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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #166 (António Guerreiro): A culpa e a dívida

A linguagem é o primeiro instrumento de todas as trocas, e muitos conflitos e desacordos têm origem em problemas de linguagem. Quando a troca é entre línguas diferentes, há zonas idiomáticas intraduzíveis. Para percebermos a atitude moralista e disciplinadora da senhora Angela Merkel perante os países da zona euro mais atingidos pela crise da dívida não basta evocar, como explicação, a defesa irredutível de interesses nacionais (que, neste caso, chocam com o ideal supranacional da Europa) e recordar a história da Alemanha. Temos também de entrar numa lógica de pensamento a que a nossa língua não nos obriga. Neste caso, é conveniente saber que em alemão a palavra que traduz a nossa “dívida” é a mesma que diz a nossa “culpa”: “Schuld” tem ambos os significados. As consequências desta determinação linguística para a economia são enormes, como podemos hoje avaliar. A experiência do débito como culpa e da culpa como débito supõe uma conceção do capitalismo onde se sobrepõem categorias éticas, jurídicas e teológicas.  

Angela Merkel pode até nunca ter lido Max Weber, mas fala a mesma língua – em que “Schuld” significa “dívida” e “culpa” – do sociólogo alemão que formulou a tese da relação entre a ascese protestante e o espírito do capitalismo. E fala a mesma língua em que Marx sublinhou a derivação parasitária da economia capitalista da religião cristã. E fala ainda a mesma língua em que Walter Benjamin definiu “o capitalismo como religião”, como um culto “gerador de culpa” (ou de dívida, já que a palavra é a mesma) que não redime o pecado mas torna-o universal. Um culto permanente, uma festa contínua que não obedece a uma doutrina dogmática e que se celebra todos os dias, para o qual – e pronunciemos em voz baixa o que vem a seguir para nenhum dos governantes nos ouvir – não há dias feriados. 

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 19.11.2011.

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