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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #215 (António Guerreiro): “Sentido de Estado”

“Sentido de Estado” é uma qualidade tão reclamada e respeitada que, muito embora ninguém tenha, alguma vez, dado uma definição segura de tal coisa e, em rigor, ninguém saiba o que é, nunca ela é dita sem o gesto enfático da reverência. Tal como é geralmente entendido, o sentido de Estado evoca com alguma evidência aquilo que no teatro clássico se chamava as “regras da bienséance”, segundo as quais tudo o que se passava no palco devia ser conforme à verosimilhança e à moral. É fácil perceber a pertinência desta analogia: não é possível pensar aquilo que é designado como sentido de Estado sem o relacionar com a performance teatral na cena política, sem que se exponha o plano da representação e da encenação. Por exemplo, um político como Mário Soares libertou-se manifestamente da obrigação de representar o sentido de Estado — uma prerrogativa que lhe vem da idade e do capital simbólico que acumulou. Mas que pode significar um tal “sentido”, quando ele é proclamado e reivindicado até por quem recita diariamente a ladainha (que não deixa de ser verdadeira, muito embora a sua verdade seja diferente da que ela nos quer convencer) de um Estado empecilho, ineficaz e, em si mesmo, tendencialmente monstruoso?  

Foi certamente quando o Estado começou a perder todo o sentido que se começou a falar de sentido de Estado. Em tal expressão, ecoa um sisudo anacronismo e dá-se a ver uma roupagem vetusta, usada em palcos e representações que já não são os nossos. “Razões de Estado” — eis o que se dizia noutro tempo, anterior ao sentido de Estado (que pode ser definido por antífrase: é o Estado anestésico), quando a vocação dominadora e guerreira era assumida como uma missão. Será então o sentido de Estado a prova de que o Estado perdeu a sua razão — e anda à procura do seu sentido — e, como uma corista reformada, sobe ao palco de um cabaret decadente e imagina que está no Grande Teatro Nacional?.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 27.10.2012.

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