10: Da indecidibilidade



Escrevia, em antecipação a State legislature, último filme de Frederick Wiseman, que «a complexidade da vida americana se torna sempre mais intelígivel nos seus filmes», muito para lá da política instituicional. Mas, abordando neste caso uma instituição política estadual em concreto, a Idaho Legislature, Wiseman demonstra como essa complexidade é também ela inerente às próprias instituições consideradas eminentemente políticas, dissolvendo, como habitualmente em Wiseman, os juízos simplistas associados. (Dissolver juízos simplistas, as certezas, não estará entre as menores contribuições que se podem pedir a um documentário.) Como diz modestamente a sinopse oficial, «o filme é um exemplo das realizações, valores, constrangimentos e limitações do processo democrático». A este propósito, creio particularmente útil esclarecer que nada é menos certo do que considerar filmes sobre política como sendo eles próprios políticos. Esta confusão, a meu ver extremamente infeliz e improdutiva, mantém absolutamente estanques política e cinema, cada qual no seu canto indiferente ao outro, quando aparentemente seria o contrário que aconteceria nos ditos documentários políticos. A assim chamada política pode manter assim uma autonomia discursiva tantas vezes auto-referencial, e o cinema uma aparente e enganadora neutralidade, que chamaremos por facilidade de expressão, “formal”. (Pondo a questão como não deve ser posta, digamos que é bastante provável que um filme com posições discursivas “de esquerda” seja, cinematograficamente, um filme “de direita”.)


De resto, é também elucidativo que, sendo Frederick Wiseman considerado quase unanimemente o maior documentarista vivo (provavelmente o maior documentarista de toda a história do cinema e um dos maiores realizadores vivos do cinema tout court), ou precisamente por isso, os seus filmes, é certo que de longa duração, passam invariavelmente a horas extremamente bizarras. Como que se as obras-primas se pudessem tornar repetitivas e maçadoras. Este State legislature foi programado pelo DocLisboa para as 10h30 de uma segunda-feira! Talvez isso contribua para que o preenchimento do Grande Auditório da Culturgest não fosse impressionante, com pouco mais de uma centena de pessoas, a maior parte, aliás, presentes por obrigação escolar. Mas o interesse do filme não reside no contexto da sua apresentação, explode com ele. [É esta capacidade explosiva das obras de arte e do pensamento em geral que me parece tão necessária. Como um livro que aberto nos explode na cara.] State legislature, nos seus 217 minutos que passam a correr, parece constituído por uma única cena, e não apenas pela homogeneidade do cenário.
O gesto maior do filme é, ao omitir a pertença partidária dos legisladores e a conclusão em voto da quase totalidade das matérias legislativas discutidas, mostrar a eminente indecidibilidade do próprio processo democrático, ou seja, a natureza resistente da sua abertura, mesmo quando sujeita a vários constrangimentos. Uma longa e genial cena, a


penúltima do filme, apresenta uma discussão tensa sobre um procedimento excepcional, no interior de uma comissão, que visa, em última análise, impor uma emenda à constituição estadual. A dita emenda, cujo conteúdo não é explicitamente declarado na montagem, é sempre nomeada por “HRJ 9”, fazendo crescer a abstração daquela discussão processual. À sinceridade das locuções dos legisladores, à maneira americana, junta-se portanto a extrema opacidade das posições, pois não conhecemos a filiação partidária nem o que estão a debater. Certos legisladores com a posição favorável à emenda constitucional parecem-nos mais simpáticos, pois já os vimos anteriormente, por exemplo, ter posições de frontalidade contra determinados lóbis, enquanto outros, como a própria presidente da comissão, que procura impedir o procedimento que visa a alteração, nos parece ríspida e autocrática. Ainda no início desta interminável discussão é feita uma mera alusão à protecção das minorias, o que circunscreve para o espectador, embora não decisivamente, a natureza da emenda constitucional. À medida que o debate vai avançado e a votação se processa, com as respectivas declarações de voto dos legisladores da comissão, a simpatia e a antipatia vão-se invertendo, dado que se torna finalmente compreensível, para quem acompanhe um pouco a política americana, que o que está efectivamente a ser ali debatido é um procedimento
excepcional que visa inscrever na constituição estadual do Idaho a menção “entre um homem e uma mulher” na parte relativa ao casamento, impedindo assim que algum juíz venha a entender como legal naquele estado o casamento homossexual! É inacreditável o comovente que se torna esta discussão sobre um procedimento obscuro de emenda constitucional num obscuro estado americano! Não pela temática política em si, mas pela reversibilidade dos papéis simpático-antipático dos legisladores em conjunção com o conteúdo concreto. Trata-se de mais um exemplo do que se poderia chamar de ambiguidade afirmativa.
E apesar do silêncio, necessário a seus olhos, com que Wiseman faz rodear as suas obras (sendo, por exemplo, extremamente lacónico nas entrevistas), é evidente que este filme constitui, desde logo por ter sido feito, uma posição claríssima, de cidadania cinematográfica, sobre o actual estado da democracia americana. Mas o sentido dessa posição não pode ser experimentado sem passar pelo incómodo de ver efectivamente o filme (até ao fim). Neste contexto, talvez não fosse inútil interrogarmo-nos porque terá presentemente Wiseman um outro filme interditado. É que ainda existem filmes proibidos, e estes não são necessariamente os que se declaram políticos!


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