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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #165 (António Guerreiro): A crítica em falso

A reação da Igreja, através de uma nota do Secretariado Nacional da Pastoral de Cultura, ao último livro de José Rodrigues dos Santos cai exatamente num equívoco que é o mesmo da crítica 'profana': o de elevar o livro a um estatuto que não tem. Walter Benjamin ensinou-nos esta coisa fundamental: um livro mau, num grau em que está ausente qualquer princípio crítico que é inerente à literatura, é incriticável enquanto tal (o que pode ser criticável é tudo o que o envolve no seu aparecimento e difusão). Este princípio, mesmo que não racionalizado e explicitado, vigorou até um tempo relativamente recente. Data do século XIX o aparecimento de uma literatura de entretenimento que tinha, na melhor das hipóteses, alguma importância económica, mas cujos caminhos nunca se cruzavam com os do ‘sistema literário’. E era exclusivamente deste que emanava o sistema da crítica.  
A partir do momento em que as regras de difusão e legitimação crítica começaram a ser permeáveis aos critérios do sucesso mediático e comercial e enfraqueceram o poder das instâncias (a Universidade, por exemplo) que não deixavam que a literatura se confundisse com as produções das ‘belas letras’, os dois campos passaram a cruzar-se e a mobilizar os mesmos meios, os mesmos métodos de difusão e os mesmos discursos. As categorias de ‘ficção’ e ‘não-ficção’ utilizadas pelas livrarias e por muitas revistas e suplementos literários são uma manifestação deste estado de coisas. Diga-se em abono da verdade que, se a literatura de entretenimento acedeu às esferas dantes reservadas ao que tinha a consagração apenas outorgada pelo ‘campo literário’, a literatura também passou a competir nos modos de edição e difusão com o entretenimento. O que facilitou o estado de confusão, nesta matéria, em que vivemos hoje. E explica que se gastem munições críticas e teológicas em alvos que se situam noutro campo de batalha.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 12.11.2011.

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