A doce Delphine. Fragilidade e obstinação (Susana Duarte)
Le Rayon Vert (1986) de Eric Rohmer, com Marie Rivière
Delphine, a doce Delphine que aspira ao raio verde, recebe um telefonema no escritório onde trabalha; a amiga com quem ia passar férias abandona-a à última da hora e Delphine fica sem projectos para os dias de descanso que se irão seguir; o filme mete-se em marcha e desenha os movimentos de Delphine no interior deste Verão inesperado e esvaziado do seu programa. Que fazer, agora? É o problema que Delphine vai afrontar e do qual se desprende de um modo muito mais fundamental o caminho da vida na sua incerteza. A partir da relação com este acontecimento imprevisível, é toda a vida de Delphine que vacila, o seu modo de se dar e existir que são confrontados. E o cinema de Rohmer mostra que Delphine e o mundo dependem e se exprimem agora nessa relação. Lançando-a na indeterminação, Rohmer dá rédea solta às determinações do acaso. Mas ao contrário de outros filmes de Rohmer, aqui Delphine não tem nada nas mãos, não há teoremas ou pressupostos de partida conscientes e definidos, para pôr à prova... há contudo, uma ideia vaga, quase inexprimível, que a inspira e à qual aspira, de que se trata de “escolher o que já está escolhido”, e o que o momento de dizer “sim” a alguém, porque é de amor e de solidão que se trata, não será verdadeiramente da ordem da escolha, mas da evidência (não uma evidência da razão, mas uma misteriosa evidência da vida). É esta ideia que a faz mover, que a anima, e nas suas férias forçadas emerge uma espécie de itinerário espiritual, em que protegendo com obstinação esta ideia sem imagem, que ela mais do que conseguir nomear, pressente, e cuja força nós vamos pressentido com ela e através dela, Delphine abandona-se ao jogo dos encontros e do acaso, tal como o filme de Rohmer, e nesse abandono exila-se e arrisca-se na mais alta solidão, como se esse ponto indefinido, mas não arbitrário, que defende obsessivamente, a abandonasse a cada encontro que se desenha, tornando-o numa espécie de prova de resistência, e a entregasse ao vazio, para aí poder brilhar com mais intensidade.
Estamos no mais próximo da vida, “que não explica nada por sua conta e deixa nas criaturas zonas indeterminadas, hesitantes, que desafiam qualquer esclarecimento”. Rohmer não explica Delphine. Não há ponto de vista privilegiado. Vêmo-la do exterior a conservar até ao fim o seu mistério, mistura de fragilidade e obstinação. Seguimos Delphine, nas suas idas e vindas de Paris, avançamos com ela ao sabor dos acasos, da sorte, dos dias de verão que se sucedem, pois também ela se entrega totalmente ao exterior, se exclui da análise das razões, da psicologia dos motivos, para obter aquilo que eles não lhe podem dar, o que não consegue nomear, justamente aquilo que a move nos encontros, na procura do amor...
Sozinha, perdida e hesitante, “somente com o chão que faz falta aos seus dois pés”, Delphine “apenas tem de passear e pode fazê-lo em qualquer lado”. Depois de algumas visitas a amigos e familiares em Paris, apesar de pouco entusiasmada, Delphine põe a hipótese de ir até Irlanda com a família. Acaba por ir para Cherbourg, com Françoise, uma amiga. Regressa a Paris passado cinco dias. A seguir viaja até aos Alpes, depois de ter falado com Jean-Pierre, o seu antigo namorado. Regressa a Paris no próprio dia. Vai ter com Françoise e chora. Diz-lhe que “é duro estar sozinha e que como não espera nada, talvez encontre alguém; não sabe o que quer fazer”. Alguns dias mais tarde, num passeio, encontra uma outra amiga que a convida a usar o seu apartamento, em Biarritz. Delphine segue então para Biarritz. Uma vez mais, pouco tempo depois da chegada, decide partir novamente...
Delphine mostra-se à flor da pele e todos falam sobre ela e sobre a sua solidão, como se quisessem tomar conta da fragilidade que ela lhes oferece, como se ao exibi-la sem máscara, ela não tivesse como recusar as palavras de conforto, de boas intenções, as questões e os pressupostos benevolentes dos outros. Para a salvarem da sua solidão os outros pressionam-na a dizer “sim”, a escolher, forçam-na a trair essa ideia indefinida, secreta, simultaneamente profunda e exterior, que age nela e a faz agir (e que é também o motor do filme). Mas para a fazer sobreviver, Delphine diz “não”, ou por vezes “não sei”, ou ainda “sim... e não”, tornando irrelevantes, ou inoperantes as palavras dos amigos ou desconhecidos com quem se vai cruzando, que progressivamente se deixam de distinguir, de uma situação para outra, de encontro em encontro. Assim, Delphine para uma rapariga sueca que conhece em Biarritz: “Para mim isso é vago, é uma conversa. Fazer alguma coisa... “Faz alguma coisa”. Já ouvi isso antes. As minhas amigas de Paris já mo disseram: “É preciso fazer alguma coisa, procurar, blá, blá, blá. É só conversa...”
