Um gesto, duas morais
Em Saboteur de Hitchcock, o herói (Robert Cummings), acusado de um acto de sabotagem numa fábrica de aviões de guerra, procura quem o incriminou numa fazenda remota. Para escapar ao chefe dos espiões alemães recém-descoberto, pega na neta deste e foge com ela às costas até à esquina da casa, impedindo a tentativa de o suster com uma arma de fogo, cujo uso poria em perigo a vida da criança. O filme já nos tinha mostrado anteriormente que os espiões nazis sibilinos gostam particularmente das netas. Trata-se portanto de uma espécie de escudo humano, sob a forma de uma criança, que este herói hitchcockiano brevemente ostenta. A saborosa sabedoria malévola de Hitchcock faz passar este acto quase desapercebido, num tom ligeiro, de tal forma que não podemos deixar de elogiar a esperteza deste herói. Esperteza certamente ambígua, mas os homens de acção não têm tempo para ambiguidades.
Já em Dead zone de Cronenberg, o vilão (Martin Sheen), no decorrer de um comício eleitoral, e posto sob fogo das balas do herói (Christopher Walken), que o pretende impedir de chegar a presidente dos EUA pois teve a visão terrífica da megalomania daquele, para se proteger dos tiros, pega num bebé que estava próximo na assistência e ostenta-o no ar, igualmente como escudo. Se o herói falha a sua missão de aniquilar o vilão, os média, nomeadamente uma capa da Time com uma fotografia da cena, encarregam-se do assunto, ao mostrarem este preciso gesto cobarde de ostentação do bebé para sua própria protecção.
Temos portanto dois gestos que se podem e devem reconhecer como semelhantes e duas morais absolutamente contrastantes. A não ser que se condicione a natureza do gesto à suposta bondade das ulteriores intenções das personagens, tem de se dolorosamente admitir que se trata do mesmo gesto e de duas morais. O sentido do gesto apenas se inverte por relação a algo de exterior ao próprio gesto, por relação a um contexto mais alargado que é sempre possível invocar ao sabor das conveniências e circunstâncias. Mas não podendo nós dispensar esse contexto, como determinar concretamente onde ele se delimita? Devemos circunscrevê-lo à acção descrita, à ordem jurídica constituída, ou mesmo invocar a humanidade como horizonte de cada gesto? E sendo assim, porque não o cosmos como horizonte "moral" de cada gesto?
Como é difícil acabar de vez com a assombração dos gestos pela moral.
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