Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #141 (António Guerreiro)

Pierre Bourdieu chamou “paradoxo da objetivação” a uma atitude que consiste em olhar de fora, como um objeto, as pessoas, as coisas da vida, a vida intelectual, suscitando a revolta das pessoas assim objetivadas. Antes de Bourdieu lhe dar nome, Karl Kraus já tinha identificado tal paradoxo: “E mesmo que eu não faça senão copiar ou transcrever, diariamente, o que eles fazem e dizem, eles tratam-me como detrator.” Experimentemos ‘objetivar’ três semanas de maio na vida de um jovem escritor que acaba de publicar um romance, a partir do relato que ele próprio faz no seu blogue: leitura de um dos seus livros na Livraria Barata; ida ao programa “Nada de Cultura”, na TVI24; conversa no programa “Livraria Ideal”, na TVI24; presença no programa “Ah, a Literatura”, Canal Q; três sessões de leitura em escolas do concelho de Salvaterra de Magos; autógrafos na Praça Leya (Feira do Livro); autógrafos no espaço da Presença (Feira do Livro); debate sobre os melhores livros de ficção do ano no Auditório da Feira; conversa com a Comunidade de Leitores na Livraria Almedina do Atrium Saldanha; conversa com alunos do Colégio do Sagrado Coração de Maria sobre escrita e livros; dois dias em Viana do Castelo para participar no festival literário “Contornos da Palavra”; outra sessão de autógrafos na Praça Leya (Feira do Livro); conversa com os alunos da Escola Alemã do Estoril sobre livros e imaginação.

Durante o tempo em que decorreram estas actividades, os livros do escritor foram objeto de recensão ou crónica em dois jornais; o escritor foi entrevistado para um outro jornal; ficou disponível no YouTube o programa “Ler Mais Ler Melhor”, da RTPN, sobre o seu último livro. Tudo isto é contado pelo próprio no seu blogue. Abstemo-nos de dizer o nome do escritor, porque, se o fizéssemos, a crónica deixaria de ser sobre o “paradoxo da objetivação”.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 28.5.2011.

A recusa (Maurice Blanchot)

A dado momento, face aos acontecimentos públicos, sabemos que devemos recusar. A recusa é absoluta, categórica. Não discute nem faz ouvir as suas razões. Ainda que permaneça silenciosa e solitária, mesmo quando se afirma, como deve ser, à luz do dia. Os homens que recusam e que estão ligados pela força da recusa sabem que não estão ainda juntos. O tempo da afirmação comum, precisamente, foi-lhes retirado. O que lhes resta é a irredutível recusa, a amizade desse Não certo, inabalável, rigoroso, que os torna unidos e solidários.
O movimento de recusar é raro e difícil, ainda que igual e o mesmo em cada um de nós, assim que o apreendemos. Difícil porquê? É que nos faz recusar, não apenas o pior, mas um razoável aparente, uma solução que se diria feliz e mesmo inesperada. Em 1940, a recusa não teve de exercer-se contra a força invasora (não a aceitar era evidente). Mas contra essa sorte que o marechal Pétain, cheio de boa-fé certamente, afirmava ser e contra todas as justificações de que se podia reclamar. Hoje, a exigência da recusa não interveio por ocasião dos acontecimentos de 13 de maio (que se recusam por si mesmos), mas face a esse poder que pretendia reconciliar-nos honradamente com eles pela autoridade única do nome.
Aquilo que recusamos não é desprovido de valor ou de importância. É mesmo por isso que a recusa é necessária. Há uma razão que já não aceitaremos, há uma aparência de sabedoria que nos horroriza, há uma oferta de acordo e de conciliação que não escutaremos. Uma ruptura produziu-se. Fomos levados a essa franqueza que já não tolera a cumplicidade.
Quando recusamos, recusamos num movimento sem desprezo, sem exaltação, e anónimo, tanto quanto se pode, pois o poder de recusar não se cumpre em nós mesmos, nem apenas em nosso nome, mas a partir de um começo bastante pobre que pertence antes de mais àqueles que não podem falar. Hoje dir-se-á que é fácil recusar, que o exercício desse poder comporta poucos riscos. É sem dúvida verdade para a maior parte de entre nós. Creio, no entanto, que recusar nunca é fácil, que devemos aprender a recusar e a manter intacto esse poder de recusa que daqui em diante cada uma das nossas afirmações deveria verificar.