Não lhe interessa o “sim” assente nos pressupostos razoáveis dos outros, mesmo sob pena de manter toda gente à distância e de se perder para o mundo.
As sucessivas recusas de Delphine, mais do que recusas, são recusas na suspensão da escolha, que mantêm a escolha aberta, mas sem definir afirmativamente os seus contornos. Cada “não” ou “não sei”, não nos dá referências claras sobre o que poderia ser escolhido, ao mesmo tempo que a verdadeira escolha que parecem querer preservar, parece afastar-se cada vez mais dos “possíveis”. O “não” é perturbador porque, serve para guardar o “sim” em relação a um acontecimento, a alguém, indeterminado, no qual se projecta, sacrificando, na espera, os “possíveis” que se oferecem; responde a um ponto cego, cujo conhecimento misterioso e irracional só Delphine detém...
No entanto, é neste gesto, por um lado, de abandono, por outro, de subtracção sucessiva ao mundo exterior, de corte com ele, que se evidencia a perseverança e a força desse ponto íntimo que é simultaneamente “um exterior mais profundo”.
A confiança nesse exterior, que as palavras de Delphine, em resposta às interrogações dos outros sobre a sua possibilidade e realidade, só conseguem apreender de forma balbuciante, é como que confirmada pela entrada de pequenos objectos verdes, que a estrutura do filme põe em destaque: tratam-se de objectos que Delphine encontra ao longo da narração e que assinalam uma espécie de “dimensão metafísica do acaso”; indiciam, apesar da má sorte, que a sua obstinação encontrará, pela mão enigmática do acaso, um ponto em que este se fará graça, milagre, dando finalmente sentido a todo o seu movimento...
O instante procurado, que parece impossível, o da verdadeira escolha, que é também o do verdadeiro encontro, esse instante que parece não lhe estar destinado, em torno do qual o filme deambula com o personagem, numa busca que se faz na abertura paciente, uma paciência que parece aos outros fechamento caprichoso, Rohmer mostra-o no fim do filme, em toda a sua fragilidade: “o raio verde, momento único, raro, que Delphine e a câmara querem fixar no seu presente, para não viverem somente a sua virtualidade”.
Delphine, a doce Delphine que aspira ao raio verde, recebe um telefonema no escritório onde trabalha; a amiga com quem ia passar férias abandona-a à última da hora e Delphine fica sem projectos para os dias de descanso que se irão seguir; o filme mete-se em marcha e desenha os movimentos de Delphine no interior deste Verão inesperado e esvaziado do seu programa. Que fazer, agora? É o problema que Delphine vai afrontar e do qual se desprende de um modo muito mais fundamental o caminho da vida na sua incerteza. A partir da relação com este acontecimento imprevisível, é toda a vida de Delphine que vacila, o seu modo de se dar e existir que são confrontados. E o cinema de Rohmer mostra que Delphine e o mundo dependem e se exprimem agora nessa relação. Lançando-a na indeterminação, Rohmer dá rédea solta às determinações do acaso. Mas ao contrário de outros filmes de Rohmer, aqui Delphine não tem nada nas mãos, não há teoremas ou pressupostos de partida conscientes e definidos, para pôr à prova... há contudo, uma ideia vaga, quase inexprimível, que a inspira e à qual aspira, de que se trata de “escolher o que já está escolhido”, e o que o momento de dizer “sim” a alguém, porque é de amor e de solidão que se trata, não será verdadeiramente da ordem da escolha, mas da evidência (não uma evidência da razão, mas uma misteriosa evidência da vida). É esta ideia que a faz mover, que a anima, e nas suas férias forçadas emerge uma espécie de itinerário espiritual, em que protegendo com obstinação esta ideia sem imagem, que ela mais do que conseguir nomear, pressente, e cuja força nós vamos pressentido com ela e através dela, Delphine abandona-se ao jogo dos encontros e do acaso, tal como o filme de Rohmer, e nesse abandono exila-se e arrisca-se na mais alta solidão, como se esse ponto indefinido, mas não arbitrário, que defende obsessivamente, a abandonasse a cada encontro que se desenha, tornando-o numa espécie de prova de resistência, e a entregasse ao vazio, para aí poder brilhar com mais intensidade.
