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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #212 (António Guerreiro): A vida pobre

O que significa a promessa, em fase de cumprimento, de que vamos empobrecer? Como a pobreza é sempre relativa — ensinou Simmel num estudo de 1907 sobre os pobres —, em relação a quê estamos a empobrecer? A resposta é óbvia: em relação aos padrões e modos de vida das últimas décadas. Mas aqui impõe-se uma distinção entre modo de vida e forma de vida, que é uma noção essencial em Foucault. A forma-de-vida (os hífenes ajudam-nos a perceber melhor do que se trata) é uma vida que não se pode tornar objeto de cálculos estratégicos governamentais porque é inseparável da sua forma: uma vida em que todos os atos e processos que a definem são possibilidades de vida e não meras contingências. Neste sentido, quando os governantes nos dizem que é preciso alterar os modos de vida, isso implica forçosamente separar a vida da sua forma. Só esta separação garante que se pode dar um empobrecimento generalizado sem que, por isso, se inventem novas formas-de-vida: algo que os aprendizes de feiticeiro da planificação económica têm como missão evitar a todo o custo que aconteça.  

Usando um exemplo esclarecedor: podemos todos empobrecer, até cair na indigência, o que não podemos — ou, pelo menos, poderosas são as forças que zelam para que tal não se dê — é inventar uma forma-de-vida em que a pobreza seja uma potência (como foi o franciscanismo, para dar o exemplo mais extremo). O que nos é prescrito com inaudita violência é que ‘ajustemos’ a nossa vida, a ‘modelizemos’ segundo as novas circunstâncias, mas que isso se faça sobretudo sem que mudemos de forma de vida. E se a noção foucaultiana de forma de vida nos ajuda a perceber teoricamente a questão, em termos histórico-pragmáticos o facto catastrófico de a vida ser separada da sua forma foi apreendido, com uma consciência trágica, por Pasolini, que dizia de si: “Mais moderno que todos os modernos [...] eu sou uma força do passado.”

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 5.10.2012.

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