Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #7: Rescaldo

Uma obra-prima: State legislature (Frederick Wiseman). Alguns filmes mesmo muito bons: Diary (David Perlov), Le papier ne peut pas envelopper la braise (Rithy Panh) e De son appartement (Jean-Claude Rousseau). Outros ainda: Tentatives de se décrire (Boris Lehman), Tarch trip (Hiroyuki Oki), Lost, lost, lost (Jonas Mekas), La pudeur et l'impudeur (Hervé Guibert), Window, water, baby, moving (Stan Brackage), Unsere Afrikareise (Peter Kubelka). Uma pequena surpresa: Un jour à Marseille (Mauro Santini).

Se o papel não pode embrulhar as brasas...



O estilo de Rithy Panh, não sendo, no entanto, caso único entre grandes realizadores, é confundível com a televisão, e não apenas à primeira vista. Há algo de aparentemente simplificado no modo como trabalha com a câmara e a relaciona às pessoas que encontra. Quero dizer que ele não procura refugiar-se numa estilização formal que o proteja dessa possível indistinção com o amorfismo, por vezes obsceno, da televisão. Por isso tem-se a sensação de que são muito livres os seus filmes. Pois conseguem atravessar essa confusão nas nossas cabeças para construir por outra vias (mas quais?) uma sensação viva. Um filme como este, que foca de tão perto as vidas, e não consigo evitar dizê-lo, desgraçadas das prostitutas cambojanas, e em que elas frequentemente choram em grande plano, constitui assim mais uma prova da brilhante dissolução dessa indistinção, embora não seja obviamente essa a sua principal vitória. E isto apesar de haver momentos que nos fazem hesitar para que lado pende, como a sublimação de uma chuvada ou um certo tipo de utilização da música. Mas, no fim de tudo, a verdade é que se o papel não pode embrulhar as brasas, o filme consegue. Urge por isso rever os seus maravilhosos e não menos estranhos filmes – S-21, Les artistes du théâtre brûlé e este – para começar a perceber porquê.
(É esse um dos mistérios do cinema, quanto a mim. Que sem regras pré-estabelecidas, tendo que fazer a experiência de filme a filme, cada um por si, uma construção de sensações se forme, sejam harmónicas ou não, e que o filme nos habite doravante assim, uno e múltiplo ao mesmo tempo, simples e complexo, nos bons casos, artefactos que não ficam a dever à vida, a ela devolvendo tudo o que pediram emprestado.)

Le papier ne peut pas envelopper la braise
(2006) de Rithy Panh
Sáb, dia 20, 16h30 - Londres 1
2ª, dia 21, 21h - Culturgest, Grd. Aud.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #6: Filmes gay

Um pouco ao arrepio do paradigma categorial vigente, e de modo a proporcionar uma mais adequada sectorização de público e, também e sobretudo, de crítica, e exponenciando ao mesmo tempo e mais adequadamente as virtualidades de ambas, gostava de me dirigir à estimada assembleia propondo a seguinte, e concerteza parcialmente incorrecta, como todas as ainda não validadas pelo sistema convencionado de peer review, distinção entre filmes gay e filmes feitos por gays. Assim, e procurando emancipar a segunda categoria do estatuto de subdivisão da primeira, poderíamos eventualmente estabelecer como pertencentes à primeira categoria, por exemplo, China, China de João Pedro Rodrigues, Compilation, 12 instants d’un amour non partagé de Frank Beauvais, Glitterburg atríbuido a Derek Jarman, e Pensão Globo de Mathias Müller, enquanto à segunda, O sabor da melancia de Tsai Ming Liang, De son appartement de Jean-Claude Rousseau, La pudeur et l’impudeur de Hervé Guibert, e Tarch trip de Hiroyuki Oki.
Ou, caso a assembleia esteja disposta a assim estabelecer como consenso operativo, poder-se-á igualmente declarar provisoriamente inerte a dita categoria supradivisória, na medida em que não foi detectado nem parece haver registo indicativo de efeito da correspondente substância activa, e até que testes experimentais mais avançados o consigam determinar, no que toca à acção favorável ou desfavorável desenvolvida no dado campo cinematográfico, tomado em sentido estrito. Obviamente, não será demais salientar que a área de acção desta clarificação categorial restringe-se estritamente ao atrás referido campo cinematográfico, não devendo ser entendida como um movimento de recuperação de quaisquer paradigmas anteriormente vigentes que não expressavam a complexidade e diversidade do conjunto dos campos operativos dos vários subsistemas.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #5: Playstation

Nisto das tecnologias, não há como não ser um pouco reaccionário. Há que anos que aquelas maquinetas pequeninas para ali estavam, sem que me tivesse sequer posto a hipótese de as conferir. Um espécie de desprezo fazia-me deslizar perante o seu design sem consideração alguma. Quis o destino que os efeitos demasiado notórios da digitalização num filme projectado me tivessem expulso da sala e, enquanto aguardava por uma boleia, me pusesse a brincar, sentado num pufe já um pouco arrebentado que libertava esferovite, com aquelas maquinetas Playstation. Pessoas menos aventurosas gozavam quando passavam, deliciadas por me ver finalmente assim quase deitado no chão, parecendo ter perdido a razão que me resta. A essas digo que ainda não foi desta. Mas, voltanto às maquinetas, afinal para que serviam? E não é que descobri, para meu espanto, que têm lá dentro excertos da quase totalidade dos filmes presentes no festival! Que delícia poder assim escolher o que ver a partir destes excertos. Para o ano, se calhar, já nem será preciso entrar na sala. De qualquer modo, podem dizer que é enganador ver só um poucochinho do filme, em geral até três minutos, mas sê-lo-á menos uma imagem fixa apenas, ou uma sinopse escrita sabe-se lá por quem e com que intenções, ou ainda as recomendações de toda a espécie de gente? Não tem uma pessoa de proteger a sua cabeça dos sopros alheios? Alguns filmes estão simplesmente representados pelos seus minutos iniciais, enquanto outros por uma cena particular ou mesmo pelo trailer. As imagens são pequeninas, é certo, e ouve-se bastante mal, para além do risco de ir parar ao menu errado,
mas o procedimento compensa, pelo menos no que diz respeito à confirmação das nossas intuições acerca de um filme ou outro. Há, no entanto, um primeiro efeito não negligenciável: os filmes passam todos a parecer muito bons. Sabemos, no entanto, que no escuro da sala, enquanto sujeitam a nossa paciência a torturas atrozes, tal não é evidentemente o caso. Algo me fez reviver as tão belas memórias de jogos no Spectrum, em particular, dos jogos de carros de corrida em que, nos momentos de pânico em que era preciso travar, eu me punha a carregar inábil em todos os botões ao mesmo tempo, levando a acelerar ainda mais, com consequências sempre mortais. Aqui passou-se o mesmo. Quando o excerto do filme se aproximava da condução perigosa e eu tentava manter a segurança do meu habitáculo mental, carregava no botãozinho errado e precipitava tudo. Talvez seja por isto que, nesta idade já não tão tenra, ainda não tirei a carta, embora uma antiga namorada me tenha deixado, há muitos anos, fazer em condições mais que ébrias um slalon nocturno num Renault 5 por entre filas de carros na freguesia da Ameixoeira. Bons tempos esses, nem cinto de segurança se usava e ninguém se preocupava. O que mudámos! Por isso, pelo menos se não quiserem recordar aqueles momentos tão livres da vossa infância irremediavelmente perdida em que se aproximavam de todas as maquinetas sem juízos a priori, não se cheguem nem perto. Poderão assim continuar a olhá-las com o vosso leve desprezo e a manter uma posição respeitável perante os olhares dos outros.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #4: Cartas dos leitores