Estamos no mais próximo da vida, “que não explica nada por sua conta e deixa nas criaturas zonas indeterminadas, hesitantes, que desafiam qualquer esclarecimento”. Rohmer não explica Delphine. Não há ponto de vista privilegiado. Vêmo-la do exterior a conservar até ao fim o seu mistério, mistura de fragilidade e obstinação. Seguimos Delphine, nas suas idas e vindas de Paris, avançamos com ela ao sabor dos acasos, da sorte, dos dias de verão que se sucedem, pois também ela se entrega totalmente ao exterior, se exclui da análise das razões, da psicologia dos motivos, para obter aquilo que eles não lhe podem dar, o que não consegue nomear, justamente aquilo que a move nos encontros, na procura do amor...
Sozinha, perdida e hesitante, “somente com o chão que faz falta aos seus dois pés”, Delphine “apenas tem de passear e pode fazê-lo em qualquer lado”. Depois de algumas visitas a amigos e familiares em Paris, apesar de pouco entusiasmada, Delphine põe a hipótese de ir até Irlanda com a família. Acaba por ir para Cherbourg, com Françoise, uma amiga. Regressa a Paris passado cinco dias. A seguir viaja até aos Alpes, depois de ter falado com Jean-Pierre, o seu antigo namorado. Regressa a Paris no próprio dia. Vai ter com Françoise e chora. Diz-lhe que “é duro estar sozinha e que como não espera nada, talvez encontre alguém; não sabe o que quer fazer”. Alguns dias mais tarde, num passeio, encontra uma outra amiga que a convida a usar o seu apartamento, em Biarritz. Delphine segue então para Biarritz. Uma vez mais, pouco tempo depois da chegada, decide partir novamente...
Delphine mostra-se à flor da pele e todos falam sobre ela e sobre a sua solidão, como se quisessem tomar conta da fragilidade que ela lhes oferece, como se ao exibi-la sem máscara, ela não tivesse como recusar as palavras de conforto, de boas intenções, as questões e os pressupostos benevolentes dos outros. Para a salvarem da sua solidão os outros pressionam-na a dizer “sim”, a escolher, forçam-na a trair essa ideia indefinida, secreta, simultaneamente profunda e exterior, que age nela e a faz agir (e que é também o motor do filme). Mas para a fazer sobreviver, Delphine diz “não”, ou por vezes “não sei”, ou ainda “sim... e não”, tornando irrelevantes, ou inoperantes as palavras dos amigos ou desconhecidos com quem se vai cruzando, que progressivamente se deixam de distinguir, de uma situação para outra, de encontro em encontro. Assim, Delphine para uma rapariga sueca que conhece em Biarritz: “Para mim isso é vago, é uma conversa. Fazer alguma coisa... “Faz alguma coisa”. Já ouvi isso antes. As minhas amigas de Paris já mo disseram: “É preciso fazer alguma coisa, procurar, blá, blá, blá. É só conversa...”
Não lhe interessa o “sim” assente nos pressupostos razoáveis dos outros, mesmo sob pena de manter toda gente à distância e de se perder para o mundo.
As sucessivas recusas de Delphine, mais do que recusas, são recusas na suspensão da escolha, que mantêm a escolha aberta, mas sem definir afirmativamente os seus contornos. Cada “não” ou “não sei”, não nos dá referências claras sobre o que poderia ser escolhido, ao mesmo tempo que a verdadeira escolha que parecem querer preservar, parece afastar-se cada vez mais dos “possíveis”. O “não” é perturbador porque, serve para guardar o “sim” em relação a um acontecimento, a alguém, indeterminado, no qual se projecta, sacrificando, na espera, os “possíveis” que se oferecem; responde a um ponto cego, cujo conhecimento misterioso e irracional só Delphine detém...
No entanto, é neste gesto, por um lado, de abandono, por outro, de subtracção sucessiva ao mundo exterior, de corte com ele, que se evidencia a perseverança e a força desse ponto íntimo que é simultaneamente “um exterior mais profundo”.
A confiança nesse exterior, que as palavras de Delphine, em resposta às interrogações dos outros sobre a sua possibilidade e realidade, só conseguem apreender de forma balbuciante, é como que confirmada pela entrada de pequenos objectos verdes, que a estrutura do filme põe em destaque: tratam-se de objectos que Delphine encontra ao longo da narração e que assinalam uma espécie de “dimensão metafísica do acaso”; indiciam, apesar da má sorte, que a sua obstinação encontrará, pela mão enigmática do acaso, um ponto em que este se fará graça, milagre, dando finalmente sentido a todo o seu movimento...
O instante procurado, que parece impossível, o da verdadeira escolha, que é também o do verdadeiro encontro, esse instante que parece não lhe estar destinado, em torno do qual o filme deambula com o personagem, numa busca que se faz na abertura paciente, uma paciência que parece aos outros fechamento caprichoso, Rohmer mostra-o no fim do filme, em toda a sua fragilidade: “o raio verde, momento único, raro, que Delphine e a câmara querem fixar no seu presente, para não viverem somente a sua virtualidade”.
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