Maurice Blanchot, «Le refus» (1958),
Écrits politiques, éd. Éric Hoppenot, Gallimard, Paris, 2008, pp. 11-12.

[Vozes, Conivência, Extensão vazia: Encontro a partir de «O esgotado» de Deleuze sobre Beckett]

Ao pé da letra #140 (António Guerreiro)

A propósito da crise, temos ouvido muitas vezes dizer que, no fundo, “somos todos responsáveis” e “não nos sabemos governar”. Que ‘nós’ é este? A que corresponde tal sujeito de culpa coletiva? Não é o ‘nós’ de uma pertença nacional, como é uma certa noção de povo — uma entidade que não se constitui com base numa oikonomia, isto é, num governo da casa. É antes um ‘nós’ social. Mas como deduzir uma culpa e uma responsabilidade coletivas com base numa ideia de sociedade que as regras da economia precisamente extinguiram? Devemos lembrar a famosa frase de Margaret Tatcher, numa entrevista: “A sociedade não existe.” Mais do que a verificação de um facto, era uma prescrição: para que o sistema da economial liberal capitalista funcione bem, é preciso que não haja sociedade. E, quando há sociedade, em que é que ela consiste? Do ponto de vista ingénuo dos governantes e dos que distribuem culpas coletivas, a sociedade é uma trama de relações, de pactos e factos livremente decretados e escolhidos por homens livres e iguais.

Se lermos um texto profético de Gabriel Tarde, «O Que É Uma Sociedade?», publicado em 1884, obtemos uma resposta muito mais lúcida e válida. A sociedade, diz Tarde, é imitação, e o homem é produto de um “sonambulismo social”. Para Tarde, os homens são semelhantes a formigas e, como tal, seguem uma ordem que se institui por contágio imitativo e por atração magnética. Este sistema produz alucinações, e aquilo a que hoje chamamos ‘público’ corresponde a este sujeito que segue uma via psicótica. As regras da economia em que vivemos apostam na formação desse monstro que são os públicos e na extinção da sociedade. Há quem pense que se trata de uma intoxicação voluntária. Mas a teoria do sonambulismo social coloca hipóteses muito mais fecundas.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 21.5.2011.

[Lumen]

Ao pé da letra #139 (António Guerreiro)

Pierre Bourdieu publicou em 1999 um texto sobre os efeitos da concentração editorial que se chamava “Uma Revolução Conservadora na Editoria”. Ele mostrava aí que o campo editorial estava a seguir o modelo de todos os sectores produtivos e a tornar-se uma indústria do entertainment. Quem visita a atual Feira do Livro e não sente repulsa pelo populismo editorial dominante, ou tem um enorme poder de atravessar, imune, uma paisagem de destroços, ou perdeu a capacidade de reconhecer a violência que sobre ele é exercida. Quando, há mais de duas décadas, na linguagem dos media surgiu a noção de “indústria dos conteúdos”, estávamos ainda longe de imaginar que a atividade editorial ia alcançar esse estádio último do fetichismo da mercadoria. A concentração não é apenas uma condição empresarial: é um método e um habitus (como diria Bourdieu). Por isso, a sua lógica difundiu-se e não se resume aos grupos editoriais. Um populismo literário e editorial implantou as suas regras em todas as fases de produção de um livro, desde a origem à comercialização.

A velha questão kantiana — “O que é um livro?” — precisa de ser reformulada, porque o Iluminismo não podia prever que os livros se tornassem inimigos de um ideal de socialização da cultura e emancipação. Nem previa que muitos os escrevem, editam e, de alguma forma, fazem parte da cadeia se tornassem cúmplices de uma barbárie que condiciona ferozmente o espaço público literário. Aproximamo-nos da situação em que os géneros literários são absorvidos pelos géneros editoriais, e tudo o que não segue esta regra tem uma existência clandestina. Para onde nos leva a barbárie? Esperemos que seja, segundo uma velha lição de Walter Benjamin, à destruição que obriga a recomeçar tudo de novo.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 14.5.2011.