Tenho recebido inúmeras cartas, nomeadamente dos leitores Casimiro Machado da localidade de São Francisco de Poiais, Manuel Vicente de Arrufos de Fora, e Paula Maria Pereira da Vila do Samuco (saudações amigas), que resolveram expressar a sua relativa preocupação e pesar pelo que consideram a crescente ligeireza com que têm sido focados os assuntos cinematográficos neste blogue, que tanto acarinhavam, e deixando a leve ameaça que procurarão outros mais respeitosos, evitando eu «arrepiar caminho». Pois tenho a dizer, caros leitores, que não é pelas ameaças que me levam lá. Bem sei que prometi, cheguei mesmo a começá-lo, um longo e intrincado ensaio versando todas as subtilezas d'«Os intervalos de Francisca [de Manoel de Oliveira]». Mas os caminhos, não só os do Senhor, são deveras ínvios. De qualquer modo, aqui deixo a minha garantia, tintada de humildade, que o tom jocoso será em breve abandonado, dando lugar àquele mais formal e, como alguns abonados gostam de lhe chamar, pseudo-intelectual, que tantos leitores por esse mundo fora tem fidelizado.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #3: Sair da sala

Sair da sala. Com as luzes ainda apagadas. Pisando os outros espectadores. Algures a meio do filme. É uma pena, tenho que dizer. Mas é preciso, por vezes. Há todavia uma escola de pensamento que defende que se deve ver um filme até ao fim, em qualquer circunstância, pois pode sempre haver algo que o salve. Apesar de acreditar na salvação, confesso que não partilho desta regulamentação. À medida que vou vendo um filme vou sentindo avolumar-se, nem falo de ofensas e indignidades várias que os filmes vão deixando cair, mas um remolhão de intuições acerca da possível disposição mútua entre mim e a dita obra cinematográfica. Quer dizer, aquilo que nos vai dar não chega para o que queríamos receber. Em cada pessoa, esse ponto de equilíbrio estará mais à mostra ou, pelo contrário, bem escondido. Em suma, não é igual para todos. Por mim, não tenho gosto nenhum em ficar pendurado nesse hiato, eu de mão estendida ao filme que não a cumprimenta, e vice-versa. É embaraçoso.
Por outro lado, quando se dá o caso de se ver cinema em instituições culturais não especificamente vocacionadas para o cinema, corre-se o risco de se ser confrontado com toda uma ética estranha, imposta pelos funcionários-arrumadores mais habituados às ditas artes do espectáculo. Não poucas vezes me vejo obrigado a franzir as sobrancelhas e a dizer com a convicção mais amável que consigo: «Isto não é teatro! No cinema saímos e entramos quando queremos!» Procuro assim deixar o mais claro possível que, enquanto espectador de cinema, desde que pague bilhete (e mesmo não pagando), não reconheço quaisquer limitações à livre circulação da minha própria pessoa, de fora para dentro e de dentro para fora. Quer dizer, nem sequer há alguém de carne viva no palco que possa distrair a sua solenidade com a irrupção de um espectador atrasado ou simplesmente distraído. É só uma tela. Claro que há espectadores que, desprezando aparentemente a também nobre história das sessões contínuas de cinema, preferem uma disciplina mais espartana, e advogam que nada em nenhuma circunstância se interponha entre o bailado que dançam quietos com os olhos no ecrã. Por isso, desculpem lá, mas saio e entro quando me apetecer. Deviam experimentar. A versão pequena da alegria de desistir mesmo ali à mão. Até porque não há pior do que um espectador ressentido, bufando por tudo e por nada, rindo-se de desdém às horas mais inapropriadas, mantendo-se colado à sua cadeira apenas para a manutenção dos seus maus-figados.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #2: Zoofilia

Nem de propósito... (Os festivais de cinema mantém uma espécie de grande caixote do lixo, que dão pelo nome de Videotecas. Como nos caixotes do lixo das nossas cidades, é ingenuidade severa pensar que dá para ir lá buscar os restos que se quer à vontade. Existem regras, e são para cumprir. Assim, por exemplo, no IndieLisboa nem sequer depois dos filmes terem passado em projecção se os pode ver na Videoteca. Partem do princípio que não quisemos pagar o bilhete, e não estão dispostos a ouvir que não podíamos, tínhamos uma sessão à mesma hora, estávamos doentes, etc. No DocLisboa é um pouco mais amigável. Depois dos filmes passarem podem ser vistos. Mas a bactéria média que habita Videotecas são os filmes recusados na selecção. É assim que, para além da fruta demasiado verde para ser comestível, também se lá encontram, nesses grandes caixotes, por vezes, alimentos deveras nutritivos. Certo que alguns terão o prazo de validade já passado, mas a sua pujança alimentícia em nada esmoreceu, pelo contrário. E não sabemos nós que anda por aí muito restaurante a servir senão comida estragada? Foi portanto assim que, nos últimos anos, acabei por ver alguns filmes do Herzog, ou do Farocki, de sabor relativamente apurado. Este ano já pude provar um dos últimos Cavalier, talvez rejeitado em competição ou que não se terá talvez conseguido intrometer-se numa sessão paralela.) ... Nem de propósito, dizia eu, procurando continuar o agradável solilóquio sobre a zoofilia (ver em baixo), em Huit récits express de Alain Cavalier, pescado na Videoteca do DocLisboa, há um episódio relevante em que o realizador e a mulher se entretéem, como de resto habitualmente, a comentar o seu quotidiano mais comezinho filmado em câmara à mão. (Se quiserem experimentar ao que sabe, experimentem Le filmeur, que ainda vai passar). Mas, neste episódio particular, concentram a sua atenção no comportamento do seu gato, aliás recentemente (mal) capado, que fantasmaticamente insiste em subir para a cama do casal e simular a cópula com os pés da dona, apesar de não ser munido, mordendo-a com aquela mistura de dureza e carinho que também nós tão bem conhecemos. Ouço dizer que tal é um comportamento por demais comum nos canídeos. Por isso, não será talvez de surpreender que algumas pessoas, menos versadas na obediência aos bons costumes, procurem retribuir, respondendo a esses apelos de amor físico interespécies, comendo do mesmo prato. Cavalier e a mulher responsabilizam o perfume dela, que dá pelo nome de Joy, pelo comportamento. Eu também. Aliás, ainda recentemente deixei entrar uma osga no quarto, garanto que por descuido, e fui forçado a dormir com ela.

