Ainda não começámos a pensar
                                               We have yet to start thinking
 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Materialidade = esteticização?

« Se retiro do acto de estar a fotografar ou a filmar uma certa abstracção... ou seja, se valorizo a função do objecto fotografado como imagem e vejo esta na sua materialidade (colocando focos de iluminação, criando sombras) o que estou a fazer é a exorbitar a imagem para um domínio que tende a esvaziá-la de densidades. E o problema da esteticização da política, da miséria, etc... retirar da imagem uma espécie de mais-valia e torná-la um aspecto literalmente económico. E o acto de exorbitar a importância de um significante, é usá-lo corrigido para o tornar plástica e esteticamente atractivo, afastando-o das malhas do real que o constituem. Assiste-se a uma forma extremamente hipócrita de lidar com as imagens. Promete-se e desliza-se sobre essa promessa. Esta é uma característica muito comum na publicidade actual, dos sistemas económicos dominantes e da sua estratégia de alargamento de mercado: prometer e depois recuar, e deixar as coisas hipocritamente correrem de outra maneira. As imagens estão sempre a ser jogadas, como uma espécie de mais-valia. Tornam-se uma espécie de pequeno animal amestrado. Os elementos ficcionais, ou valores puramente estéticos e descritivos, fazem sempre parte do documentário cinematográfico, contudo esses elementos são muitas vezes enfatizados excessivamente. E essa enfatização retira a meu ver possibilidades discursivas e críticas. »
(Pedro Lapa, «Inventariar instantes», Panorama. Mostra do documentário português, Apordoc/Vídeoteca Municipal de Lisboa, 2006, p. 25)
Ein bild (1983) Harun Farocki

A descrição que Pedro Lapa faz dos procedimentos de esteticização é-me simpática mas, mesmo tendo-a como um inimigo comum, não será no mínimo apressado circunscrever exclusivamente a materialidade da imagem a essa esteticização? É evidente que esta se baseia numa espécie de domínio técnico extremamente elaborado que perde progressivamente a relação com o que filma. Mas ao trabalhar a apreensão das forças, das sensações vivas, não temos igualmente de passar pela especificidade material das imagens? Como evitá-lo, a não ser que se caia na terrível inocência de achar que há uma neutralidade técnica ou material? Por exemplo, pensar que as câmaras de vídeo vêm com a cor neutra lá dentro, sem ter a consciência de que essa cor é já ela prescrita tecnicamente. Assim, na maior parte dos filmes em vídeo digital, é relativamente fácil reconhecer o director de fotografia dos filmes como o engenheiro da Sony, da Canon ou da Panasonic, etc., que elaborou o padrão técnico. Talvez isto não seja assim tão importante na soma de tudo o que constitui um filme, mas temos de procurar descrever, na sua concretude, o que faz a força de alguns filmes.
A construção das sensações em cinema não pode assim ser confundida com um lavar as mãos dessa materialidade. A inocência de supor que se nos alhearmos da problemática material ficamos mais livres só pode ser advogada por quem promova uma generalização da conceptualidade discursiva. E a relação entre materiais e forças, que define também uma arte constituída como o cinema, parece-me, para o bem e para o mal, aquém ou além dessa conceptualização.

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