Ao pé da letra #138 (António Guerreiro)

Regressemos à “filosofia portuguesa”, porque a coisa cresce, multiplica-se e invade. Na semana passada, tratava-se de uma revista que restaura o que, na sua primeira versão, já se proclamava como “renascença”: a Nova Águia, reinventada agora como órgão de uma imaginária panlusofonia; esta semana, trata-se de um colóquio internacional “Nietzsche, Pessoa e Freud” que, inspirado no poder mágico do triângulo, deambulou pela Faculdade de Letras, Universidade Nova de Lisboa e Fundação Calouste Gulbenkian. O quadro teórico-literário, filosófico e ideológico preponderante no colóquio (apesar da participação de estudiosos que nada têm que ver com tal coisa, desde logo Eduardo Lourenço) deixava-se facilmente reconhecer no tal ‘pensamento português’, cujas operações para colonizar Fernando Pessoa não começaram agora. Na perspectiva destes ideólogos, Pessoa ganha o estatuto de um ‘pensador’, no mesmo plano de Nietzsche e Freud.

À primeira vista, até pode parecer engrandecimento, mas é na verdade uma manipulação grosseira, destinada a reduzir a sua poesia a ideologemas, filosofemas, mitologemas e outros ‘emas’. O título do colóquio — “Nietzsche, Pessoa e Freud” — parece designar um enorme continente cosmopolita, mas explorado por tais ideólogos transforma-se numa pequena província platónica, onde podemos ouvir falar de coisas como os “arquétipos de Portugal” (na verdade, de quem eles gostam verdadeiramente é de Jung, não de Freud), visando construir uma dimensão esotérica e mitológica da história, que faz lembrar a “Alemanha secreta” de Stefan George. Ocultismos, esoterismos, o mito do poeta mediúnico que oblitera completamente o método e tempo de trabalho revelados pelo espólio — eis o que faz pensar num dito de Adorno: “O ocultismo é a metafísica dos imbecis”.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 7.5.2011.

— Où est l’argent ?

Ao pé da letra #137 (António Guerreiro)

A chamada “filosofia portuguesa” conheceu nos últimos anos alguns ressurgimentos editoriais, um dos quais é a revista Nova Águia, herdeira da Águia, que foi o órgão do movimento da Renascença Portuguesa. Apesar da sua aparente apolitia, a Nova Águia (cujo primeiro número era sobre “A Ideia de Pátria” e o mais recente tem por tema o célebre dito de Bernardo Soares: “Minha pátria é a língua portuguesa”) pode ser identificada com uma cultura de Direita. É típico da Esquerda não saber o que é a cultura da Direita, até para evitar o embaraço de verificar o quanto está impregnada dela (por exemplo, a poesia portuguesa mais próxima da cultura de Direita é a de Manuel Alegre). A principal característica desta cultura é o facto de funcionar como uma máquina mitológica que constrói uma identidade, reduzindo o passado — com o qual mantém uma relação viciada — a uma papa indistinta de destino e devir, de passado mítico e presente incognoscível, porque nenhuma ciência humana ou social pode penetrar na linguagem das ideias sem palavras.

Um exemplo de ideia sem palavras é a da saudade como uma fundamental “Stimmung”, tonalidade afetiva, que marca o “pensamento português”. Desse território das ideias sem palavras só pode nascer uma retórica do sublime, cujo pressuposto é o da existência de um núcleo mítico e profundo, onde o idealismo triunfa sobre a racionalidade e tudo se espiritualiza. A cultura de Direita é monumental e fundacional. Por isso, o património cultural é, por excelência, um lugar de pertença que a cultura de Direita reivindica como a sua mais legítima morada. Manipular o passado é a sua grande arte, tanto quanto a Esquerda pretende ter o monopólio do futuro. E se a Esquerda não é capaz de pensar a cultura de Direita, a Direita situa-se num campo onde nem existe tal dialética para ser pensada.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 30.4.2011.


Arquivo / Archive