Notas demasiado soltas (DocLisboa 2007) #1: Citações

«Os defeitos de ontem são as qualidades de hoje», diz Boris Lehman no seu Tentatives de se décrire, a propósito de umas imagens feitas por si há alguns anos atrás. Parece ser uma singular tendência da vida não-orgânica o esconder-se nas fragilidades e falhas. O demasiado brilho da perfeição repugna. Prefere-se a penumbra e o riscado. Vejam-se os heróis da literatura do século passado (perceber-se-á porque cultivam as bandas contemporâneas o looser look). Mas, como dizia o outro, e de capital importância, tem que se compreender que, mesmo algo aparentemente fácil como falhar, não pode ser feito assim de qualquer maneira.
*

«Os Palestinianos estão num documentário de Wiseman», diz Godard a dada altura de Morceaux de conversation avec... de Alain Fleischer. Ça sent vrai... (Mesmo se Wiseman é judeu. Isso não tem importância alguma.)

*

«Com a tua inteligência, podias ter sido contabilista...», diz o pai do realizador Alan Berliner em Nobody’s business. «Mas Pai, os meus filmes são vistos em todo o mundo», retorque o filho precipitadamente, como se não tivesse o sentido das proporções. «Trabalho de esmola», responde definitivo o pai. Pois é. Quantos de nós não andamos à esmola...

*

«Tentei conciliar a religião com a zoofilia», diz uma das personagens de Zoo de Robinson Devor. Hmm... (Pensando melhor, talvez até tenha razão, embora estritamente de um ponto de vista não-monoteísta. A comunhão com os animais e não sei quê. E é por estas e por outras que o humor é a coisa mais inteligente que há no mundo e, simultaneamente, a mais estúpida. Um dos méritos do filme, de resto extremamente bizarro e cansativo do ponto de vista formal, é revelar o quão pouco distantes estão uma zoofilia de cariz sexual e a sua congénere mais, digamos, promovida, a zoofilia estritamente afectiva, a que diz respeito ao afecto pelos animais de estimação.)

Antecipações cegas (DocLisboa 2008 #0)

A pequena rubrica «Outros filmes de...», que aliás manteve este blogue mais ou menos vivo durante um recente e alargado período de dispersão pessoal, baseia-se exclusivamente na saliência de filmes já vistos e de grande predilecção. Mas, para além de textos fortuitos aqui e ali, há momentos em que, creio, não faz mal dar lugar às nossas suspeitas aventurosas, às antecipações cegas da felicidade cinematográfica. Como passei a acompanhar com bastante atenção os anteriormente inexistentes grandes festivais de cinema de Lisboa, creio que fazê-lo não será uma cedência particularmente gravosa ao didactismo [há sempre pessoas que se prestam a ser a má-consciência dos outros, com se não bastasse a de cada um].
Aquando do indieLisboa, em Abril, procurei especular sobre esta coisa de antecipar publicamente os filmes que se desejam ver, em particular no contexto do imenso trabalho que dá a escolha por entre a programação de um festival. Revendo as grandes expectativas que então dez filmes me provocavam, reparo agora que apenas dois deles foram uma desilusão parcial, embora nem sequer fossem maus filmes, enquanto outros sete confirmaram serem muito bons, sendo que um destes não terá sido visto por quase mais ninguém (Wolfsbergen de Nanouk Leopold). É o que se pode chamar uma boa taxa de aproveitamento (no seu próprio gosto). Menos filmes, mas melhores. Num festival esta economia é ainda mais preciosa, pois é particularmente difícil, ver impossível e indesejável, assistir a outro filme quando ainda estamos a lidar com o impacto de outro que muito nos tenha tocado. >
Quanto ao DocLisboa 2007 que se avizinha, para além dos cinco filmes assim incluídos nos «Outros filmes de Outubro» (a saber, Le papier ne peut pas envelopper la braise de Rithy Panh, He Fengming de Wang Bing, Le filmeur de Alain Cavalier, La pudeur et l'impudeur de Hervé Guibert, JLG/JLG: autoportrait de décembre de Jean-Luc Godard e News from home de Chantal Akerman), há outros que suscitam uma justificada expectativa, a meu ver e segundo a minha particular afinidade*, que, aliás, tem uma correspondência exacta com o que pretendo ver pessoalmente. Não é por nenhum preconceito, mas a verdade é que os filmes não me saem de todas as sessões do festival por igual número. Estão muito concentrados na secção ‘Diários filmados e autoretratos’, na ‘Riscos e ensaios’ e em sessões dispersas. Ei-los, pela ordem do programa, não das apresentações: David Holzman’s diary de Jim McBride, pela aparente irrisão da própria forma-documentário, e também por o programador o colocar como a filiação americana em tempo real da Nouvelle Vague francesa; Intimate stranger e Nobody’s business de Alan Berliner, simplesmente por o realizador ser um daqueles nomes que ouço repetidamente referido há algum tempo, sem que tenha ainda tido oportunidade de o experimentar; Lost, lost, lost de Jonas Mekas, pela repetição da palavra no título, efeito que deve igualmente contribuir para a duração do filme; Tentatives de se décrire de Boris Lehman, pelos belíssimos Babel e Histoire de ma vie racontée par mes photographies, além de que o realizador costuma


viajar com os seus filmes e é uma pessoa que vale bem a pena conhecer; Trying to kiss the moon de Stephen Dwoskin, por, tendo uma vez visto um dos seus filmes, não me lembro agora qual, me ter ficado para sempre marcado na memória um plano de uma janela numa cozinha, a partir do interior; De son appartement de Jean-Claude Rousseau, por ser inconfundivelmente “menor” o seu modo de filmar; Nocturno de João Nisa, por ser, sintomaticamente, o único filme português numa secção chamada ‘Riscos e ensaios’ e ter a única sinopse do programa cujo conteúdo é uma cuidada descrição formal; State legislature de Frederick Wiseman, porque a complexidade da vida americana se torna sempre mais inteligível nos seus filmes e, em particular, pela percepção de que existe um nível da política, lá muito activo, que não passa pelas instituições constituídas (e que por cá têm pouca expressão, a chamada “sociedade civil”), sendo que desta vez é uma das formas da própria instituição política estatal que é filmada; Diary de David Perlov, porque acredito na maior probabilidade dos filmes muito longos serem afinal melhores e, enfim, por passar ao mesmo tempo que os filmes premiados, afastando tentações menos puras.
Na verdade, não arrisco muito. São, em geral, realizadores relativamente conhecidos. Alguns filmes têm durações talvez um pouco cansativas. No pain, no gain. Tenho algumas outras suspeitas de ordem meramente privada. Era preciso escavar muito fundo para encontrar indícios seguros que as fizessem servir outras pessoas.

