Ainda não começámos a pensar
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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

O clichê do final aberto (cont. IndieLisboa 2008: #15)

Outrora tínhamos direito aqueles finais felizes, com as personagens, sobreviventes dos acontecimentos de natureza dramática, erguidas contemplando esperançosas o horizonte ventoso, mas pleno de alegria, do futuro vindouro, enquanto a palavra “Fim” se incrustava em cima delas. Era o fim do filme, e era também o fim da vida delas que nos dizia respeito. Havia uma solidariedade entre estes dois fins.
O cinema moderno acabou felizmente com esta solidariedade, bem como, e sobretudo, com aquela enjoativa felicidade. Os finais começaram a perturbar, com personagens que não se sabia o que pensavam, para onde iam, com quem ficavam, etc. Enfim, uma trupe de baralhações que indicavam que o filme, por circunstâncias várias, acabava ali, mas também que, de igual maneira, podia ter continuado indefinidamente, já que não se reconhecia mais nenhuma hierarquia entre os acontecimentos passados e futuros, entre os que tínhamos acabado de ver e a vida que estava por vir.
Mas aquele que era talvez o mais evidente paradigma do cinema moderno, o final aberto, tornou-se um insuportável clichê, depois de ter sido uma das suas poucas descobertas rigorosamente adoptadas pela generalidade do cinema contemporâneo. Agora não há filme que se tenha por respeitável que não acabe assim em meias-tintas. Não se sabe bem o que aconteceu, não se quer condicionar a leitura do espectador, e outras banalidades destas, parecem dizer os filmes, encolhendo os ombros, dizendo que têm que fazer pela vida e pedindo desculpa por acabarem assim.
Ainda recentemente, um dos premiados do IndieLisboa, o filme chinês, falado em mandarim e em dialecto de Shaanxi, NIGHT TRAIN (estranho nome para um filme chinês!) de Diao Yinan, acabava com as personagens a prepararem-se para entrar numa barcaça que eventualmente precedia uma desgraça que não pudemos presenciar. Por uma vez, gostava de ver a personagem a afogar-se mesmo. Ou então não, a salvar-se e a continuar com a sua vida, miserável ou remediada, como a de nós todos. A inesperada abertura transformou-se progressivamente num fechamento, numa facilidade a que obedecem as correcções artísticas.
Vem-me à cabeça uma excepção, assim de repente. O voluntarioso (e expressamente deleuziano) LADY CHATTERLEY de Pascale Ferran acabava em rigoroso tom menor, sem mais coisas, e, principalmente, sem qualquer presunção nessa menoridade.
Mas, para mim, a luta contra o clichê do final aberto, mesmo que ainda numa forma incipiente, encontra-se em muitos dos filmes da dita Escola de Berlim. Essa é aliás uma das suas pedras-de-toque, um dos seus mais valiosos sinais, aquilo que permite distingui-la de outras verdadeiras ou supostas “novas vagas” contemporâneas. Nela parece vislumbrar-se um primeiro esforço de superação, ou pelo menos reformulação, desse bloqueio da abertura, da passagem para lá do aberto. Seja pela via cómica ou da irrisão (BUNGALOW e MONTAG KOMMEN DIE FERNSTER de Ulrich Kohler), pela explícita tematização da abertura (SEHNSUCHT de Valeska Grisebach), pelo cúlmino decisivo e sem infecundas ambiguidades (DIE INNERE SICHERHEIT, GESPENSTER, YELLA de Christian Petzold), pelo esbatimento (FERIEN de Thomas Arslan, MARSEILLE de Angela Schanelec) ou pela suspensão precoce à beira da incompreensão (NACHMITTAG de Angela Schanelec).
Outros lutam ainda por outra via de ultrapassagem, mesmo que conservando alguns traços da abertura. Em LA GRAINE ET LE MOULET de Abdellatif Kechiche, esta abertura é largamente deceptiva. A um acumular da tensão narrativa, à sábia e quase perversa gestão das expectativas generosas que alimentámos pelo destino daquelas personagens, o filme oferece afinal uns quantos golpes severos, de sinal também contraditório (a síncope do pai, o melhor cuscuz destinado ao sem-abrigo, a dança bem acolhida pelas filhas, a feitura do cuscuz pela amante inábil, a suspeita do insucesso culinário do restaurante, etc.), e cuja ambiguidade só aparentemente permite pensar que tudo acabaria em bem, que aquele sonho precário se realizaria plenamente. Muitos espectadores não aguentam esse embate deceptivo, e recusam-se a aceitar que, precisamente no falhanço, fica salvaguardada a força do gesto, a alegria da vida.

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