Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

A propósito do debate final no PANORAMA: uma ideia de programação

I.
"Já não posso pensar o que quero pensar. As imagens em movimento tomaram o lugar dos meus pensamentos." (George Duhamel, Scènes de la vie future)

Há na montagem um mecanismo que pela afinidade se parece substituir ao pensamento. Será talvez este um dos alcances do “efeito de choque” do Benjamin: de repente já não sou o único a pensar, vejo numa sala escura projectada numa tela branca a construção de um pensamento que se substitui à minha.

"De facto a sucessão de imagens perturba o processo de associação daquele que as observa. Neste facto reside o efeito de choque do cinema que, como qualquer efeito de choque, deve ser suportado por uma presença de espírito acrescida." (Walter Benjamin, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”)

Quando uma cara de mulher se sucede ao enquadramento de um pão, vemos fome na expressão. Vemos uma imagem a partir de outra, lemos a partir da ligação, de um intermédio feito na construção da sequência. Um plano é lido com base no anterior (ou anteriores), pensamos na relação, no diálogo construído entre planos. A resistência a essa sucessão exterior, passa talvez pela consciência de onde se está, pela observação dos mecanismos construtores da associação… passa talvez por um simultâneo participar dessa torrente, e saber que se está a ir. Conseguir visualizar, desconstruir mentalmente ou em discussão a montagem das atracções.

Há talvez na programação um princípio que, inevitavelmente a outro nível, numa outra escala, actualiza alguns dos mecanismos de associação da montagem. Passando do plano ao filme, a programação pode ser construção de leitura, construção de uma teia de ligações e relações feitas num segundo nível a partir das relações interiores ao próprio filme. Colocar num programa um filme a seguir a outro é trabalhar parte da matéria da montagem (retira-se obviamente o tempo, a descoberta do momento, mas mantém-se a possibilidade de ver e ler um plano a partir de outro… mantém-se assim uma espécie de contorno da montagem, aquilo que se manipula, não aquilo com que se manipula…).

Há portanto na programação um potencial de dar a ver em relação, e de dar a ver a relação mais facilmente que no interior de uma sala e durante um só filme. A programação como relação construída entre salas, entre telas, entre filmes, poderá constituir o campo de uma importante resistência ao tal fluxo que corre, concedendo a possibilidade de uma “presença de espírito”. A relação estabelece-se já não dentro de um pensamento, mas entre pensamentos, entre discursos. Torna-se possível falar sobre.

II.
Na discussão final em volta do PANORAMA, Mostra do Documentário Português, discutiu-se muito mais a Mostra do que o panorama desse tal documentário português. Faço um comentário a duas das críticas apontadas à programação da mostra (outras notas podem ser lidas no DOC-LOG da Leonor Areal).
A primeira: uma “cobarde” falta de escolha, de critérios, de selecção e consequentemente de programação (confundindo duas coisas diferentes: programar e selecionar); uma demissão do acto de programar.
A segunda: o público tem de ser protegido, algo que o PANORAMA não fez ao colocar lado a lado filmes bons e filmes maus, filmes de escola, institucionais, ou de realizadores firmados. Não o fez ainda ao colocar numa mesma sessão e sob o mesmo tema filmes com durações e trabalhos ou resoluções muito diferentes. O espectador saiu da sala indignado e não voltou.

Primeiro: a falta de escolha, ou de discernimento, ou de atitude selectiva. Acho que não poderia ter havido uma escolha mais corajosa do que aquela que tivemos na organização do PANORAMA: a escolha de mostrar tudo (encaminhámos dois ou três filmes para outras mostras, e deixámos duas peças jornalísticas de lado… algo que aqui poderá funcionar contra a minha argumentação… deixo para outro texto…). A programação foi feita a partir do pressuposto inicial de que não iria existir uma selecção, que seria criado terreno para a discussão em volta das fronteiras do documentário, sobre o estado das coisas feitas entre nós, e que esse averiguar só seria possível se déssemos a oportunidade de se ver tudo. A discussão só poderia existir se as coisas fossem vistas. A partir de 89 filmes criámos uma série de blocos organizados por temas (organização que se prende com a pesquisa específica desta primeira edição, em volta exactamente dos objectos filmados pelos documentários em Portugal, “para onde olham os documentários portugueses?”). O objectivo não era criar uma ilustração do tema, mas juntar os filmes por linhas de força mais ou menos abstractas que pudessem fomentar uma discussão em volta dos filmes e da sua associação. Foi o que aconteceu em alguns debates (Em Comum, Detrás do Traço) em que os espectadores, que facilmente perceberam o esquema e curiosamente protagonizaram debates muito animados (para o habitual em Lisboa), comentaram os filmes a partir de outros. Ou seja, conseguiram verbalizar o que faltava num filme ao sentirem a mesma falta num outro filme, mas de forma mais exacerbada; ou conseguiram perceber o que um filme tinha de bom, ao ver um outro onde esse “bom” particular faltava... Os espectadores conseguiram falar sobre os filmes pelo criar de uma relação entre eles. E isto, mesmo não tendo acontecido em todos os debates, ao acontecer pontualmente deu corpo à programação, deu-lhe sentido.

E aqui se introduz o segundo ponto: a protecção do espectador. Será proteger o espectador oferecer-lhe uma programação limpa, cheia de certezas, onde ele poderá navegar sem grandes entraves ou obstáculos por aquilo que lhe é apresentado como “bom”? Não será também proteger o espectador dar-lhe armas, criar-lhe dúvidas (mais sãs porque dele), fazê-lo sair da cadeira, indignado, fazê-lo sair, reagir? Não gosto do “proteger o espectador”, é uma expressão que me irrita e me incomoda, não quero nela ser incluída, não quero ser protegida. Protegida contra quê? Contra quem? Um dos objectivos do PANORAMA é claramente criar públicos. Mas é criá-los onde eles já existem, no sítio exacto onde existem, nos nichos deixados abertos. De dentro dos consensos é criar dúvidas, é criar espectadores ou públicos que sabem o que estão a ver, e que se indignam ou se comovem. Públicos que não se limitam a perpetuar o escrito e o dito sobre os filmes, que de repente têm armas para ver e discutir, para ver em relação. E assim construir uma leitura própria, individual, única.

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