[Mais uma vez, não se aceitam reclamações. Como no amor, cada um por sua conta e risco, principalmente risco.]

* Porque não temos de gostar de todos os tipos de filmes. E estupidez seria continuar a ver aquilo de que não gostámos. Pode chamar-se a isso uma ‘visão construtiva ou selectiva’ do cinema, que vai triando por entre a grande quantidade da produção de filmes actuais e programação dos restantes à medida que vai conhecendo os autores, os géneros, os países de produção, etc. (mesmo a forma como as sinopses são escritas). Pois não somos críticos de cinema pagos, obrigados a regerem-se por uma curta actualidade e sujeitos a ver quase tudo o que passa nas salas. Aliás, quase que não imaginamos pior suplício (em termos cinematográficos).
A propósito disto, creio que há dois modos principais de usar a cinefilia como arma de arremesso. A primeira, que não lhe pertence especificamente, concerne o uso da história como opressora, endeusando os acontecimentos (neste caso, “autores” de cinema) ditos clássicos, contra qualquer abrir de boca. Como se não se pudesse ver filmes senão do princípio para o fim, o que corresponderia ao sentido da sua suposta “evolução” histórica. Ao contrário, e parafraseando Deleuze, podíamos dizer que o cinema cresce pelo meio. Ou seja, pode começar-se a vê-lo por onde se entenda ou, melhor ainda, por onde calhe.
O segundo modo, menos óbvio, mas bastante pernicioso, consiste em passar um atestado de elitismo a quem prefira alguns filmes por relação a outros considerados mais populares. É certo que a história do cinema como arte popular é uma herança particularmente nobre e que importa continuar a pensar. Mas, mesmo reconhecendo-a, devemos nós arrastar-nos para a sala exclusivamente motivados por essa cansada esperança que um dia voltem os melhores filmes a ser os mais vistos? (E terá sido assim alguma vez?) Claro que isto não implica de todo excluir qualquer filme pelo grau da sua popularidade. Mas também não o contrário, ou seja, fazer tábua rasa da experiência selectiva e cumulativa que se vai fazendo enquanto espectador, afinando preferências. Curiosamente, quem professa esta perspectiva são muitas vezes, por incrível que pareça, os próprios realizadores de filmes de prestígio, cuja exibição não têm praticamente qualquer repercussão em termos de público nas salas, limitando-se a festivais e televisões mais ou menos cuidadosas. Os mesmos culpam depois os críticos por essa disjunção entre o grande cinema e o público, que é pelo menos velha de 50 anos.
Enfim, desse luto o cinema não se recompôs, nem é provável que se venha a recompor. Mas há hoje muitos públicos e não será caso para demasiados lamentos enquanto se fizerem filmes que importam, que permitam sentir e forcem a pensar. E, também, enquanto houverem olhos que os saibam ver, o que, ainda menos que a primeira condição, não é de todo garantido.

Campo

«Num programa atento às contradições da América contemporânea, a Competição Internacional do DocLisboa contempla apenas duas longas-metragens americanas. Mas em Jesus Camp, de Heidi Ewing e Rachel Grady, e Kamp Katrina, de Ashley Sabin e David Redmon, convergem duas das grandes questões que percorrem actualmente a sociedade americana: a religião e a desigualdade social, simbolizadas na recente influência política dos católicos evangélicos fundamentalistas e na destruição catastrófica que o furacão Katrina lançou sobre Nova Orleães. [...]
Formalmente, para lá da utilização do vídeo digital e da recusa da narração em off, substituída pelo uso judicioso de legendas que situam o espectador, tudo separa os dois filmes: Kamp Katrina [...] é interveniente, urgente e amador; Jesus Camp [...] é neutro, rigoroso e reflectido. Mas ambos têm em comum um olhar pouco complacente sobre uma América contemporânea cujas histórias não são geralmente contadas nem pelos noticiários nem pelas ficções, usando como âncora microcosmos representativos de um universo bem maior do que a maior parte das pessoas imagina. [...]»
«Campos opostos»
Jorge Mourinha, in Público-Ípsilon,
12 Outubro 2007, p. 8

« O que aconteceu nos campos [de concentração e extermínio] excede de tal modo o conceito jurídico de crime que muitas vezes se esqueceu simplesmente de considerar a específica estrutura jurídico-política em que esses acontecimentos se produziram. O campo não é mais do que o lugar em que se realizou a mais absoluta conditio inumana que se conheceu na terra: é isto, em última análise, o que conta, tanto para as vítimas como para a posteridade. Seguiremos aqui deliberadamente uma orientação inversa. Em vez de deduzirmos a definição de campo dos acontecimentos que aí se deram, perguntaremos antes: o que é um campo, qual é a sua estrutura jurídico-política, por que é que tais acontecimentos puderam aí ter lugar? O que nos conduzirá a olhar o campo não como um facto histórico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que podendo ainda verificar-se em termos semelhantes), mas, de algum modo, como a matriz escondida, o nomos do espaço político em que vivemos ainda. [...]
O campo é o espaço que se abre quando o estado de excepção começa a tornar-se a regra. [...]
O campo é, assim, a estrutura em que o estado de excepção, sobre cuja possível decisão se funda o poder soberano, é realizado normalmente. [...] O campo é um híbrido de direito e de facto em que os dois termos se tornaram indiscerníveis.




Hannah Arendt observou uma vez que nos campos se torna completamente claro o princípio que rege o domínio totalitário e que o senso comum se recusa obstinadamente a admitir, ou seja, o princípio segundo o qual “tudo é possível”. Só na medida em que os campos constituem, no sentido que vimos, um estado de excepção, no qual só a lei é integralmente suspensa, mas, além disso, onde facto e direito se confundem sem resíduos, é que neles tudo é verdadeiramente possível. Se não compreendermos esta particular estrutura jurídico-política dos campos, cuja vocação é justamente realizar a excepção de uma maneira permanente, o que de incrível neles aconteceu permanece completamente ininteligível. Quem entrava no campo acedia a uma zona de indistinção entre exterior e interior, excepção e regra, lícito e ilícito, em que os próprios conceitos de direito subjectivo e de protecção jurídica deixavam de ter sentido; além disso, se se tratava de um judeu que já tinha sido privado dos seus direitos de cidadão pelas leis de Nuremberga e depois, no momento da “solução final”, completamente desnacionalizado. Na medida em que os seus habitantes foram espoliados de todo o estatuto político e integralmente reduzidos à vida nua, o campo é também o espaço biopolítico absoluto, nunca antes realizado, em que o poder não se confronta senão com a pura vida sem qualquer mediação. Por isso, o campo é o próprio paradigma do espaço político no momento em que a política se torna biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão. [...]
Se isto é verdade, se a essência do campo consiste na materialização do estado de excepção e na consequente criação de um espaço em que a vida nua e a norma acedem a um limiar de indistinção, teremos de admitir, então, que nos encontramos virtualmente em presença de um campo sempre que é criada
uma estrutura semelhante, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja a sua denominação e a sua topografia específica. [...]
O nascimento do campo no nosso tempo surge então, nesta perspectiva, como um acontecimento que assinala de modo decisivo o próprio espaço político da modernidade. Esse nascimento dá-se no momento em que o sistema político do Estado-nação moderno, que se fundava na relação funcional entre uma determinada localização (o território) e uma determinada ordem (o Estado), mediado por regras automáticas de inscrição da vida (o nascimento ou a nação), entra numa longa crise e o Estado decide assumir directamente, entre as suas tarefas, os cuidados em relação à vida biológica da nação. [...] O estado de excepção, que era essencialmente uma suspensão temporal da ordem jurídica, torna-se agora uma nova e estável disposição espacial, onde habita a vida nua que, cada vez mais, não pode ser inscrita na ordem. A crescente distância entre o nascimento (a vida nua) e o Estado-nação é o facto novo da política do nosso tempo, e aquilo a que chamamos campo é este desvio. [...]
Agora, este princípio [de nascimento] entra num processo de deslocação e deriva em que o seu funcionamento se torna com toda a evidência impossível, deixando entrever não só novos campos mas também novas e cada vez mais delirantes definições normativas da inscrição da vida na Cidade. O campo, que presentemente se instalou solidamente no interior dela, é o novo nomos biopolítico do planeta.»

«O campo como nomos do moderno»
Giorgio Agamben, O poder soberano e a vida nua. Homo sacer, trad. António Guerreiro, Presença, Lisboa, 1998, pp. 159-168

O espectador ocioso #5: Bolinha vermelha

O primeiro episódio da série documental sobre a Guerra Colonial, realizada por Joaquim Furtado para a RTP, parece ter sido concebido para causar o máximo de polémica e mal-estar, ou talvez consolo saudosista, tal a forma descontextualizada como os ataques da UPA aparecem descritos. Não sei se o conseguiu, mas também não é isso que me interessa. No que me diz respeito, são os meios que utilizou para isso que devem ser avaliados. Nomeadamente, uma pianada depois de um antigo combatente ter saudosamente evocado um piano queimado. Quase que chorei.
Mas o mais relevante é o quanto estes modos podem demonstrar como certas decisões sobre o «conteúdo susceptível de ferir a sensibilidade de alguns telespectadores» são tomadas. Refira-se que a dita série, que passou logo a seguir ao Telejornal, mostrava várias imagens de arquivo de corpos decepados, esventrados, inclusive de crianças. Embora o modo como foi montado atenue consideravelmente o impacto dessas imagens, que acabamos por nem ter tempo de contemplar, é curioso que, e apesar de no inicio do episódio aparecer inscrita, como que em aperitivo, a frase «algumas imagens podem ser chocantes», este passe sem o alerta da habitual bolinha vermelha, «um círculo no canto superior direito», como lhe chama a RTP, tendo em conta o horário tão acessível a crianças em idade escolar.
Pois não estamos nós habituados a ver a dita bolinha vermelha, insuportavelmente tridimensional e listada a branco, a ocupar parte da imagem de filmes tão perigosos como Elephant de Gus van Sant ou Lilith de Robert Rossen, especialmente a horas avançadas da noite? No primeiro, julgo que terão querido certamente proteger-nos do beijo entre os dois rapazes no duche, e, no segundo, de uns cabelos na palha levemente lésbica de um celeiro. Efectivamente, lembro-me até de uma vez ter ficado noite dentro a ver um filme, por sinal muito mau, apenas para perceber o que nele justificaria a atribuição de uma bolinha vermelha. (Talvez seja uma astúcia para atrair espectadores noctívagos solitários!) Mas o mais que consegui vislumbrar foi, hipoteticamente, o facto da personagem feminina ser lamentavelmente bêbeda. Ou assim terá pensado o/a agente da moral e dos bons costumes encarregado/a da bolinha.
Sejamos claros. Não estou a reclamar qualquer uso da bolinha, mas sim a procurar reflectir como esse uso denuncia aquilo que querem ou não querem que vejamos. Fica mais uma vez saliente que do que lhes interessa proteger-nos é, não tanto a violência explícita, que pode servir claramente os seus interesses promocionais, quanto a violência implícita, perturbadora e problematizadora. Aquela que faz pensar sobre a própria violência, em suma.

Vida do subúrbio





Apenas cinco cenas tem esta curta metragem. Mas funcionam em profundidade e valem afinal por muitas. São uma espécie de microcosmos dramáticos em se dão tantas conjugações de sentidos, tantos elementos de leitura. E é todo um modo de vida, um lugar de vida, e mesmo um mudar de vida que ficam nela desenhados. Que vida é esta? A experiência encapsulada deste filme, o conjunto aprisionado lá dentro, é a vida do subúrbio. Como diz uma personagem exasperada, «esta vidinha de subúrbio». Mas o filme não é de todo um retrato de oprimidos, pois as personagens lidam muito diversamente com essa vida. E por isso que é tão difícil pensá-lo, fazer justiça à sua complexidade. Porque estas posições, por vezes quase contraditórias, não o deixam cair numa decisão qualquer sobre a valia dessa vida. Aliás, não se coloca qualquer questão de valia, antes se procura responder às solicitações de lá se pertencer. Daí talvez se possa pressentir o tom levemente, disfarçadamente angustiado do filme.
O mundo que nos revela é então composto por relações sustentáveis, entre as personagens umas com as outras, as concepções de vida que têm, o modo como as exprimem, o trabalho que as subtrai ou não a essa vida. Mas não revela esse mundo por o mostrar directamente, focando individualmente elementos como o trabalho, as relações amorosas, as relações filiais, etc., como faria um documentário típico, mas pelas suas próprias subtis ramificações ficcionais. E aqui é preciso não ter receio de defender o carácter propriamente documental desta ficção, mesmo que curta. >
É que este filme funciona como documento-monumento de todo o modo oculto da vida suburbana, de documentação inédita, por não expressa num cinema português demasiado citadino ou rural. Ficou toda a imensa zona cinzenta de cimento e betão em que o país se tornou por cobrir, e tal não nos foi dado a ver nem a pensar no cinema. As pequenas localidades em redor das grandes cidades tornaram-se subsidiárias destas e a vida parece aí desenrolar-se entre dois pólos de atracção, a de um passado vindo de outras terras, provavelmente do interior rural, e a da grande cidade como sol distante que a rege. As personagens viradas para um ou outro lado estão neste hiato habitacional. Custa ver, mas era e é claramente necessário.
Portanto, o que estava por mostrar não eram sobretudo as condições materiais dessa vida, mas mais as condições subjectivas de como ela é levada. E os pesos que isso implica para a vida de cada uma das personagens, quase que soterradas pela gravidade que parece ali se fazer sentir acentuadamente. É a outra face da “evolução” da sociedade portuguesa, não tanto a dos deserdados ou excluídos que possam ainda funcionar como proto-comunidade utópica, mas a de outra que ainda não é a que tem mais brilho, a que no fundo acaba por sustentar a vida aparente dos centros comerciais, do culto da imagem corporal, da proliferação de telemóveis, etc. Há, a meu ver, uma concordância entre a vida do subúrbio e a vida que existe por detrás destas plastificações todas.


Para ver isso foi preciso que alguém viesse de lá, com a sua visão e modo, com a sua estrutura moral também, que não é inócua. Porque, por exemplo, atrás de uma frase como «As pessoas servem-se, consciente ou inconscientemente, de coisas como as habilitações académicas, a educação, enfim, aquilo a que tu chamas a inteligência. Servem-se desse tipo de coisas parar se elevarem perante as outras pessoas, para exercerem sobre elas diversos tipos de forças», talvez se esconda mais uma posição quase defensiva, que obrigaria a manter uma ocultação das coisas do mundo, inclusive os objectos culturais, como formas potencialmente segregadoras, do que um diagnóstico de uma segregação que é bem conhecida. Também isso vêm de lá.
E em particular nas obras iniciais, não se escolhe propriamente o que se é dado a retratar. As experiências de vida que se tiveram compõe uma sedimentação que só pode concluir na descrição de um certo tipo de vida que se conhece bem. Assim, por exemplo, Rapace de João Nicolau é, apesar do, ou precisamente pelo seu acentuado sentido de humor, a tipologia de uma geração burguesa que quer antes de mais ser cool, em torno do eixo Telheiras-Benfica, e que se compraz numa (auto-)irrisão, saudável ainda assim. Percebe-se que o humor seja diferente em Estação, onde a sombra do dinheiro e a posição social correspondente está sempre presente. E o cinema também tem que ver com estas coisas. E também com o não se sentir bem na sua pele.
Sair ou permanecer no subúrbio, aceitar ou não a sua lei não-escrita, se se a quiser reconhecer, aparece inscrito em quase

todas as personagens jovens deste filme. Quase todas parecem então posicionar-se por relação a esse problema, o de saber se irão viver no mesmo sítio, com mais dinheiro, por exemplo, ou viver noutro sítio, diferentemente. A atracção pelo relativo cosmopolitismo da urbe é aqui moderado pelo reconhecimento que cada um faz do sítio donde vem e do que deve aos que aí vivem, o que torna este filme um pouco angustiado pelas dívidas, mas sem nenhuma maldade. São personagens com um nó na garganta, com a dificuldade em garantir para as suas existências o carácter multiforme que a cidade lhes poderia oferecer, como o local aparente, atractor, onde a paz ou o bem-estar se ganhariam. Jogos entre os que querem sair e os que querem ficar. Subir na vida para poder ficar. Se para cima se fica no mesmo sítio, para o lado muda-se de lugar. Que quererão dizer-nos os detalhes dos mármores, dos empedrados, dos vidros fumados?
Há uma cena particularmente comovente que se desenrola numa cozinha. Um pai faz o relato ao filho arrivista empregado de banco do dia porque passou a mãe e porque se encontra deitada à hora de jantar. Uma história de problemas no trabalho, despedimentos «que metem a GNR e tudo». Não um trabalho qualquer, na fábrica. Diz-lhe o filho: «Sacrificas-te por uma ninharia». Mas poderia dizer-lhe também que deixasse essa vida, e ir viver com no luxo relativo do sector terciário, os serviços. É todo um movimento social concreto que se extrai de um filho que conversa com a mãe deitada na cama.


Numa outra cena, uma personagem masculina insiste em descrever um simples jogo de snooker como humilhante, quando ele é, sobretudo, um ritual de iniciação sexual. A outra personagem em cena, uma mulher que joga sempre a sério, é interpretada por Inês Vaz (na imagem) com uma força quase excessiva para uma personagem que é quase, ou parece, unidimensional, por ser a única que não participa dos anseios atrás referidos acerca da vida suburbana, mas sem que chegue sequer alguma vez a roçar a caricatura, num jogo de tensão constante, inebriante. Também Sara Cipriano, que interpreta a personagem feminina principal, é brilhante de subtileza. (Por vezes, por não acompanhar o teatro, não percebo a vida criativa dos actores. Sempre me incomodou a urgência que manifestam por aparecer, em qualquer coisa que seja. Como se não percebessem também eles a diferença. A frequência com que se entregam a fazer papéis vulgares na televisão, pelo dinheiro certamente, mas onde não têm qualquer tempo para dar alguma complexidade às personagens é assim particularmente confrangedora. Um pequeno filme como este, apesar da escassez de todo o tipo de recursos, permite-lhes ao menos apropriar-se daquele corpo para outra coisa que não a simples urgência de saírem de si próprios. Não é isso o terrível nos actores, essa urgência em se projectarem, mesmo em tempos que convidam ao recolhimento? A alma de um actor, eis um exemplo do tipo de coisas que, para mim, são assustadoras.)
Por vezes existem efeitos felizes no trabalho de um actor em que é difícil distinguir absolutamente o trabalho voluntário (também de argumento) do acaso involuntário. Por exemplo, na verdadeira língua de pau do protagonista masculino principal, que o denuncia a cada momento e o condena ao espelhamento e às limitações irredutíveis da sua posição entre dois mundos sociais (o seu e o da sua namorada) que não se podem cruzar. Mesmo quando procura superar o hiato aberto falando de amor, só lhe saem palavras caras e articulação sintáctica complicada

Por isso também a hesitação dela, apesar de manter a dúvida, parecer tão irredutível. Ela sabe que há forças maiores que a das palavras, por muito reflectidas que sejam. Estas embatem apenas nas pedras de mármore. E os dizeres afirmam aqui, quase sem excepção, uma pertença, não tanto a uma classe social completamente determinada e determinante, mas a uma posição própria da personagem, o lugar donde vem e para onde está a ir, sabendo que todos parecem um pouco parados naquele lugar simultaneamente opressor e que não permite um outro.
Por isso é estranho o significado da dupla suspensão no final. Não estão as personagens já suficientemente aprisionadas nas condicionantes da sua vida? Um filme meio encurralado, como as suas personagens, retrato de vidas suspensas. Continuo a sentir essa suspensão final como uma repetição do que lá está, um duplicação nefasta. Mas talvez isso se deva à exigência da utilização da música, e Luís Correia usa a música como poucos (reveja-se O dedo).
Um filme pode ser bem ou mal recebido, mas não é isso, no entanto, que o torna bom ou mau cinema. Claro que o contrário é ainda mais mentira. Não é certamente por um filme ser mal recebido que é bom. Há que abrir os olhos e fazer um esforço para deixá-lo entrar. E podia dar-se o caso, num filme assim ambicioso e complexo, de haver eventualmente alguma fragilidade técnica que o desmerecesse. Mas não há, de todo, o filme foi rodado em película e é cuidado em todos os elementos técnicos. Assim sendo, só se compreende que tenha sido recusado no Festival de Curtas de Vila do Conde, onde precisamente Rapace foi o sucesso que se conhece, porque o mundo e a vida do subúrbio que mostra não convéem a esse festival, tão preocupado com instalações e outras coisas que tais. Enquanto que este pequeno filme tem outro género de coisas lá dentro, algumas antiquadas, como pessoas, fábricas, famílias e assim.

Estação (2007) 32' de Luís Miguel Correia
2ª, dia 15, 21h30 - Cinemateca ante-estreia

Facsimile






[imagens do caderno de rodagem de Klassenverhältnisse/Relações de classe (1984) de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub (uma adaptação cinematográfica de O desaparecido/América de Kafka), incluídas na recente edição alemã do filme em Dvd, e publicadas entre outras no neue filmkritik; Chapeau ! ]

O espectador ocioso #4: A projecção das ruínas

Dotado de uma boa-fé gravosa ao ponto da perversão, tocado pela surpresa – ah, o gosto da boa surpresa, o saber deixar-se inclinar pelos acontecimentos inesperados ou meramente não previstos... –, este espectador ocioso, contrariando os seus juízos anteriores sobre as projecções em Dvd, deixar-se-ia levar de boa-vontade a experimentar a excepção que confirmaria a regra. A raridade dos encontros com os filmes de Vittorio de Seta em Portugal [«Pastor di Orgoloso» (1958) e «Banditi a Orgoloso» (1961) n’“A utopia do real” (Olhar de Ulisses, Porto 2001); «Parabola d’oro» (1955) e «Sulfarara» (1955) num ciclo sobre “o trabalho” (no Doclisboa de 2006); e que mais?], a que não pôde comparecer, bem como os posteriores relatos míticos, deixaram-lhe tanta água na boca. Um grupo de jovens italianos e outros Erasmus propunha assim de repente, sem aviso prévio, com a generosidade de uma mera hora e meia de antecedência, um programa com «pequenos documentários de Vittorio di Seta realizados entre 1954-1955 ambientados em sua Sicília natal», que incluia «Parabola d’oro», «Lu tempo di li pisci spata» (1954) e «Pasqua in Sicilia» (1955) e, nem vem ao caso, o Sicília! de Straub-Huillet [seria um crime sem desculpa vê-lo naquelas condições] na Academia do Recreio Artístico, Rua dos Fanqueiros, 286, 1º, numa programação do cinemalfa. Era, portanto, uma noite temática.
Chegado àquela simpática associação recreativa, o ambiente era tão descontraído e jovem que se começou logo por duvidar da paciência que teriam aquelas pessoas para ver sequer um filme às escuras, sem outra diversão durante algum tempo. Havia os bidões internamente iluminados que aconchegava a sala e várias janelas abertas para a rua. Preparava-se uma leitura de poesia sicíliana musicada para o intervalo entre os filmes. Nada a obstar. Mas a projecção antecipava-se como feita a partir de um portátil para um projector, vulgo datashow, que é uma coisa que serve para ver ficheiros de Power Point, que não são certamente o supra-sumo da subtileza gráfica. Dos lados, o ecrã borrava manchas de cor enjoativas. Os filmes começaram mais ou menos com uma hora de atraso. Mas estava-se bem. Quem aprecia, podia beber uma cerveza e tal, observar as miúdas bonitas, o modo desenvolto da gente jovem...
Quando a projecção finalmente se prepara para começar, os receios vêm ao de cima. Temos então uma tela com um quadrado de projecção que é já uma imagem dentro do espaço da imagem que seria o ecrã total, depois lá dentro, no ambiente de trabalho projectado, uma janela do Windows Media Player (é um PC, ainda por cima) que vai ler o Dvd, apesar de não ter sido feito para estas dignidades, com os seus efeitos coloridos de fundo. À vista as inúmeras configurações, todos aqueles atríbutos gráficos do ecrã de computador, ícones e barras laterais, e etc., coisas que serão talvez quase inofensivas se, digamos, nos estivermos a preparar para ver o «Curb your enthusiasm», mas que são absolutamente perturbadoras para ver cinema numa sala, que demanda silêncio visual. Como se não bastasse, mais tarde, um pop-up irritante do Messenger iria interromper a projecção ainda a meio de um dos filmes.
Enfim, começa com «Lu tempo di li pisci spata», um filme sobre a faina dos pescadores de peixe-espada. Mas, como seria de se esperar, alguma coisa estava errada. Neste caso, um formato de imagem completamente quadrado que me pareceu impossível. Fiquei estacionado naquela posição, para mim, extremamente incómoda, que é a de não saber se a imagem é ou não proporcional. [Os meus pais têm um grande televisor com múltiplas e desesperantes opções de formatos de imagem, com “zoom”, “inteligente”, etc., em que nunca percebo o que estou a ver e, principalmente, a deixar de fora]. Nunca tinha visto um tal quadrado perfeito, e as gentes na pesca, a que por isso quase nem dei atenção, pareciam-me demasiado delgadas, isto apesar da compreensível escassez alimentar na Itália popular dos anos 50. Por outro lado, estavam todos também de tal forma pálidos que fiquei na dúvida se o filme seria a preto-e-branco ou a cores, pois só algumas emergiam. Podia ter sido tintado, como fez o Ted Turner aos clássicos americanos, com aqueles tons desmaiados e uniformes, tipo aguarela. Era o que aqui também acontecia, uns amarelos de vez em quando e, sobretudo, um vermelho que sobressaia. Aquilo trouxe-me a horrível lembrança da criancinha a lápis de cor vermelho do ‘Schindler’s list’ de Spielberg. Para lavar a memória, lembrei-me logo do porno desaturado/saturado pelo Godard, por exemplo neste excerto particularmente ambicioso das «Histoire(s)», em que a escolha das áreas coloridas é selectiva, não neutra, sendo o amarelado ou o avermelhado da pele, mais precisamente, o carmin que faz sobressair. Neste de Seta, dada a pobreza da imagem projectada, só podia supor aquele jogo como involuntário, e tentar imaginar o que seriam as cores daquele filme numa cópia de película não degradada.
Curiosamente, como os filmes do de Seta estava todos alinhadinhos num enorme ficheiro, e nos estavam a ser apresentados todos de seguida, acabámos por não ver os filmes anunciados, mas outros semelhantes, pois parece que tanto fazia. Em vez de «Parabola d’oro» e «Pasqua in Sicilia», foi-nos presenteado pela ordem informática, incompreensível no que concerne ao programa, mas, confirmariamos depois, correspondente à cronologia da obra, o «Isole di fuoco» (1954) e o «Sulfarara». Passavam assim de seguida os céus daquelas ilhas tornados amarelo-canário-vibrante-de-electricidade-vídeo e vermelho-alaranjado-de-pôr-de-sol-que-nem-nos-piores-clichês-fotográficos. Na mais das vezes, sobretudo na erupção do vulcão em «Isola de fuoco» e no interior das minas de «Sulfarara», só se via o pouco que escapava à escuridão, a lava e a carne dos trabalhadores. Não se via absolutamente nada do trabalho. Todo esse resto não chegava sequer à penumbra, não era permitido existir na projecção. O nosso olhar estava brutalmente seleccionado. Eis assim as paisagens brutas mas não indiferentes das ilhas sicilianas (Stromboli!) mascaradas pela falta de resolução, pelo varrimento do vídeo para onde foram transcritas, pela mesquinhez dos pixeis do computador.
Uma vez, numa sessão do Porto 2001, disse ao João Bénard da Costa, para sua impaciência, que o «Johnny Guitar» até em slide funcionaria. Mas temo que, mais uma vez, me enganei. Porque é muito diferente aceder de início a uma obra cinematográfica numa cópia precária ou absolutamente degradada/processada. Foi o que me aconteceu com estes filmes do Vittorio de Seta, projectados a partir da digitalização mal feita de uma mais que provável péssima cópia vídeo. No entanto, e apesar disso, estes filmes surgem ainda, mesmo nesta matéria pobre, como lindíssimos. Claro que a potência de um filme não passa sobretudo pela sua qualidade fotográfica, pelo contrário; mas é diferente quando não se vê na imagem degradada/processada nenhuma das outras coisas que deviam lá estar e que, ao lê-las, concorrem para nos dar o que o filme pode dar. A degradação da imagem torna irremediavelmente o filme noutra coisa, mais precisamente, num espectro paradoxal, como se a essência do filme sobrevivesse nos vestígios que deixa e, ao mesmo tempo, neles se perdesse. Daí a situação estranha que ocorre quando se vê filmes assim, que é a de não se saber, para si próprio, se efectivamente se os viu. Eu não sei dizer se vi estes filmes de de Seta. E agora não estou a falar sequer de uma sua suposta plenitude fotográfica, etc. Falo de ver simplesmente. De ter visto um filme. E de não saber. Creio que será este o limbo dos filmes, ou talvez o seu particular purgatório, onde errarão como espectros. E será assim que posteriores evocações podem (e devem obrigatoriamente) ter menor qualidade de imagem, como nas Histoire(s), por essa degradação fazer parte do poder da evocação. Como se houvesse uma estranha equivalência ou equiparação entre uma degradação histórica ou processual do material fílmico e o trabalho artístico de evocação sobre essas imagens. Das duas nascendo a projecção das ruínas.
Lá no meio da, para ele, enfadonha sessão, o projeccionista-informático-na-óptica-do-utilizador, sentado a ver o filme, puxa de um cigarro, tal como a sua namorada, sentada a seu lado. Fumavam, e o fumo dos seus cigarros subia e era mais um obstáculo, mais uma camada a interpôr-se entre nós e o filme. Por cada elemento que se acrescenta à escuridão-solidão da sala de cinema, mais uma camada de névoa ou gordura que se barra no filme. Eis pois o cúmulo de ver televisão em conjunto, numa sala grande, com todos muito à vontade. Mas, ainda assim, se existem talvez condições optimais para ver um filme, curiosamente, parecem não existir condições mínimas indispensáveis. Como se tudo dependesse da paciência do espectador e da singular troca que ambiciona realizar no escuro. Com ou sem fumo, ela pode realizar-se. Desde que tenha paciência para tentar reconhecer, debaixo da névoa e da gordura e dos outros gestos humanos difíceis de apagar, a matéria nervosa do filme.
Quando de repente parou a projecção, insensível ao pequeno milagre que era aqueles pequenos filmes resistirem àquelas condições, o jovem organizador-apresentador, impaciente e cumpridor do número de filmes inicialmente estipulados, apenas três, mesmo se não aqueles, foi também insensível aos olhares solicitos de alguns espectadores, inebriados talvez pelo próprio paradoxo. Depois de passar um terço do ficheiro, se tanto, ficou na sala uma sensação de vazio. Os espectadores ociosos continuariam infinitamente, na urgência de não se poder parar, mesmo que assim precárias, aquelas imagens fantasmáticas. Que significará afinal que não possa ser parado mesmo o que é tão precário? O insensível rapaz que, no início da projecção assim apresentou os filmes, bem que insistia ainda no final com «os camponeses, os camponeses...», nem reparando que eram pescadores, mineiros, crianças, outras tantas coisas. Segundo a Wikipédia, parece que de Seta «realizou [apenas] dez pequenos documentários entre 1954 e 1959». Que alguém salve estes [poucos] filmes, no gesto simples de os mostrar.

Outros filmes de Outubro


On connaît la chanson
Alain Resnais
1997, 122’ 35mm
2ª, dia 8, 19h00
Instituto Franco-Português, Lisboa

Vale Abraão

Manoel de Oliveira
1993, 203’
2ª, dia 8, 22h
Cinemateca, Lisboa

Pasazerka / Passageira
Andrzej Munk
1963, 63’
5ª, dia 11, 19h30
Cinemateca

Estação ante-estreia
2007, 32’
O dedo
2005, 5’
Luís Miguel Correia
2ª, dia 15, 21h30
Cinemateca

Scénario du film ‘Passion’
Jean-Luc Godard
1982, 54’
«Centre Pompidou Arte Vídeo»
a partir de dia 19
Museu do Chiado, Lisboa

Le papier ne peut pas envelopper la braise
Rithy Panh
2006, 86’
doclisboa
Sáb, dia 20, 16h30
Londres 1

2ª, dia 22, 21h

Culturgest, Gr. Aud.


He Fengming
Wang Bing
2007, 184’
doclisboa
Dom, dia 21, 14h30
Culturgest, Gr. Aud., Lisboa
3ª, dia 23, 16h30
Londres 1


Le filmeur
Alain Cavalier
2005, 97’
«Diários filmados e autoretratos»
(prog. Augusto M. Seabra)
doclisboa

2ª, dia 22, 14h15
Culturgest, Pq. Aud.


La pudeur et l'impudeur
Hervé Guibert
1991, 58’ cor, vídeo
«Diários filmados e autoretratos»
doclisboa
2ª, dia 22, 22h45
Culturgest, Pq. Aud.

JLG/JLG: autoportrait de
décembre

Jean-Luc Godard
1994, 55’
«Diários filmados e autoretratos»
doclisboa
3ª, dia 23, 22h45
Culturgest, Peq. Aud.

News from home
Chantal Akerman
1976, 85’
«Diários filmados e autoretratos»
doclisboa

4ª, dia 24, 22h45
Culturgest, Pq. Aud.

Le samouraï
Jean-Pierre Melville
1967, 95’
5ª, dia 25, 15h30
Cinemateca

[esta rubrica contém exclusivamente, e desde o seu início, apenas filmes já vistos e sem repetições]


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